|
Imagem da repressão durante a ditadura e hoje |
Casal de manifestantes preso no quebra-quebra de segunda-feira, em São Paulo, é acusado com base na Lei de Segurança Nacional. No Rio de Janeiro, legislação mais dura vai ser usada contra vândalos
A ação de vândalos tem marcado a onda de protestos que começou em junho e julho, sobretudo no Rio de Janeiro e em São Paulo. Governos e forças de segurança pública buscam formas de conter os atos de violência e a depredação de bens públicos e privados sem tirar das pessoas o direito de manifestação. Depois da aprovação de leis, em diversos estados, para proibir o uso de máscaras, um antigo dispositivo jurídico ainda vigente foi ressuscitado pela Polícia Civil paulista. Na segunda-feira, um casal de mascarados detido nos confrontos no centro da cidade foram enquadrados na Lei 7.170, de 1983, conhecida como Lei de Segurança Nacional. A norma, promulgada na ditadura militar, prevê punição para quem lesar ou ameaçar a integridade territorial, a soberania nacional, o regime vigente ou os chefes dos Poderes da União.
Humberto Caporalli, de 24 anos, e a namorada, Luana Bernardo Lopes, de 19, foram presos ao lado de um carro da Polícia Militar, que havia sido tombado por manifestantes. Com base em fotos e vídeos gravados nos equipamentos apreendidos com os dois — embora não tenham sido flagrados auxiliando a virar o veículo —, o casal teria, segundo a PM, incentivado os atos de vandalismo. Caso o Ministério Público tenha o mesmo entendimento do delegado que lavrou o boletim de ocorrência, Humberto e Luana poderão ser condenados de três a 10 anos de reclusão por "praticar sabotagem contra instalações militares, meios de comunicações, meios e vias de transporte", previsto no Artigo 15 da norma. O casal também responderá por associação criminosa, incitação ao crime, dano qualificado, pichação e posse de arma de fogo de uso restrito.
O uso da Lei de Segurança Nacional divide opiniões (veja Ponto crítico). Em nota, o grupo Advogados Ativistas, que faz a defesa do casal, lembrou que a norma não foi aplicada "nem mesmo quando dos ataques do PCC em São Paulo", em 2012. "Essa tentativa de se implantar a ordem pública através de ginásticas jurídicas é malefício incontestável para a segurança jurídica e os direitos humanos", diz trecho do documento.
Romualdo Sanches Calvo Filho, presidente da Academia Paulista de Direito Criminal, ressalta que a lei ainda está em vigor e, portanto, pode ser usada. "Nada impede que o Ministério Público ou mesmo o juiz entenda de outra forma, caso verifique que há excessos na acusação", ressalta o advogado criminal. Já o jurista Luiz Flávio Gomes crê que a utilização da norma "foi um erro". "A Lei de Segurança Nacional só pode ser usada quando se quer derrubar o governo, e os black blocs não querem isso. Eles são vândalos", opina. Para Gomes, o Código Penal bastaria para enquadrar os baderneiros.
Balas de borracha
Em entrevista coletiva na tarde de ontem, o secretário da Segurança Pública do estado, Fernando Grella Vieira, evitou se posicionar sobre o uso do dispositivo legal, mas anunciou que as balas de borracha voltarão a ser usadas pela PM em caso de distúrbios e depredações. O armamento havia sido proibido pelo governador, Geraldo Alckmin, em 17 de junho, logo após as primeiras grandes manifestações que abalaram o país. As balas de borracha feriram vários manifestantes, alguns gravemente. Segundo Grella, no entanto, esse tipo de munição, considerado não letal, não deve ser usado contra manifestantes, mas contra "grupos de vândalos". Também foi anunciada a criação de um grupo de trabalho do governo paulista para identificar e punir os baderneiros. O trabalho será feito pelo Departamento Estadual de Investigações Criminais (Deic) e poderá quebrar sigilos bancário, financeiro e telefônico dos suspeitos.
