Nesta entrevista exclusiva à Folha na cidade portuária de Busan no sábado à tarde (12 horas mais que o horário de Brasília), o ministro da Fazenda, Guido Mantega, fez um balanço do encontro de ministro de finanças e presidente de Bancos Centrais do G20, disse que a crise europeia não ameaça o Brasil e negou que o governo tenha cortado gastos sociais para conter o superaquecimento da economia.
G20
Esse G20 enfrenta duas questões básicas: uma, a crise da União Europeia, que nada mais é do que uma segunda onda de crise depois da crise de 2008, e a preparação da reunião dos líderes, que se dará em Toronto neste mês.
A ocorrência da crise europeia, que é uma crise da dívida soberana dos países, é um desdobramento da crise financeira. Até certo ponto era esperada, porque os Estados absorveram os problemas do setor privado, se endividaram para fazer políticas anticíclicas e agora se defrontam com problemas de dívida soberana. Essa questão se agravou um pouco nos últimos meses porque os países não foram tão rápidos no equacionamento dela, e o G20 tem uma responsabilidade de ajudar o encaminhamento dessa crise, já que os europeus têm dificuldade em fazê-lo, que cada um fica olhando mais os seus interesses individuais, deixaram a crise se alastrar.
As ações do G20 são importantes porque ajudam a atenuar essa crise europeia e impedir que ela se alastre. É uma crise sob controle, porque foi equacionada, os países europeus resolveram fazer um esforço para combatê-la, resolveram colocar dinheiro e desenvolver os instrumentos, que, a meu ver, são eficazes. Eles estão trabalhando com rapidez. Eu falei com o presidente do Banco Central europeu [Jean-Claude Trichet], que me disse que a pressão por liquidez já diminuiu.
O BC foi fundamental porque é o que tem mais agilidade para atuar nesse tipo de crise. Até você arrumar um pacote de 100, 150 bilhões de euros, demora muito tempo. Então quem tem de fato poder na mão para dar liquidez ao mercado é o BC europeu, e felizmente ele o fez, com a presteza necessária. Ele resgatou títulos da dívida soberana e mesmo títulos privados. Com isso, manteve a liquidez e não deixou nenhum inadimplemento. E ele relatou que, no início a pressão era maior por liquidez e que na última semana essa pressão diminuiu, mostrando que a crise estava sob controle.
De qualquer forma, a crise da dívida tem como contrapartida os bancos europeus. São os bancos europeus que detêm essa dívida. Se você deixar a coisa se aprofundar, você entra de novo numa crise de confiança no sistema financeiro, e é isso que deve ser evitado.
Então, além das medidas que os europeus tomaram, eles estão dizendo que estão cumprindo os prazos que eles estabeleceram, ou seja, liberaram 60 bilhões de euros imediatamente, deram dinheiro que a Grécia precisava para enfrentar os vencimentos, e agora estão finalizando um fundo de 450 bilhões de euros. Agora, estão sendo rápidos, depois de terem titubeado, os alemães principalmente, eles cederam e agora estão equacionando.
Isso coloca duas questões: primeiro a necessidade de apressar as providências que foram determinadas nos G20s anteriores e que ainda não foram concretizadas, e aí a constituição do fundo chamado NAB ["novos acordos para empréstimo", na sigla em inglês]. Fiz uma colocação para os colegas do G20 de que havia necessidade de que todas as medidas que nós tínhamos aprovado no G20 tinham de ser concretizadas. A primeira delas era suprir fundos ao FMI para que ele pudesse a enfrentar a crise anterior e esta. A crise anterior está sob controle, mas mesmo assim você vê que pipocou a Hungria.
O FMI tem US$ 250 bilhões, que seriam insuficientes para enfrentar a crise de 2008. Entre as decisões que tomamos de fazer aporte ao Fundo Monetário combinamos de estabelecer uma conta de US$ 540 bilhões no NAB. Só que, de 38 países que haviam se comprometido a participar dessa conta, apenas seis países já o fizeram. Está certo que são países importantes, os Estados Unidos, o Japão, a China e agora o Brasil. Mas então pedimos para acelerar a colocação de dinheiro no NAB.
A outra providência importante, para que seja mantida a confiança nos mercados e nos bancos, é que se aprove a regulamentação financeira. Houve várias falas nesse sentido, inclusive a minha, de que nós pudéssemos preparar uma regulamentação financeira mínima de consenso para que fosse levada e aprovada em Toronto. Seria aproveitar a experiência do FSB (Comitê de Estabilidade Financeira, na sigla em inglês], que vem trabalhando nisso, mais dos Bancos Centrais, e estabelecer quatro ou cinco regras ou condicionantes que todos os países aceitariam, se comprometeriam, independente de fazerem cada um a sua regulamentação financeira de acordo com as suas necessidades.
