A Segunda Guerra Mundial envolveu o Brasil. Após os navios torpedeados e as grandes manifestações populares, o governo criou um destacamento militar, a Força Expedicionária Brasileira (FEB), que partiu para os campos de batalha da Itália em 1944 (1).
O modelo social de então revelava um mundo essencialmente masculino, onde a mulher estava totalmente voltada para o âmbito familiar.
Por solicitação das enfermeiras norte-americanas, já há três anos em guerra, foi requerido o engajamento de enfermeiras na FEB, permitindo a inserção feminina no campo militar, desencadeando procura significativa pelas escolas de formação por mulheres que emergiram de um mundo familiar, protegido e limitado, e se dispuseram a enfrentar um mundo heterogêneo convivendo com homens militares e mulheres estrangeiras.
As norte-americanas, já detentoras de capital cultural institucionalizado e habitus militar incorporado, estavam adaptadas às rotinas hospitalares desenvolvidas no cenário de guerra, com maior poder de decisão e segurança do que as enfermeiras brasileiras, que foram enfrentar um universo novo e desconhecido.
As brasileiras praticaram um ato ousado, já que a aceitação desse grupamento foi vista com resistência e crítica pela sociedade.
Para atuar no cenário da guerra, foi criado o Decreto-Lei nº 6097, de 13 de dezembro de 1943 (2), com o Quadro de Enfermeiras de Emergência da Reserva do Exército (QEERE), cujas candidatas deveriam ser brasileiras natas, solteiras ou viúvas, ter entre 22 e 45 anos de idade e alguma formação prévia em enfermagem.
Deste modo, 67 enfermeiras, sendo 61 hospitalares e 6 no transporte aéreo, foram integradas ao Serviço de Saúde da FEB, além de cerca de mil e trezentos médicos, dentistas, enfermeiros, farmacêuticos e padioleiros. No mesmo voluntariado, mas em situação administrativa diferente, foram incluídas na Força Aérea Brasileira outras seis enfermeiras.
A maior parte dos diplomas apresentados era de “voluntária socorrista”, curso de três meses ministrado pela Cruz Vermelha Brasileira. Carregando bagagens acadêmicas, experiências e condições econômicas diversificadas, muitas enfermeiras compartilhavam o passado militar no sangue: eram filhas, netas ou sobrinhas de militares.
Algumas descendiam de heróis da Guerra do Paraguai, como Aracy Sampaio, Virgínia Portocarrero e Lúcia Osório (5).
As enfermeiras brasileiras foram selecionadas após iniciarem seu voluntariado em 9 de outubro de 1943, com chamada publicada no jornal “O Globo” (6), quando ingressaram no Curso de Emergência de Enfermeiras da Reserva do Exército (CEERE), que comportou três módulos: parte teórica, preparação física e instrução militar.
O treinamento oferecido representou uma estratégia de homogeneização do comportamento das candidatas, mediante a absorção de um habitus militar e possibilitando-lhes enfrentar um cenário simulado, com as implicações que pudessem advir de uma zona de conflito.
Essa preparação de guerra provavelmente gerou uma mudança significativa nessas jovens, ao demandar grandes esforços para adaptarem-se à Força Armada que passaram a pertencer e à função que deveriam exercer.
Inseridas inicialmente no QEERE como enfermeiras de 3º classe do Círculo de Oficiais Subalternos, foram “arvoradas” Tenentes-Enfermeiras, já no Teatro de Operações, pelo General Mascarenhas de Moraes. Dessa maneira tiveram sua situação profissional e militar regularizadas, reconhecidas legalmente como integrantes do Exército Brasileiro.
As enfermeiras serviram nos hospitais militares, comandados pelos norte-americanos. A proximidade com a linha de fogo variava de acordo com o tipo de hospital (estacionamento, campanha, evacuação).
Isso não as livrou dos perigos da guerra, já que as áreas hospitalares também foram atingidas por bombardeios, incêndios, alagamentos e explosões de minas. Algumas enfermeiras sofreram ferimentos graves em serviço, como Graziela Afonso de Carvalho, evacuada de volta ao Rio de Janeiro, onde passou meses internada no Hospital Central do Exército, com uma fratura na coluna.
Ao todo, 13,43% das sessenta e sete enfermeiras da FEB, nove mulheres, adoeceram ou se feriram e foram evacuadas de volta para o Brasil ou para tratamento mais sofisticado nos Estados Unidos da América (8).
As mulheres militares brasileiras foram obrigadas a absorver outras culturas e novas tecnologias para desenvolver seu trabalho de profissionais de enfermagem, integrando-se à equipe norte-americana, melhor preparada e organizada, num tempo recordista.
A entrada das enfermeiras nesta guerra foi importante para a afirmação da enfermagem moderna, conforme o sistema Nigthingale. Abriram um espaço no campo profissional para a mulher brasileira.
Acredita-se que o primeiro sinal de vida que os soldados feridos identificavam, ao recuperarem a consciência nos hospitais, era a visão das enfermeiras com seus típicos uniformes, sempre exaustas e ocupadas, encarnando a imagem da pátria-mãe cuidando dos seus filhos no front de guerra.
