O que é a vitória numa guerra? O simples fato de haver dúvidas, em vários casos, sobre quem venceu determinada guerra, já é um indicativo de que não é fácil responder a essa pergunta. Entre os exemplos que vêm à mente estão os EUA na Guerra do Vietnã e Israel na Segunda Guerra do Líbano de 2006.
Aliás, foi justamente o desempenho, digamos, questionável dos EUA no Vietnã que inspirou o Gen Powell - Chefe do Estado-Maior Conjunto das Forças Armadas dos EUA durante a Guerra do Golfo (1990-1991) - a pensar num conjunto de doutrinas que foi apelidado por jornalistas como “Doutrina Powell”.
O TRAUMA PÓS VIETNÃ
Até hoje a pergunta “Os EUA venceram a Guerra do Vietnã?” suscita grandes debates. E as razões são várias.
A primeira delas é que a segurança imediata dos EUA não estava ameaçada pelo avanço do comunismo no Vietnã. Muitos vão invocar a famosa observação que “é fácil ser engenheiro de obra pronta”, e de fato o pensamento de hoje é diferente do que era na época, mas o fato é que a segurança direta dos EUA nunca esteve sob perigo por ação vietnamita.
Talvez por esse motivo, o apoio da população americana à guerra nunca foi grande, especialmente em relação às convocações. O clima anti-guerra teve no Vietnã o seu auge, justamente porque muitos não entendiam, ou não aceitavam, as justificativas dadas pelos governantes para enviar os jovens para lutar “do outro lado do mundo” sem que a segurança nacional estivesse ameaçada.
Outro ponto importante naquela guerra foi a enorme ingerência política sobre as decisões militares, sendo frequentes os casos em que até mesmo situações táticas, por exemplo fornecer apoio de fogo a tropas em contato, exigiam aprovações por instâncias superiores e até mesmo de políticos, com várias missões dependendo de aprovação pessoal do Presidente. Com o processo decisório demorando tanto, e com a decisão muitas vezes tomada por pessoas com pouco ou nenhum conhecimento militar, a eficiência das FA (Forças Armadas) americanas era consideravelmente reduzida, a despeito dos meios disponíveis. O receio de que a China ou a URSS entrassem diretamente no conflito foi um dos principais motivos por trás desse nível de ingerência.
Uma “irmã gêmea” da ingerência política foi a relutância em comprometer os recursos humanos e materiais necessários. Não foram raras as ocasiões em que foram utilizadas forças insuficientes para atingir determinados objetivos, ou que planos que envolvessem grandes forças fossem adiados, rejeitados ou tivessem seu poder diminuído em face de considerações políticas.
Vários países viam a guerra como ilegítima ou desnecessária. Essa falta de consenso internacional era outro motivo que levou à ingerência política, e o receio de evitar cenas como a devastação das cidades causadas pela Segunda Guerra Mundial, eram grandes motivadores da ingerência política e da relutância em comprometer os recursos necessários.
A junção de todos estes fatores levou os EUA a adotarem, por longo tempo, ações de guerra limitada: alguns políticos acreditavam que ações pontuais, sem recorrer a uma grande invasão (como o Dia D) ou ações de destruição das principais cidades norte-vietnaminas (como aconteceu nas “tempestades de fogo” sobre Dresden e Tóquio), ou pelo menos a destruição de alvos estratégicos em Hanói e Haiphong, seriam suficientes para conter o Viet Cong.
Todos sabem a história - a “guerra limitada” levou a um imenso número de baixas entre civis e militares vietnamitas, e também entre militares americanos, além da devastação do país. Ou seja, os efeitos limitados pretendidos não foram alcançados. Ademais, e apesar do tratado de paz assinado por Ho Chi Minh em 1973 (o que é visto como vitória americana, dependendo do ponto de vista), o Vietnã do Sul acabou por ser conquistado pelo Vietnã do Norte em 1975 (o que é visto como derrota americana, dependendo do ponto de vista).
O grande número de baixas americanas, a oposição da população americana à guerra, os grandes custos financeiros do conflito não conseguiram impedir o avanço do comunismo na região - que era, ostensivamente, o que os EUA quiseram evitar com a guerra.