Quais são essas condicionantes? Aumentar a exigência de capital para as instituições financeiras proporcional aos riscos que elas tomam. Por exemplo, um hedge fund, que toma um risco maior, tem de ter mais aporte de capital. O FSB fez um estudo que revela que, se você colocar 2% a mais de capital do original, podemos tomar como exemplo Basileia 2, 11%, se você colocar 2% a mais, você diminui o risco de insolvência, de quebra em 15%. Então vale a pena. Tem um custo para os bancos, evidentemente, os bancos têm de imobilizar mais capital, eles estão chiando por causa disso, eles não querem, mas você aumenta a segurança do sistema e evita outro tipo de gasto, que você teria se você tiver de socorrer bancos ou administrar alguma massa falida.
A segunda condição: controlar os derivativos. Dar mais transparência e controlar as operações derivativas. Evitar os derivativos de balcão, que não são registrados. Portanto, torná-los conhecidos, como já temos no Brasil.
O princípio é diminuir os riscos das operações financeiras, aumentar a transparência e a supervisão. O outro ponto é aumentar a supervisão bancária, a supervisão sobre todos as operações financeiras.
Um outro ponto importante é fazer testes de stress. E agora fazê-lo nos bancos europeus, como foi feito nos EUA. Você pega uma instituição financeira, avalia os ativos que ela possui e avalia os ativos de risco e de não-risco. Por exemplo, você fez empréstimos em qualidade A, B ou C. Se você tem empréstimos de qualidade C, ou seja, de risco maior, você verifica se ela tem um capital correspondente, senão tem de provisionar mais capital. E aí você pega os ativos de melhor qualidade e dão um default, se a instituição aguenta, tem capital para aguentar. Está sendo preparado um teste de stress para as principais instituições europeias, o que é muito bom porque funcionou nos EUA. Quando você faz um teste de stress, você chega à conclusão: o banco A tem capital suficiente, portanto, é mais seguro. O banco B não tem, então ele tem de se capitalizar para se manter atuando.
Foram discutidas também as agências de classificação de risco. Foi discutido também um código de conduta para as agências de classificação de risco. Elas foram, em parte responsáveis pela crise, porque elas avaliaram mal os riscos que estavam envolvidos nas operações. Então, nós discutimos isso nos BRICs e também no G20 foi feita essa recomendação, que as agências de risco sejam submetidas a uma espécie de regulamentação para que elas sejam a base mais confiável, e não que elas façam algum tipo de manipulação de dados.
Com esses princípios básicos, poderíamos garantir a confiança maior do sistema financeiro, diminuir a possibilidade de risco. ou seja, você dificulta operações de risco, torna as operações mais transparentes. E com isso é possível evitar novas crises.
O resultado de tudo isso é um aumento da confiança, de modo que o crédito seja restabelecido. Porque até agora o crédito, em nível internacional, não foi totalmente restabelecido.
Eu fiz a proposta: cada país possui determinadas preocupações com relação aos bancos. Por exemplo, os EUA têm uma preocupação quanto ao tamanho dos bancos. A reforma que eles estão tentando aprovar no Congresso é para diminuir o tamanho dos bancos. Eles querem separar atividade de investimento e atividade de crédito, banco de investimento e banco de crédito. Essa é uma questão específica deles.
Uma questão que não foi consensual é de estabelecer uma tarifa sobre as operações financeiras. Há um racha forte entre países emergentes, que não tiveram problemas na crise do subprime, porque os seus ativos financeiros eram sólidos e, portanto, não foram penalizados. Os Orçamentos públicos não sofreram por causa disso, os governos não tiveram de colocar dinheiro, então esses mercados são as economias que em geral já têm mais regulamentação financeira. É o caso do Brasil, da China, da Índia, mas também Canadá, Austrália, países que não entraram nesse risco, não tiveram esse prejuízo e que têm já tarifas diferenciadas, taxas diferenciadas. A maioria desses países tem mais taxa sobre o setor financeiro. É o caso do Brasil, que tem taxas que os outros não têm sobre o setor financeiro. Nós cobramos um imposto de renda diferenciado no Brasil sobre o setor financeiro. Então se chegou a um consenso que não dá para ter uma regra única, cada país deverá trilhar o seu caminho. Os europeus continuam tentando, nada impede que eles o façam com os seus ativos.
AGENDA MÍNIMA PARA A REFORMA FINANCEIRA
O FSB já vem trabalhando há vários meses na agenda financeira. Então já tem quase pronta uma proposta de regulamentação financeira. Só que a proposta deles é mais completa e mais complexa. A nossa posição é que, se você buscar uma agenda muito complexa, é muito difícil ser aceita pelo conjunto de países. É mais fácil você procurar um mínimo denominador comum, que são princípios básicos, como aumentar a necessidade de capital, diminuir o nível de risco, controlar derivativos, isso a maioria concorda.
