Nos dias de hoje, boa parte dos canos de artilharia são de alma raiada, enquanto que praticamente todos os canos que equipam a arma principal dos Carros de Combate, que neste artigo chamaremos 'tanques' por ser o termo mais conhecido, nos calibres 120mm e 125mm (respectivamente o padrão OTAN e russo) são lisos. A única exceção é o L11 britânico de 120 mm, que tem alma raiada.
Qual é a razão de tal diferença?
Primeiramente, deve-se entender a função do raiamento.
O raiamento força o projétil a girar em torno de seu próprio eixo, tipo de movimento conhecido como spin. O spin aumenta consideravelmente a precisão dos projéteis, o que explica sua presença quase que universal na artilharia e em armas leves (à exceção das espingardas, mas falaremos disso mais tarde).
Entretanto, o raiamento tem duas limitações importantes:
- · A primeira é que aumenta a pressão do disparo. Ou seja, para a mesma MV (velocidade de boca), um cano de alma raiada precisa de maior pressão. Alternativamente, para a mesma pressão, um cano de alma lisa resulta em maior MV.
- · A segunda limitação é o tamanho do projétil a ser estabilizado, mais especificamente a razão comprimento: diâmetro (L/d).
Projéteis com L/d maior que, aproximadamente, 6, não podem ser estabilizados por raiamento do cano. Voltaremos a estas limitações mais tarde.
Missões e munições
Um canhão de tanque, ou um obuseiro, tem como função atingir o inimigo com grandes projéteis. Mas a aplicação principal de cada um é diferente, o que leva a que diferentes qualidades sejam levadas em consideração.
No caso da artilharia, a ideia é saturar uma área com vários projéteis, geralmente HE (altamente explosivos), causando uma tempestade de fragmentos que vão causar muitas baixas nos soldados inimigos, e também dificultar muito a movimentação de veículos. Entretanto, a artilharia não é precisa o suficiente para ser utilizada contra tanques individuais, especialmente se o tanque estiver perto o bastante para retornar fogo.
Os tanques, inicialmente, eram pouco mais que fogo de apoio móvel de infantaria, e os projéteis HE eram bastante eficientes. Mas com a blitzkrieg alemã, os tanques também passaram a ser armas antitanque. Inicialmente, os tanques utilizavam os mesmos projéteis HE contra outros tanques, com bons resultados. Inclusive, o calibre dos canhões era o mesmo dos obuseiros leves, geralmente entre 20 e 37mm.
Panzer II Ausf C, a variante mais numerosa a serviço da Wehrmacht quando da invasão da Polônia. Seu canhão principal era um 2 cm KwK 30 L/55, e a arma coaxial era uma MG34, ambos com alma raiada |
Evolução dos projéteis antitanque
Com a evolução das blindagens dos tanques, os canhões e os projéteis também tiveram que evoluir. Novos tipos de projéteis antitanque surgiram.
O HESH (explosivo de cabeça esmagável) foram um dos primeiros tipos especificamente desenhados como antitanque, com os HE relegados a usos gerais, embora ainda tivessem capacidade secundária como antitanque.
Por sua natureza, projéteis HESH são mais eficientes dentro
de uma determinada velocidade, que é relativamente baixa. O uso de raiamento é
essencial para garantir a precisão, e como projéteis HE e HESH funcionam muito
bem com raiamento, os canhões dos tanques mudaram muito pouco, exceto pelo
aumento de calibres; o Panzer IV Ausf. F2, por exemplo, usava um canhão de 75mm
de cano longo, para enfrentar o temível T-34 russo.
Vista lateral de um Panzer IV Ausf. F2. Observe-se o longo cano do poderoso canhão 7.5 cm KwK 40 L/48 de alma raiada, capaz de abater os T-34 a distâncias relativamente seguras |
Com o tempo, projéteis HEAT (explosivo antitanque) ganharam
espaço para combater outros tanques. Embora ogivas HEAT não funcionem bem com
raiamento, a invenção do 'slip ring', que reduzia o spin induzido pelo
raiamento, permitiu que os tanques seguissem usando canhões de alma raiada. Como
as blindagens não paravam de evoluir, só os projéteis HEAT e o aumento de
calibres era insuficiente.