A “DOUTRINA WEINBERGER”
Nos anos 1980, algumas ações militares dos EUA foram duramente criticadas pela população e por especialistas, como a presença dos Marines no Líbano (que terminou com o trágico atentado contra os quartéis americanos em Beirute, em 1983, com a morte de mais de 200 fuzileiros) e a invasão de Granada (um pequeno país no Caribe).
O então Secretário de Defesa, Casper Weinberger, proferiu, durante uma palestra na renomada Academia Militar de West Point em 1984 (ou seja, cerca de 10 anos depois do Vietnã), alguns princípios que deveriam nortear as ações militares americanas. Estes princípios foram depois chamados de “Doutrina Weinberger”, e nortearam as ações militares americanas na segunda metade dos anos 1980.
Resumidamente, a “Doutrina Weinberger” postula:
1. Os EUA não devem enviar tropas, a menos que interesses vitais dos EUA ou de um aliado estejam diretamente ameaçados.
2. Caso se decida por enviar tropas, o apoio deve ser total, ou seja, devem ser garantidos os recursos materiais e humanos para cumprir a missão.
3. Caso se decida por enviar tropas, os objetivos políticos e militares devem ser claramente definidos, e os recursos alocados devem ser grandes o bastante para se atingir estes objetivos.
4. O comprometimento e a capacidade das tropas americanas devem ser avaliadas continuamente, e eventuais ajustes devem ser implementados sempre que necessário.
5. Antes de comprometer as tropas americanas, o povo americano e seus representantes eleitos devem ser assegurados da necessidade e da solidez de tal comprometimento.
6. Este comprometimento deve ser o último recurso, a ser utilizado apenas quando alternativas diplomáticas forem esgotadas.
Com estes princípios em mente, a invasão americana ao Panamá, entre dezembro/1989 e janeiro/1990, foi bastante rápida e com poucas baixas entre os militares americanos. Da mesma forma, os EUA não enviaram tropas ao Afeganistão na sua guerra contra a URSS, mas enviaram dinheiro e armas, emulando o que os soviéticos fizeram contra os EUA nas décadas anteriores.
Mas o maior teste à Doutrina Weinberger viria na década de 1990.
DOUTRINA POWELL
O Gen Powell, Chefe do Estado-Maior Conjunto das Forças Armadas dos EUA durante o governo “Bush Pai”, aprofundou ainda mais os princípios estabelecidos por Weinberger, e os princípios da “Doutrina Powell” ou “Doutrina Weinberger-Powell” nortearam a esmagadora vitória sobre o Iraque na Guerra do Golfo (1990-1991).
Nas palavras do próprio Powell, constantes no documento “Estratégia Militar Nacional dos EUA”, publicado cerca de 1 ano depois da Guerra do Golfo:
Uma vez tomada a decisão pela ação militar, meias medidas e objetivos confusos cobram um preço elevado na forma de um conflito prolongado que pode causar desperdício desnecessário de vidas humanas e recursos materiais, uma nação dividida em casa e derrota. Portanto, um dos elementos essenciais de nossa estratégia militar nacional é a capacidade de reunir rapidamente as forças necessárias para vencer - o conceito de aplicar força decisiva para subjugar nossos adversários e, assim, encerrar conflitos rapidamente com perda mínima de vidas.
Powell dizia que o alto comando civil e militar deveria responder a 8 perguntas antes de se comprometer com o envio de tropas:
1 Algum interesse vital está ameaçado?
2 Há um objetivo claro e alcançável?
3 Os riscos e custos foram analisados com franqueza?
4 Os meios não violentos já foram totalmente esgotados?
5 Há uma estratégia de saída plausível para evitar que a guerra se arraste indefinidamente?
6 As consequências de nossas ações foram cuidadosamente avaliadas?
7 A guerra é apoiada pelo povo americano?
8 Há um apoio internacional amplo e genuíno?
Comparando-se a Doutrina Powell com a Doutrina Weinberger, além das grandes semelhanças, observa-se também um cuidado essencial - não entrar em conflitos que se arrastem indefinidamente. A Guerra do Vietnã tinha sido, até aquele momento, o conflito mais prolongado em que os EUA estiveram envolvidos com o envio de tropas, e esses estrategistas queriam, a todo custo, evitar um “novo Vietnã”.
Outro exemplo claro da aplicação destes princípios foi a Guerra dos Bálcãs , mais especificamente a Guerra de Kosovo de 1999, em que a OTAN se limitou a praticamente usar o poder aéreo, com pouco envolvimento de tropas em terra.