Não se chegou a uma conclusão em relação a isso, embora houvesse várias falas a favor da regulamentação. Praticamente todos falaram em favor da regulamentação. O timing ainda não está muito claro, se vai ou não ser aprovado na próxima reunião. Enfim, ficaram de reunir, discutir mais. O FSB é uma comissão permanente, nós temos representantes nela, que trabalham lá para definir esses mecanismos de regulamentação etc.
AJUSTE FISCAL NA EUROPA
Um outro ponto importante é discussão do ajuste das economias europeias. E aí há uma polêmica. Há aqueles que querem fazer um forte ajuste fiscal, privilegiando a redução do deficit público e da dívida e deixando o crescimento para o segundo momento. Em geral, são os países europeus, a Alemanha, países mais conservadores, que têm um forte problema, e outros países que acham que é importante garantir o crescimento nesse processo de ajuste. Você tem de fazer um ajuste fiscal, porém não perder de vista que o crescimento é uma maneira de fazer ajuste fiscal. Isso eu coloquei explicitamente. Eu fui um dos principais defensores desse ponto de vista. [O secretário do Tesouro dos EUA, Timothy] Geithner tem posição semelhante. Ele falou que não devemos entrar numa "histeria fiscal". E é um pouco a posição que compartilhamos.
PAÍSES EMERGENTES E AVANÇADOS
Uma outra questão que foi discutida é que tem um tema no G20, no Fundo Monetário, é o chamado "framework", que é a perspectiva de reequilibrar as economias, eliminar os desequilíbrios entre os países. Constatou-se que houve uma avanço desse sentido desde a crise de 2008. Os equilíbrios diminuíram entre países. Por exemplo, os países que tinham um superavit comercial muito elevado diminuíram o superavit, e os países que tinham um deficit muito elevado diminuíram o deficit. Acontece que os países que tinham uma situação comercial melhor eram justamente os emergentes. China, Brasil, Coreia etc. O que foi constatado é que os países emergentes reduziram os seus superávites e abriram espaço para a melhoria da situação cambial, da situação comercial dos países avançados. Houve um avanço. A China, por exemplo, diminuiu o seu superavit comercial, chegou a ter um pequeno deficit dois meses atrás. O Brasil diminuiu.
Todos os países que mantiveram um crescimento mais elevado acabaram alimentando as atividades dos países de crescimento mais baixo, que são justamente os países avançados. Então houve quase uma inversão, porque teoricamente deveria ser os países avançados ajudando os países emergentes. Desta vez, os emergentes ajudaram a reequilibrar os países avançados. Porém o que foi dito é que nós não podemos deixar uma inversão de situação, não podemos levar isso ao paroxismo. Senão o que vai acontecer é que amanhã os países emergentes terão desequilíbrios de contas externas, e os países avançados vão fazer um ajuste à custa dos países emergentes. Essa crise da União Europeia agrava essa situação à medida que reduz o ritmo de crescimento da Europa. Quem tem crescimento mais alto acaba importando mais e exportando menos.
YUAN DESVALORIZADO
O Geithner, na fala dele, mencionou que esperava que a China mantivesse uma flexibilidade cambial de modo a equacionar essa situação. Então, veja, se colocaram duas posições. Uma posição dos que somos favoráveis a diminuir os desequilíbrios, mas não a ponto de inverter os termos da equação e fazer com que os países emergentes fiquem desequilibrados para beneficiar os países avançados que se desequilibraram.
DIMENSÃO DA CRISE EUROPEIA
A crise é séria, mas ainda está circunscrita à União Europeia, ainda não chegou a influenciar outros mercados. Ela não se tornou uma crise mundial. Ela traz algumas consequências mais periféricas para os outros países porque sempre diminui o fluxo de crédito. Mas, segundo o presidente do BC europeu, eles controlaram a situação e estão alimentando a demanda de crédito. Então não haverá default, não haverá maiores problemas. Porém é possível que eles dêem continuidade às medidas que eles acertaram.
A criação desse fundo é complicado porque é condicional. Um país pode descontar um título soberano se ele entrar num processo de ajustamento, ou seja, condicional. O que eles fizeram é muito rigoroso do que o Fundo Monetário fez naquela linha de crédito que ajudamos a criar, que não é condicional. Mas é claro, não é condicional, mas empresta para países que estavam sadios. Como, no caso europeu, os países estavam desequilibrados, eles exigem que, para um país poder acessar esse fundo de 440 bilhões de euros, ele aceite uma carta de condições, ele assine um compromisso de condições com as quais vai ele fazer ajustes. Ele só vai receber o dinheiro, só vai poder trocar os títulos fazendo ajustes nas economias.
