A maior fonte de armamento do grupo Estado Islâmico é constituída pelos próprios inimigos. Os jihadistas capturam material e usam uma vasta rede de traficantes para adquirir os arsenais destinados às forças iraquianas ou aos grupos rebeldes sírios. O material bélico é desviado para o mercado negro por bom preço. É um negócio incalculável de muitos milhares de milhões de dólares. Só em munições, o grupo é capaz de gastar um milhão de dólares num único mês, às vezes numa única semana, numa única frente de combate.
"Compram como loucos. Compram todos os dias: de manhã, de tarde e à noite". A frase é dita por Abu Ali, o alias de um contrabandista de armas sírio, aoFinancial Times. Há um ano tornou-se, quase sem querer, fornecedor de armamento do Estado Islâmico.
Na altura traficava armas para outros grupos rebeldes que lutavam contra os extremistas do autoproclamado califado. Mas foi parado um dia na estrada. Em vez de o executarem, dois comandantes jihadistasapresentaram-lhe papéis impressos, emitidos pelo "Centro de Mossul".
"Traziam escrito esta pessoa está autorizada a comprar e a vender todo o tipo de armamento dentro do Estado Islâmico", recorda Abu Ali.
Esta é uma das formas usadas pelos extremistas para recrutar fornecedores de armamento: contrata contrabandistas e dá-lhes total liberdade de movimentos dentro dos territórios que controla, além de comissões de dez a 20 por cento.
Em troca exige-lhes exclusividade, garantindo que os seus inimigos mais diretos percam fornecedores. E o armamento de que necessitam para prosseguir os combates. Numa palavra, fazem deles preemptive purchasers - parafraseando a designação que o aparelho da guerra económica inglesa aplicava à sua política de compras preemptivas de volfrâmio em Portugal, durante a II Guerra Mundial.
Distribuição rápida e eficaz
Uma investigação do Financial Times revelou a complexa estrutura de comércio de armamento docalifado, comandada a partir de um Comité Militar central. No terreno, este é representado por um comité itinerante que contacta centros provinciais de armamento - como o de Mossul mencionado nos papéis apresentados pelos jihadistas a Abu Ali - coordenando os arsenais.
É a partir destes centros que é efetuada a encomenda de armas e munições aos traficantes e se efetua a sua distribuição de acordo com os pedidos dos comandantes no terreno.
Em novembro último, combatentes peshmergaconfiscaram, no campo de batalha, papéis emitidos pelo Estado Islâmico com ordens de distribuição do material bélico destinado ao combate e emitidas na véspera.
Todo o sistema permite uma rapidez na distribuição de armas e, sobretudo, de munições, reconhecida pelos oponentes do grupo, que mencionam a qualidade do serviço de comunicações do Estado Islâmico - ou Daesh, como é mais conhecido na região
Este usa tanto a rede social WhatsApp, para contactar os contrabandistas com listas de preços e de material, renovadas semana a semana, ou menos, como comunicações via walkie-talkie com os combatentes.
Combatentes curdos conseguiram recentemente intercetar um dos canais usados pelos jihadistasdurante os combates. Os peshmerga ouviam-nos pedir 'kebab"', 'salada' e 'galinha tikka'.
A chave do código foi dada ao Financial Times por um ex-comandante rebelde que lutou sob a bandeira do grupo Estado Islâmico até conseguir fugir para a Turquia durante o verão.
"'Kebab' é provavelmente uma metralhadora pesada," afirmou Abu Ahmad. "A 'salada' seriam munições para kalasnikovs. Existem balas explosivas, balas de penetração - uma misturada, como numa salada", ria-se.
O sistema permite reabastecer os jihadistas no terreno em menos de 24 horas. Combatentes veem camiões de munições a fazer distribuição nas linhas da frente todos os dias.
Um milhão de dólares num mês em munições
O tipo de encomendas do grupo está diretamente ligado às suas táticas ofensivas. O Daesh mantém várias frentes de combate ativas em simultâneo e habitualmente - além de bombistas suicidas e de explosivos - combate com kalashnikovs e metralhadoras ou armas anti-aéreas instaladas em carrinhas de caixa-aberta - uma tática aliás comum na região e que pode consumir dezenas de milhares de munições num único dia.