ABANDONO DA DOUTRINA POWELL
O Século 21 trouxe consigo o 911 (ataques terroristas do 9 de setembro de 2001) e a GWOT (guerra mundial contra o terrorismo), que levariam a um abandono dos princípios delineados por Powell. O resultado foram guerras bastante prolongadas no Afeganistão (2001) e no Iraque (2003), que se arrastam até hoje; cada uma delas ultrapassou o Vietnã, e a Guerra do Afeganistão já é a mais prolongada da história americana.
Um dos principais fatores que levaram à derrota dos EUA na GWOT - o terrorismo não foi erradicado, afinal - é justamente o fato de o objetivo ser vago e inatingível. Como o terrorismo é causado por diversos fatores, não é uma guerra, ou várias, que vai eliminar o problema. Junte-se a isso o fato que nem o Presidente “Bush Filho” nem o Presidente Obama deram aos militares todos os recursos que foram pedidos, complicando ainda mais a situação.
Aliás, cabe aqui um parêntese interessante - da mesma forma que a URSS na década de 1980, os EUA se prepararam mal contra o Afeganistão, fazendo valer, outra vez, o apelido “Cemitério de Impérios”.
Obama complicou ainda mais a situação ao anunciar unilateralmente a saída do Iraque, sem alcançar com isso nenhum resultado tangível dos insurgentes, e ao enviar tropas, ainda que em quantidades reduzidas, para a Síria - e isso depois de não cumprir a promessa de atacar a Síria caso o país usasse armas químicas.
RETORNO À DOUTRINA POWELL
O Presidente Trump, por sua vez, parece determinado a voltar à Doutrina Powell. Além de retirar as tropas da Síria e anunciar o fim da Guerra do Afeganistão (depois de costurar um acordo com os Taleban), já prepara a saída do Iraque, condicionando-a a obter vantagens financeiras do país.
É digno de nota que o Presidente Trump também não começou nenhuma guerra, mas não deixou de atacar o Irã depois de um ataque à embaixada americana em Bagdá, um total contraste com o Presidente Obama, que nada fez em relação a 4 americanos mortos na embaixada da Líbia.
O Presidente Trump também realizou alguns ataques contra a Síria e o Irã, mas tem sido cauteloso o bastante para não começar uma guerra aberta com estes países.
Duas ferramentas tem sido essenciais para esses 3 últimos Presidentes dos EUA - ataques com mísseis de cruzeiro (como o BGM-109 Tomahawk) e com drones (como o MQ-9 Reaper). Apesar das críticas pelo uso destes meios, ficou evidente que nenhum país está disposto a começar uma guerra aberta contra os EUA devido a tais ataques de escopo limitado, o que está de acordo com a Doutrina Powell - usar os meios necessários para atingir os objetivos em mente. É provável que, se tais meios não estivessem disponíveis, os EUA teriam que recorrer a ataques mais expressivos, como os da Operação El Dorado Canyon de 1986 contra a Líbia.
Outra ferramenta bastante utilizada, desde a Segunda Guerra Mundial, são as operações de forças especiais, seja em ataques diretos, seja através de insurgentes.
ISRAEL E A DOUTRINA POWELL
Não é segredo pra ninguém que Israel se inspira militarmente nos EUA. Tanto é assim que as IDF (Forças Israelenses de Defesa) tentaram imitar a postura americana na Guerra de Kosovo de 1999, com o objetivo de derrotar o Hizballah sem enviar tropas ao Líbano em 2006. O assunto é tratado com mais detalhes no artigo Segunda Guerra do Líbano (2006).
Embora o Hizballah fosse, e continue sendo, uma grande ameaça aos interesses vitais de Israel e não seja muito aberto a negociações diplomáticas, dando poucas alternativas à intervenção militar, o Primeiro Ministro Ehud Olmert não foi capaz de articular objetivos claros e alcançáveis (o objetivo de erradicar o Hizballah era, e é, inatingível por meios puramente militares) e nem se propôs a dar às IDF os meios necessários para atingir os objetivos - o envio de tropas terrestres foi postergado várias vezes, um sinal claro de que o governo israelense não estava comprometido com a guerra que começou.
