quinta-feira, 13 de junho de 2024

Análise: A Base Industrial de Defesa Europeia: Desafios e Perspectivas

A guerra na Ucrânia expôs de forma aguda as fragilidades da base industrial de defesa europeia, que sofreu décadas de declínio após o fim da Guerra Fria e uma série de fusões e aquisições. Esta crise lança uma sombra sobre a capacidade da Europa de manter sua soberania industrial em defesa, evidenciando a urgência de reavaliar e revitalizar este setor estratégico crucial.

O conflito na Ucrânia tem exacerbado as dificuldades em atender à crescente demanda do mercado de defesa emergente. A intensificação das hostilidades gerou uma procura urgente por equipamentos militares modernos e eficientes, colocando pressão sobre uma indústria já debilitada. A capacidade de produção europeia, enfraquecida por anos de cortes e fusões, enfrenta agora o desafio de fornecer rapidamente os sofisticados sistemas de armas necessários, ao mesmo tempo em que lida com questões logísticas e de fornecimento. Este cenário sublinha a necessidade urgente de reforçar e expandir a infraestrutura industrial de defesa para responder eficazmente às exigências contemporâneas.

Durante a Guerra Fria, especialmente na década de 80, a Europa Ocidental possuía uma base industrial de defesa robusta. As Royal Ordnance Factories (ROF), por exemplo, empregavam cerca de 20.000 pessoas e fabricavam uma vasta gama de produtos, desde armas pequenas até carros de combate Challenger I. No entanto, o fim da Guerra Fria e a subsequente redução dos orçamentos de defesa resultaram em um declínio acentuado desta capacidade.

A análise das últimas feiras internacionais de defesa revela uma realidade preocupante: poucos nomes históricos europeus ainda estão presentes, e a capacidade de conceber e produzir veículos de combate terrestre complexos parece consideravelmente reduzida, que o diga aeronaves de ponta. No auge da Guerra Fria, a Europa ostentava dezenas de fabricantes independentes de veículos blindados e sistemas de defesa, simbolizando uma era de robusta autossuficiência e inovação. Em contraste, a paisagem atual mostra muitos desses fabricantes absorvidos por conglomerados maiores ou simplesmente desaparecidos, evidenciando um declínio significativo na diversidade e capacidade industrial.

A Dinâmica dos EUA no Mercado de Defesa

Nas últimas décadas, os Estados Unidos perderam participação de mercado na Europa e em outros lugares para novos equipamentos, em parte devido à política de transferência de excedentes via FMS (Foreign Military Sales) do Departamento de Defesa dos EUA. Este mecanismo, permite a transferência de meios e sistemas dos estoques norte americanos, para novos operadores por um custo muito baixo, o que torna-se uma opção muito atraente, possibilitando a vários países considerados aliados, a aquisição de diversos tipos de sistemas e meios a um custo incomparável, especialmente para veículos e aeronaves, o que por um lado ajuda a reduzir os estoques norte americanos, por outro, acaba resultando na redução da exportação de sistemas novos de fábrica, impactando na BID dos EUA.

Nos anos 80, os EUA eram líderes incontestáveis no mercado de exportação de veículos de combate e sistemas, com exportações significativas de carros de combate M60 e M1 Abrams, além dos veículos blindados de combate de infantaria Bradley para aliados da OTAN e outros parceiros estratégicos. No entanto, desde o início dos anos 2000, a participação dos EUA nesse mercado tem diminuído, em parte devido aos custos elevados e à complexidade tecnológica dos novos sistemas, que os tornam menos acessíveis para muitos países, além das restrições políticas que tem sido cada vez maiores.

Comparativos Históricos: Europa vs. Coreia do Sul, Türkiye e China

Nas últimas três décadas, a Coreia do Sul emergiu como um forte competidor no mercado global de defesa. Nos anos 80, a indústria de defesa sul-coreana estava em grande parte dependente de tecnologia estrangeira e importações. Porém, a partir dos anos 90, o país iniciou uma política de autossuficiência e desenvolvimento tecnológico independente. 