De acordo com a investigação do Financial Times, é precisamente isso que o EI mais procura: munições para armas de assalto kalashnikov, para metralhadoras de médio calibre e para armas antiaéreas de 14.5mm e de 12.5mm. Compra ainda granadas de morteiro e balas de alta precisão, mas em menores quantidades.
Para se ter uma ideia dos montantes envolvidos nestes negócios, escaramuças ao longo da linha da frente na cidade síria de Deir Eizzor, em meados deste ano, utilizaram, por mês, um milhão de dólares em munições, afirmaram ao Financial Timesnegociantes e combatentes. O mesmo montante foi gasto na ofensiva de uma semana contra o aeroporto próximo.
É um comércio calculado em muitos milhões de dólares. E que deverá aumentar ainda de valor, à medida que o Estado Islâmico é afastado da fronteira da Turquia pelos bombardeamentos russos, sírios e da coligação internacional.
De acordo com Abu Ahmad, para contrariar a subida de preços, devido ao risco crescente do contrabando e à resultante 'escassez' das munições, o Estado Islâmico resolveu aumentar a distribuição de "licenças" aos traficantes, forçando-os a competir entre si para fazer "negócio".
Quem abastece o EI são os seus inimigos
Numa região onde, ao fim de quase cinco anos de guerra, quase não existem oportunidades de negócio, por cada traficante que foge, como fez Abu Ali após o convidarem a alistar-se no EI, surge uma dezena para o substituir.
"Hoje em dia tudo gira à volta do dinheiro. Ninguém se importa com quem compra. Só lhes interessa o dólar", afirmou ao Financial Times Abu Omar, um negociante do mercado negro que forneceu o Estado Islâmico durante um ano, até alegadamente desistir, em agosto.
No início de novembro de 2015, o Daesh publicou uma série de fotografias dos seus combatentes em treinos, sobre veículos MRAP (Mine Resistant Ambush Protected - blindados contra minas) americanos e manuseando espingardas de assalto AK-47 e RPGs (granadas de morteiro).
Veículos e armas terão sido capturados em Mossul, na conquista da cidade em 2014.
Já em junho o grupo mostrou parte do arsenal capturado às Forças Armadas Iraquianas em al Karmah, entre Bagdade e Faluja.
O EI opera, ou operou, quase 70 campos de treino, 36 no Iraque e 33 na Síria. Um total de 140 campos de treino de jihadistas foram identificados desde 2012.
Análise do equipamento prova heterogeneidade
A Aministia Internacional publicou esta semana um extenso relatório em que analisa a origem do armamento de que dispõe o Estado Islâmico. A maior parte dele já existia na região e, simplesmente, "caiu-lhe nas mãos", tendo sido confiscado ou capturado. Durante o seu avanço na Síria - em 2013 - e no Iraque - em 2014 - o Estado Islâmico conseguiu um arsenal imenso.
Em outubro de 2014, o grupo Investigação de Armamento de Guerra (Combat Armament Research - CAR), financiado pela União Europeia, concluiu análises a vários locais de combate nas regiões curdas do norte da Síria e do sudeste do Iraque. E deixou um aviso muito sério, ecoado agora pela Amnistia Internacional.
Entre 22 de julho e 15 de agosto o grupo recolheu mais 1.700 munições de pequeno calibre, para determinar a sua origem e idade. Concluiu que a maioria havia sido fabricada nos Estados Unidos, na China e na Rússia. Dos 1.730 cartuchos da amostra, 73 por cento haviam sido fabricados na China (445), na União Soviética (338), nos Estados Unidos (323) e na Federação Russa (154).
Os cartuchos foram datados entre 1945 e 2014, com apenas dez por centro fabricados após 2010. Destes últimos, a maioria vinha da Bulgária, da China e da Turquia. A Sérvia, a Federação Russa, o Irão, a República Checa e até o Sudão estavam representados.
Quase metade das munições mais recentes tinham calibre 7.62 x 54R mm usado em armas de assalto genéricas, como metralhadoras e espingardas. O segundo maior grupo consistia em munição calibre 5.56 x 45 mm, habitual na NATO e usada pelas forças de Defesa e de segurança iraquianas.
Apesar da popularidade das kalashnikov, a amostra só revelou uma percentagem reduzida - cinco - de munição calibre 7.62 x 39 mm, ao passo que um sexto eram munições de 19 mm para pistolas turcas, recolhidas tanto na Síria como no Iraque.