Entretanto, o Hizballah seguiu atacando o norte de Israel a um ritmo de mais de 100 foguetes por dia, levando a um colapso econômico na região, e vários protestos populares contra o governo e às IDF. O fato que as próprias IDF relutavam em enviar tropas, apesar de a situação claramente exigir tal atitude, complicou ainda mais a situação, e a guerra se arrastou por 33 dias, terminando após ambos os lados aceitarem a intermediação da ONU.
A vitória israelense no Líbano, assim como a vitória americana no Vietnã, não foi inquestionável. A destruição no Líbano foi muito grande e o Hizballah praticamente parou os ataques contra Israel, situação que se mantém até hoje, 14 anos depois, e isso claramente conta a favor de Israel. Entretanto, o alto comando do Hizballah permaneceu praticamente intocado, e seu poder, tanto militar quanto na política interna do Líbano, são maiores do que em 2006, o que conta como derrota para Israel.
Após a guerra, e como é de costume em Israel, foi estabelecido um Comitê para fazer uma investigação, que em vários aspectos se assemelha a uma CPI, liderada pelo Ministro da Suprema Corte Israelense (aposentado) Eliyahu Winograd. O relatório deste Comitê, geralmente chamado Relatório Winograd, foi bastante duro com o alto comando militar e político do país, e suas conclusões e recomendações lembram vários pontos da Doutrina Powell.
As IDF aprenderam as lições do Relatório Winograd. Já no final de 2008, pouco mais de 2 anos após a performance questionável no Líbano, Israel atacou o Hamas em Gaza, a chamada Operação Chumbo Fundido, uma das várias campanhas contra o regime no poder na Faixa de Gaza. Desta vez, os objetivos israelenses foram muito bem definidos (principalmente reduzir a escala dos lançamentos de foguetes e morteiros contra a região sul de Israel) e as tropas em terra foram enviadas tão logo os ataques aéreos “amaciaram” as defesas do Hamas.
O resultado foi uma guerra muito mais rápida, durando apenas 21 dias, e durante esse tempo o Hamas causou poucos danos a Israel. A guerra terminou através de uma decisão unilateral do Alto Comando israelense, e os graves danos ao alto comando do Hamas, e à infraestrutura da Faixa de Gaza, impediram que o Hamas pudesse clamar alguma vitória.
Depois da Chumbo Fundido, porém, Israel teve que enfrentar o Hamas outras vezes, em 2012 (Operação Pilar de Defesa) e 2014 (Operação Margem Protetora), mas da mesma forma que em 2008-2009, a vitória israelense foi incontestável.
Depois de 2014, apesar das tensões com o Hamas e principalmente o Irã, Israel não se envolveu em conflitos maiores. Até mesmo ataques vindos da Síria, provavelmente “balas perdidas” da sangrenta guerra civil que assola o país desde 2011, não levaram a uma guerra aberta contra o país, com Israel se limitando a fazer ataques pontuais.
Aliás, novamente “imitando” os EUA, as IDF também usam bastante dos mísseis de cruzeiro (como o Delilah) e drones (como o Eitan) para realizar boa parte dos ataques limitados. Israel também é grande usuário das forças especiais, e através delas realizam ataques diretos ou com apoio de insurgentes.
CONCLUSÃO
A Doutrina Powell, de certa forma, não é mais que usar o bom senso antes de uma operação militar, seja ela grande ou pequena.
Objetivos claramente definidos, estratégia de saída claramente definida, comprometimento dos recursos humanos e materiais necessários, apoio interno e externo assegurado - pode parecer óbvio que tudo isso é essencial, mas qualquer um que estude a história dos conflitos da humanidade ficará chocado ao ver quantas vezes algum, ou até mesmo todos estes pontos foram tratados com desdém.
Parece que os EUA estão lembrando a lição que aplicaram tão bem em 1991, e Israel claramente aplica a Doutrina ao pé da letra, não sem antes sofrer por ignorar seus preceitos.
Felizmente, o Brasil raramente se envolve em conflitos, mas as lições da Doutrina Powell ainda devem ser incorporadas, especialmente para ações como as GLO (Garantia da Lei e da Ordem), que em vários aspectos é uma guerra: definir objetivos, alocar recursos, comprometer-se com o comando da operação quando houver atrito com a opinião pública - são tão importantes aos envolvidos na execução de uma operação GLO como nos campos de batalha ao redor do mundo.
Por Renato Marçal
GBN Defense - A informação começa aqui
O articulista cedeu gratuitamente o artigo como colaboração na divulgação do conhecimento e arte militar...
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