Munições AP
Já a partir da Segunda Guerra Mundial, projéteis AP (perfurantes de blindagem) começaram a ganhar importância como projéteis antitanque. Inicialmente, os projéteis AP eram muito parecidos com os projéteis HE, mas com a carga explosiva e o detonador substituídos por aço extremamente duro.
Com o tempo, projéteis AP especializados foram desenvolvidos, com massa ('peso') menor que os HE, permitindo que a MV também fosse maior. Ao mesmo tempo, o material do núcleo perfurante foi substituído por substâncias como WC (carbeto de tungstênio), que são muito mais eficientes contra blindagens, mas também mais caros e difíceis de manusear. Tais projéteis eram do tipo APCR (AP de núcleo endurecido), também conhecido como APCBC (AP com cobertura balística) ou HVAP (AP de alta velocidade). A nomenclatura muda conforme o país e o tempo, mas as particularidades são basicamente as mesmas: um projétil com núcleo de WC mas com ocupando todo o calibre.
Enquanto o HEAT mantém sua eficiência independentemente da distância (pois sua energia provém dos explosivos), os projéteis AP perdiam eficiência com a distância, então era comum que os tanques carregassem os dois tipos de projéteis, em adição aos HE que ainda eram muito importantes no apoio à infantaria.
T-34-85, um dos melhores tanques da Segunda Guerra Mundial. Seu poderoso canhão de 85mm de alma raiada era bastante eficiente contra os tanques alemães, mesmo a distâncias consideráveis, e era bastante adequado para disparar projéteis AP
Em determinado momento, surgiu a ideia de fazer os projéteis AP totalmente em WC, obtendo assim a maior eficiência possível. Mas como o WC é extremamente duro, a vida útil dos canos era consumida em um número muito baixo de disparos.
Como resolver o problema?
'Sabots'
Ainda na época da Idade Média e séculos seguintes, era comum a utilização de sabots (sapatas) para selar o cano ao se disparar projéteis de subcalibre, ou seja, que por si só não preenchiam totalmente a alma do cano.
Os sabots geralmente eram de madeira, e como o uso de rochas como projéteis era muito comum, esta solução era muito comum, e funcionavam muito bem nos canos de alma lisa dos canhões e obuseiros primitivos.
O uso de sabots também era comum nos projéteis múltiplos, em que no mesmo disparo eram lançados vários projéteis de subcalibre, com o objetivo de atingir o máximo de inimigos com um único disparo.
As espingardas estão entre as armas mais antigas, e funcionam de forma parecida com os canhões antigos, daí a alma lisa.
Entretanto, com o surgimento dos projéteis HE com desenho ogival, os canos de alma raiada passaram a ser cada vez mais importantes, e os sabots foram abandonados em favor dos novos projetos.
Algum dos projetistas de munições acabou por se inspirar na história, e a versão moderna dos sabots acabou sendo usada nas munições APDS (AP com sabots descartáveis). Ao mesmo tempo, o calibre dos canhões aumentou ainda mais, chegando aos 90mm no final da Segunda Guerra Mundial e aos 105mm pouco tempo depois. Entretanto, como as blindagens dos tanques não parava de subir, uma nova família de projéteis era necessária.
Alma lisa retorna triunfante
Ao longo das décadas de 1960 e 1970, os projetistas de tanques da URSS perceberam que seus canhões eram incapazes de penetrar as blindagens dos modernos tanques da OTAN, e ao pesquisar formas de resolver o problema, se depararam com os projéteis pfeil (literalmente 'flecha') alemães que seriam usados nos obuseiros V3, que não chegaram a ser operacionais por chegarem tarde demais na Segunda Guerra Mundial.
Com a evolução das 'flechas' e das blindagens, chegou-se rapidamente ao ponto em que as 'flechas' utilizadas nas munições passassem do ponto em que a L/d = 6, com as 'flechas' modernas tendo L/d = 20, o que significa que não podem ser estabilizados por spin.
A solução foi estabilizar os projéteis por aletas, e quanto os pesquisadores soviéticos conseguiram combinar as 'flechas' de WC com aletas e sabots, surgiram os famosos e mortíferos projéteis APFSDS (AP, estabilizados por aletas, sabots descartáveis).
Concepção artística da 'flecha' se separando dos 'sabots', evento que acontece pouco depois da saída do cano |
Logo se percebeu que os canos de alma lisa eram melhores para os projéteis estabilizados por aletas. Assim, gradativamente, os tanques abandonaram os canos de alma raiada em favor dos canos de alma lisa.