O CAR concluiu, num relatório separado, que a heterogeneidade das armas ligeiras recolhidas nos locais é paralela à das munições. E acrescentou que, tal como o EI, também os combatentes curdos,pershmerga e YPG, recolhem dos locais de combate as armas, juntando-as aos seus arsenais. Em combates seguintes estas muitas vezes voltam a mudar de mãos.
Aviso aos "fornecedores"
"O facto de as munições provirem de fontes tão díspares - algumas foram até manufaturadas numa grande fábrica de munições no Missouri (EUA) - levanta uma nota de precaução quando Washington se prepara para enviar grandes quantidades de material militar, incluindo armas de pequeno calibre, para os grupos rebeldes na Síria e para uma força armada iraquiana revigorada", concluía em outubro de 2014 o relatório da CAR.
Mais de um ano depois, o aviso mantém-se válido. Sobretudo para a Síria, onde o Estado Islâmico aproveita agora a guerra entre as tropas de Damasco e os vários grupos rebeldes para adquirir grandes quantidades de munições, enviadas pela Rússia e pelo Irão ou financiadas por simpatizantes dos rebeldes e desviadas dos seus arsenais.
A maioria das munições que abastece o grupo é aliás negociada na Síria, atualmente o maior centro de distribuição de armas da região.
Rússia e Irão fornecem diretamente as tropas de Damasco enquanto apoiantes dos países do Golfo enviam, aos grupos que apoiam e através da fronteira turca, camiões com munições, desviados depois por combatentes corruptos para os negociantes locais. As províncias fronteiriças de Idlib e de Aleppo tornaram-se o maior mercado negro do país, de acordo com fontes locais.
Para disfarçar o contrabando, os traficantes dissimulam o armamento sob abastecimentos legítimos, muitas vezes géneros alimentícios e até auxílio humanitário.
Muitos dos abastecimentos com destino às tropas iraquianas e aliados acabam também vendidos aoDaesh e pela mesma razão: quando há oportunidade de negócio, há sempre alguém disposto a traficar, nem que seja com o inimigo. É aqui que os traficantes desempenham um papel crucial.
Outras vezes, é o armamento lançado por aviões da coligação internacional, que apoia os rebeldes sírios, que acaba por cair nas mãos do EI.
Aos jihadistas não interessa a proveniência das armas e das munições, embora prefiram material russo. Só compram material iraniano se for por "um bom preço", afirmou Abu Omar ao Financial Times.
"Podíamos comprar ao regime [sírio], aos iraquianos, aos rebeldes - se pudéssemos comprar aos israelitas, não se importariam, desde que as obtivessem", contou.
Quase tudo permite fabricar bombas
Mais ainda do que munições, o Estado Islâmico procura materiais para fabricar bombas e explosivos. Estes são muito mais fáceis de obter, a sua aquisição pode ser até legal e a quantidade de alternativas oferecidas é outra vantagem, talvez mesmo a maior.
James Bevan, diretor do CAR, diz que "temos visto de tudo, desde telemóveis e walkie-talkies da Motorola até comandos de portas de garagem e circuitos de portáteis". São usados para engatilhar as bombas.
Materiais químicos, como fertilizantes ou óxido de alumínio, são encontrados facilmente e de forma legal em qualquer parte do mundo, sendo usados em mineração ou na agricultura. São quase impossíveis de rastrear.
Foi possível contudo concluir que a maioria deste materiais provém da Turquia e que alguns industriais de mineração e de demolição que os fornecem a clientes que depois, secretamente, os transferem para os jihadistas. O Líbano e o Iraque são outras grandes fontes de materiais químicos.
De acordo com o CAR, o Daesh usa-os para produzir bombas em grande quantidade. Recentemente, o grupo de analistas entrou com responsáveis curdos numa fábrica de bombas abandonada pelo EI e encontrou explosivos suficientes para encher metade de um contentor de seis metros cúbicos.
Abu Ahmed afirma que o grupo extremista tem até instalações para fabricar armaduras para os carros-bomba, de forma evitar que os bombistas sejam mortos a tiro antes de chegar ao alvo.
"Mas nunca os vi a colocarem armaduras nos carros com que circulam habitualmente", comentou Ahmed.
Fonte: RTP Notícias
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