Protesto em Goiânia
Cerca de 300 professores invadiram ontem o plenário da Câmara Municipal de Goiânia. Em greve há duas semanas, os docentes protestam contra um projeto que altera as regras do auxílio-transporte da categoria. Segundo a Secretaria Municipal de Educação, a paralisação atinge 59% das escolas, e 70 mil alunos estão sem aulas. A prefeitura de Goiânia conseguiu que a Justiça impusesse ao sindicato multa de R$ 10 mil por dia de paralisação. Mas os docentes dizem que não vão encerrar o movimento ou desocupar o plenário da Câmara até serem atendidos.
Ponto crítico - Você concorda com a aplicação da Lei de Segurança Nacional?
SIM
Romualdo Sanches Filho - Presidente da Academia Paulista de Direito Criminal
Ainda que seja uma lei anacrônica, com resquícios da ditadura, ela pode ser empregada, em tese, porque ainda está em vigor. Há leis ainda mais antigas que esta e que continuam valendo. Portanto, na ausência de uma tipificação mais adequada, segundo a técnica jurídica, nada impede que seja usada. O que deverá ser analisado são as circunstâncias em que o casal foi detido. O que a polícia fez foi uma pré-classificação do crime. Nada impede que o Ministério Público ou mesmo o juiz entenda de outra forma, caso verifique que há excessos na acusação. Embora haja um entendimento de que essa Lei de Segurança Nacional não se encontra em harmonia com a Constituição Federal, ela produz efeitos.
NÃO
Wadih Damous - Presidente da Comissão Nacional de Direitos Humanos da OAB
A Lei de Segurança Nacional foi uma invenção da ditadura, para se autojustificar. É uma lei de exceção, para um período de exceção, e que já deveria ter sido revogada. Mas esses grupos de mascarados não contam com o nosso apoio. Assim como condenamos a violência policial, condenamos a violência de onde quer que ela parta. Quem depreda o patrimônio público, depreda lojas, incendeia ônibus, tem que ser reprimido na forma da lei. O Código Penal é suficiente para punir essas situações. Temos instituições que funcionam livremente — polícia, Ministério Público e Judiciário. Não há nenhuma ameaça à segurança nacional.
Advogados criticam medidas do governo
O uso da Lei de Segurança Nacional e a estratégia anunciada pelo governo de enquadrar manifestantes por associação criminosa provocaram divergências entre juristas e advogados. "A Lei de Segurança Nacional foi promulgada em 1983, em plena ditadura militar. Tem termos típicos da ditadura, como grupos subversivos, subverter a ordem. Civis serão julgados por militares. Claro, excessos devem ser punidos, mas pelos militares? Os black blocs estão ameaçando a segurança nacional? Acho bastante exagerado", afirmou o advogado criminalista Marcelo Feller, que atuou na defesa de manifestantes detidos em protestos.
Ele também criticou a estratégia do governo de enquadrar os manifestantes por associação criminosa. "Só o fato de pegarem pessoas juntas não configura associação criminosa. Mas, sim, quando se juntam previamente para reiteradamente cometerem crimes. Isso gera também a discussão sobre a legitimidade dos black blocs. Em 1988, um alemão que arremessasse um martelo contra o muro de Berlim deveria ser processado por dano ao patrimônio?"
Já o jurista e professor Luiz Flavio Gomes defendeu a iniciativa. "Está juridicamente correto enquadrar por associação criminosa. É prudente, equilibrado. Tem de uniformizar. Não é o delegado inventar coisas da cabeça dele. É melhor uma única coisa. O juiz soma as penas para cada um depois", disse Gomes, que também criticou o uso da Lei de Segurança Nacional. "É forçar a barra. O crime político exige que haja destituição do poder. Esse grupo (de black blocs) age de forma toda errada, algo absurdo, o estado democrático não permite. Mas o erro deles não chega ao ponto de trocar o governo e, portanto, não se enquadra na Lei de Segurança Nacional."
fonte: GBN com agências de notícias