Prestar assistência a pacientes jovens com ferimentos complexos, atuando em equipes mistas com outros profissionais, foi, sem dúvida alguma, uma das lutas que enfrentaram.
Pode-se dizer que as integrantes deste grupamento feminino do Exército Brasileiro travaram inúmeras lutas no sentido de se fazerem ver e se fazerem crer como enfermeiras militares, desde a sua mobilização até o retorno da guerra e a posterior reinclusão no serviço ativo em 1957, respondendo a diversos conflitos nos campos militar, político e social.
Estas enfermeiras foram além dos limites pré-estabelecidos para o universo feminino, acumulando capital simbólico pela atuação nos hospitais do front italiano (9).
Michele Perrot, enfatizando a profissionalização da mulher, citou as enfermeiras, subvertendo o descuido imerecido à memória delas, e deu significado a sua presença e ação, além de revelar a existência de seus poderes.
Sob este aspecto, Perrot afirma que a palavra “poder” está afeita historicamente ao universo masculino, mas usada no plural – poderes – pode ser entendida como “influências difusas e periféricas em que as mulheres têm sua grande parcela”.
Isto significa dizer que as representações dos poderes das mulheres são um vasto tema a ser estudado e, muitas vezes, são “representações antigas, numerosas e recorrentes”, mas que fazem funcionar na prática e de forma secreta o “mecanismo das coisas”.
Ela observou, ainda, que a “guerra iria recolocar dramaticamente cada sexo em seu lugar, sendo o efeito das guerras sobre as relações entre os sexos, na maioria das vezes, conservador e até retrógrado”.
Mas é desta forma, por vezes conservadora e retrógrada, que se pode apreender as investidas dessas mulheres que, mesmo inscritas no universo simbólico masculino, se conectam e ratificam a luta das enfermeiras militares, provando a possibilidade da mulher ser militar e desempenhar as funções que lhe sejam atribuídas.
Outros significados se acumulam e revelam a luta pela profissionalização feminina, bem como a ideologia e a identidade deste grupo de mulheres militares brasileiras, cujo exemplo recai hoje sobre as centenárias Capitão Virginia Maria de Niemeyer Portocarrero e 1º Tenente Carlota Mello, pioneiras enfermeiras do Brasil na Segunda Guerra Mundial.
Por Dra Margarida Maria Rocha Bernardes - Bióloga, enfermeira, especialista, Mestre e Doutora pela UERJ. Pós doutora pela UNIRIO. Membro da Academia Brasileira de Medicina Militar (ABMM). Professora do Corpo Permanente da Escola Superior de Guerra (ESG/MD).
Coautores:
Daniel Mata Roque
Dra Sonia Helena da Costa Kaminitz
Fonte: EBlog
O GBN Defense agradece a autora, Dra Margarida Maria Rocha Bernardes, por compartilhar conosco tão enriquecedor conteúdo, deixando o convite para publicação de seus artigos, partilhando precioso conhecimento histórico com nosso público.
REFERÊNCIAS
(1) SILVEIRA, Joaquim Xavier da. A FEB por um soldado. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 2000.
(2) Exército Brasileiro. Estado-Maior. Estatuto dos militares: Lei nº 6880. Brasília: EGGCF, 1997.
(3) OLIVEIRA, Alexandre Barbosa de. Enfermeiras da Força Expedicionária Brasileira no front do pós-guerra. Tese de Doutorado. Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2010.
(4) MEDEIROS, Elza Cansanção. Eu estava lá. Rio de Janeiro: Ágora da Ilha, 2001.
(5) ROQUE, Daniel Mata; BERNARDES, Margarida Maria Rocha; OLIVEIRA, Alexandre Barbosa de; BLAJBERG, Israel (orgs). Práticas e representações fotográficas do Serviço de Saúde brasileiro na II Guerra Mundial. Rio de Janeiro: AHIMTB, 2019.
(6) MOTTA & SILVA, GLN. Tomo 6. In: MOTTA, AM. História oral do Exército na Segunda Guerra Mundial. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 2001.
(7) ROQUE, Daniel Mata (org). A Veterana: perfil biográfico da 2º Tenente Helena Ramos, enfermeira da Força Expedicionária Brasileira durante a Segunda Guerra Mundial. Rio de Janeiro: AHIMTB, 2019.
(8) BERNARDES, Margarida Maria Rocha. O Grupamento Feminino de Enfermagem do Exército na Força Expedicionária Brasileira durante a Segunda Guerra Mundial. Dissertação de Mestrado. Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2003.
(9) BERNARDES, Margarida Maria Rocha; OLIVEIRA, Alexandre Barbosa de. Enfermeiras brasileiras na Segunda Guerra Mundial. In: GONZÁLEZ, José Siles; OGUISSO, Taka; FREITAS, Genival Fernandes de. (orgs). Enfermagem: história, cultura dos cuidados e métodos. Rio de Janeiro: Águia Dourada, 2016.
(10) PERROT, Michele. Minha história das mulheres. São Paulo, 2016.