A impressão que se tem é os organismos financeiros sabem o que fazer, o Banco Central europeu tem clareza do que tem de fazer e está agindo. Já os governos europeus não têm essa mesma clareza. E se defrontam com problemas políticos na implementação dos ajustes. Então os ajustes que têm para fazer tem influências políticas fortes. Por exemplo, a demora da Alemanha em resolver o problema da Grécia se deveu à resistência da população alemã em ajudar um país que, teoricamente, tinha praticado desequilíbrios fiscais. Há algumas complicações políticas para que todo esse conjunto de medidas seja concretizado. Não é dos organismos, os organismos sabem o que fazer, é mais dos governos, que têm menos clareza e se defrontam com dificuldades políticas.
IMPACTO DA CRISE EUROPEIA NO BRASIL
Em primeiro lugar, o impacto provocou uma saída de capitais da bolsa, ativos de renda variável saíram com maior velocidade do país. Segundo, a dificuldade de empresas que tinham planejado fazer abertura de capital, chamada de capital, terão dificuldades. Essas empresas terão de adiar os seus planos, portanto, terão menos crédito à disposição. Há uma diminuição de crédito na economia brasileira em razão dessa crise.
Eu acredito que isso também reduza os investimentos que se pretendiam fazer. Algumas economias que iam fazer investimentos no Brasil não terão recursos disponíveis.
E o quarto é o retardamento da recuperação do comércio internacional e do comércio para o Brasil. Se as economias europeias vão crescer menos, significa que importarão menos produtos brasileiros.
Isso caminha no sentido de diminuir o volume de crédito e do investimento da economia brasileira e do comércio. Tem uma influência pequena, não é fundamental, mas essa situação encontra a economia brasileira num momento muito favorável, está sobrando crédito no país, portanto, uma pequena redução de crédito nesse cenário não é necessariamente maléfica, até atenua um pouco o excesso de crédito que temos hoje na economia brasileira.
GASTOS SOCIAIS
Não há corte de gasto social. Nenhum programa social foi afetado, nem investimento nem programa social. O que foi afetado é gasto de custeio. E gasto de custeio tem em todos os Ministérios. Houve uma interpretação errônea porque disseram: "Estão cortando dinheiro da educação". Mas não é nenhum programa de educação, todos estão intactos. Apenas se cortou custeio. Mas é assim que se faz, não tem contingencionamento sem dor. Mas ou se faz ou não se faz.
Achei estranho até que o candidato [tucano, José] Serra tenha criticado o contigenciamento. Primeiro, ele tinha falado que a gente ia cortar espuma, agora ele criticou porque estamos fazendo de fato, pra valer, e aí ele reclama porque foi feito, aparentemente, um corte no gasto social. Não foi feito no gasto social.
REFORMA DOS ORGANISMOS MULTILATERAIS
A crise europeia não atrapalhou, pelo contrário. A crise europeia coloca a necessidade de você de fato continuar as reformas e as medidas que foram estabelecidas. O risco que havia no G20 é que, como a situação econômica mundial estava se recompondo, há uma tendência a você relaxar, não levar adiante certas medidas, mas a crise europeia mostrou que a crise financeira não está debelada, o que nós temos agora é um subproduto. Então eu diria que a crise europeia reforça a necessidade da existência do G20 e das medidas que têm sido tomadas. Ela exige a necessidade de fazer uma reforma no sistema financeiro, temos logo uma nova arquitetura financeira internacional, e reforça também a necessidade de fazer a reforma do FMI. O que nós estamos vendo é que a Europa perde expressão. O que é a reforma? É diminuir a participação dos países avançados, que têm menos dinamismo, e passar para os países emergentes, com mais dinamismo. Ou seja, justamente os países que estão em crise hoje seriam aqueles mais afetados por essa reforma. A crise só vem confirmar a necessidade de uma reforma e de transferir responsabilidade e importância par os países emergentes.
Os países emergentes estão contribuindo mais do que os outros para o enfrentamento da crise e para superar a deficiência da economia internacional. Nós somos os principais responsáveis pelo crescimento mundial e pela manutenção de um certo nível de comércio. Então, cabe a nós ter uma parcela maior nas cotas do FMI. Então a ideia é antecipar a reforma para novembro. Nós vamos voltar para a Coreia. Em outubro, que tem a primeira reunião preparatória com os ministros, depois a com os presidentes. O objetivo é que se conclua a reforma das cotas em novembro. No FMI, será de 5%, a ser distribuída.
Fonte: Folha