O obuseiro K9 Thunder SP, é um exemplo notável desse avanço, tendo sido amplamente exportado para países como Austrália, Estônia, Finlândia, Egito, Índia, Noruega, Polônia e Türkiye, assim como o carro de combate K2 Black Panther, que tem emergido como um importante concorrente no mercado internacional, tendo a Polônia como principal cliente. Em 2022, a Hanwha assinou um grande contrato de armas com a Polônia, incluindo a produção local de componentes, destacando a estratégia bem-sucedida de co-produção e transferência de tecnologia da Coreia do Sul.

Türkiye, nos anos 80, dependia fortemente de importações para suas necessidades de defesa. No entanto, nas últimas três décadas, o país fez um esforço concentrado para desenvolver sua indústria de defesa. A FNSS e a Otokar são exemplos de empresas que se tornaram líderes no desenvolvimento e exportação de veículos blindados, assim como a TAI e a Baykar tem se destacado no desenvolvimento e exportação de soluções no campo de aeronaves tripuladas e não tripuladas.

Türkiye agora é autossuficiente em muitos sistemas terrestres e navais, tendo conseguido grandes encomendas de exportação, especialmente no Oriente Médio, África e Ásia. Em 2023, a Otokar continuava a expandir sua presença global com produtos como o veículo blindado Arma 8x8 e o carro de combate leve Tulpar, bem como o STM tem conquistado o mercado naval com as corvetas do projeto MILGEM.

A China, nas últimas três décadas, transformou-se de um importador de tecnologia de defesa para um dos maiores exportadores globais. Nos anos 80, a indústria de defesa chinesa estava em grande parte focada em copiar e adaptar tecnologias estrangeiras. No entanto, a partir dos anos 2000, a China investiu pesadamente em pesquisa e desenvolvimento, resultando em sistemas de armas avançados.

Em 2023, a China era um dos maiores exportadores de veículos de combate terrestres, competindo diretamente com os EUA e Europa em mercados africanos e asiáticos. A Norinco, empresa estatal chinesa, é um exemplo de sucesso, com produtos como o VT4 sendo exportados para países como Paquistão e Tailândia.

Consolidação e Perda de Capacidade Soberana

A consolidação da indústria de defesa europeia é evidente com a formação de conglomerados como a KNDS, uma fusão entre a Nexter (Francesa) e a KMW (Alemã). No entanto, essa consolidação frequentemente resulta na redução da diversidade industrial e na perda de capacidade. Muitos subcontratantes importantes foram adquiridos por empresas estrangeiras, como a WFEL/KNDS UK pela KMW/KNDS Germany e a Pearson Engineering pela israelense Rafael.

Os programas de defesa atuais, como o Main Ground Combat System (MGCS), destacam os desafios de colaboração internacional. O MGCS, destinado a substituir os carros de combate Leopard 2 e Leclerc, enfrenta obstáculos significativos em termos de compartilhamento de trabalho e cooperação entre países, o que pode resultar em atrasos e comprometimento no produto final.

A participação de múltiplos países, como a Itália e a Polônia no MGCS aumenta a complexidade do programa, especialmente em termos de compartilhamento de trabalho e alocação de contratos. Essa fragmentação pode levar a atrasos e aumentar os custos de desenvolvimento, impactando a eficácia do projeto, além de limitar a amplitude industrial, com a concentração de produção em polos, reduzindo assim o número de empregos e reduzindo o desenvolvimento das cadeias de suprimento.

Apesar dos desafios, há sinais de revitalização. A Noruega anunciou a criação de uma linha de produção local para o Leopard 2A8NOR com RITEK  tornando-se a subcontratada oficial para a produção e manutenção dos carros de combate Leopard 2A8 na Noruega, e a Santa Barbara Sistemas da GDELS na Espanha reativou sua linha de componentes para armas de grande calibre. Esses esforços demonstram a importância de manter uma capacidade industrial robusta.