A desvantagem é que o uso de aletas em projéteis explosivos diminui sua carga (dado o mesmo peso). Por isso que a artilharia geralmente ainda usa canos de alma raiada - projéteis explosivos são os principais na artilharia.
Já em 1966, o T-64 soviético adotou o poderoso canhão 2A46, de 125mm e alma lisa, que foi o primeiro capaz de utilizar munições APFSDS. Embora as 13 mil unidades do T-64 tenham ficado longe das quantidades de T-54/T-55 por ser muito caro e avançado, seu derivado simplificado, o T-72, foi produzido na impressionante quantidade de 26 mil unidades.
T-64, cujo canhão 2A46 de alma lisa foi o primeiro a disparar munições APFSDS
Os ocidentais seguiram a tendência apenas em 1979, tanto com o M68A1E2 (uma evolução do britânico L7 de 105mm e que acabou usado nos tanques que já adotavam o L7 ou o M68 e nas versões iniciais do Abrams) como com o Rheinmetall L/44, adotado nos Leopard 2 e M1 Abrams de lotes posteriores. Ao longo do tempo, outros blindados ocidentais adotaram o calibre 120mm, que hoje é o padrão OTAN. Os EUA usam DU (urânio exaurido) como material das ‘flechas’, enquanto os demais países seguem com WC). Falaremos disso mais tarde.
O único canhão moderno de 120mm de alma raiada é o L11 britânico (usado no Chieftain e no Challenger 1) e seu derivado L30 (usado no Challenger 2). A doutrina britânica da época do desenvolvimento do canhão (1966, mais ou menos contemporâneo ao T-64) dava grande valor à munição HESH (tanto para uso geral como antitanque). Originalmente, o L11 disparava munições L-15 APDS e L31A7 HESH para uso misto (antitanque e geral). Após o desenvolvimento das munições APFSDS L23 (WC, entrou em serviço em 1985) e as mais moderna L26 (feita de DU) e L27 (também feita de DU, mas só pode ser usada a partir do canhão L30), as munições HESH perderam a função antitanque.
O polêmico DU
Praticamente todos os elementos químicos que ocorrem naturalmente são compostos por uma mistura de isótopos. Retomando um pouco das aulas do Ensino Médio, isótopos são átomos do mesmo elemento que apresentam diferentes números de nêutrons no núcleo. Via de regra, isótopos possuem propriedades químicas e físicas bastante semelhantes e, com a exceção de poucos usos na indústria nuclear, não é necessário separar os isótopos para usar os materiais.
Mas é justamente na indústria nuclear que as propriedades dos isótopos fazem toda a diferença. Um exemplo é o urânio. De modo geral, o urânio presente na natureza é composto de aproximadamente 99,27% urânio-238 (U238), 0,72% urânio-235 (U235) e traços dos demais isótopos. O U235 tem excelentes propriedades para geração de energia nuclear, mas o U238 não.
A separação do U235 é feita através de um processo conhecido como enriquecimento, em que uma fração é EU (urânio enriquecido; o grau de enriquecimento depende do uso, mas esse tópico está fora do escopo do presente artigo) e a outra fração é DU (urânio exaurido), em que a quantidade de U235 é inferior a 0,3%.
O DU tem excelentes propriedades mecânicas tanto para uso em blindagens (algumas versões do Abrams usam DU na blindagem) quanto em munições AP - oferece um aumento de até 30% na performance dos penetradores.
Além do uso em munições APFSDS do M1 Abrams, munições APCR, APDS e APFSDS com penetradores de DU são usadas em várias armas americanas, como o canhão 25mm Bushmaster dos M2 Bradley e o canhão 30mm Avenger dos A-10.
O Reino Unido, aliado tradicional dos EUA, usa o DU nas munições APFSDS L26 e L27 usadas pelos seus MBT, especialmente o Challenger 2.
Entretanto, o DU também é altamente tóxico, tanto por ser um
metal pesado como por ser radioativo. Embora a radioatividade do DU seja menor
que do urânio natural e muito menor que do EU, ela não é zero, e aumenta ainda
mais os perigos advindos do envenenamento por DU. Essa toxicidade tem levado os
EUA e o Reino Unido a buscarem alternativas ao DU, principalmente na forma de
WC, mas ainda não substituíram a perigosa substância.