Impacto da Proximidade Geopolítica

A proximidade à fronteira russa tem influenciado o nível de atividade industrial e urgência na revitalização da capacidade de defesa europeia. Países escandinavos e os Estados Bálticos, por exemplo, têm mostrado maior dinamismo na modernização de suas forças armadas em comparação com outras partes da Europa.

A guerra na Ucrânia ressaltou a necessidade urgente de reforçar a base industrial de defesa europeia. A Europa deve unir esforços para garantir que suas capacidades industriais estejam à altura dos desafios futuros, preservando sua soberania e independência tecnológica. A revitalização da indústria de defesa não é apenas uma questão de segurança, mas também de garantir a capacidade de resposta eficiente diante de ameaças emergentes. Comparado aos avanços de países como Coreia do Sul, Türkiye e China, a Europa enfrenta um desafio significativo, mas não insuperável, se houver uma vontade coletiva de investir em inovação e colaboração estratégica.


Dados Comparativos (1980-2023)


- Emprego na Indústria de Defesa:

  - Europa: 1980 - 20.000 nas ROF no Reino Unido; 2023 - aproximadamente 5.000.

  - Coreia do Sul: Crescimento de algumas centenas nos anos 80 para cerca de 40.000 empregados em 2023.

  - Türkiye: Menos de 5.000 nos anos 80 para cerca de 50.000 em 2023.

  - China: Indústria de defesa cresceu de cerca de 500.000 nos anos 80 para mais de 2 milhões em 2023.


- Exportações de Veículos de Combate:

  - Europa: Redução significativa; domínio nos anos 80 com exportações de carros de combate Leopard e Challenger para declínio nos anos 2000-2023.

   - Coreia do Sul: Aumento significativo de exportações de sistemas como o K9 Thunder e o K2 Black Panther.

  - Türkiye: Crescimento notável nas exportações de veículos como o Otokar ARMA e FNSS PARS.

  - China: Crescimento explosivo nas exportações de veículos como o VT4 e VN1.


- Investimentos em P&D:

  - Europa: Declínio relativo em comparação aos anos 80, com uma leve recuperação pós-2014.

 - Coreia do Sul: Aumento contínuo, com grandes investimentos desde os anos 90.

  - Türkiye: Crescimento robusto em investimentos de P&D desde os anos 2000.

  - China: Investimentos massivos em P&D desde os anos 2000, superando todos os competidores não-americanos.


Esses dados refletem as mudanças dinâmicas e o reposicionamento das capacidades de defesa globalmente, destacando a necessidade da Europa reavaliar e fortalecer sua base industrial de defesa para garantir sua segurança e autonomia no futuro.


Lições para o Brasil

Os exemplos da Europa, Türkiye, Coreia do Sul e China fornecem lições valiosas para o Brasil no fortalecimento de sua indústria de defesa. É essencial que o Brasil invista continuamente em pesquisa e desenvolvimento para manter uma base industrial competitiva e autossuficiente, além de criar incentivos aos cursos de formação voltados aos campos tecnológicos, ampliando a mão de obra especializada.

Além disso, políticas governamentais favoráveis que incentivem a produção local e protejam contra dependências externas são fundamentais. Buscar parcerias estratégicas internacionais para transferência de tecnologia e expandir o alcance no mercado global também se mostra crucial.

Diversificar a base industrial e inovar em novas tecnologias são passos necessários para criar um ecossistema robusto e resiliente capaz de atender às demandas emergentes do mercado de defesa.

Adotando essas estratégias, o Brasil pode fortalecer sua indústria de defesa, garantindo maior soberania e capacidade de resposta em tempos de crise.


Por Angelo Nicolaci 

Colaboração: Sophya


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