quarta-feira, 11 de outubro de 2023

Segunda Guerra do Yom Kippur e lições para o Brasil


Em 6 de outubro de 1973, durante o feriado religioso do Yom Kippur, um dos mais importantes do judaísmo, Israel foi atacado de surpresa em dois fronts, Egito pelo sul e Síria pelo norte.

Os inimigos avançaram rapidamente, aproveitando-se não apenas do elemento surpresa, mas também devido à demora de Israel em conseguir mobilizar seus reservistas, já que muitos estavam fora de casa, aproveitando o feriado, e as comunicações da época não eram tão boas quanto as de hoje.


Após uma série de reveses iniciais, e a grande custo, Israel conseguiu impedir o avanço dos árabes, e depois conseguiu empurrá-los de volta aos seus países. Israel conseguiu, inclusive, ficar a poucos quilômetros de Damasco, e também avançaram bastante no Egito, antes do fim da guerra.


A União Soviética, importante aliado dos árabes, enviou armas por via aérea. Cerca de uma semana depois, os EUA, por meio da Operação Nickel Grass, também enviaram armas para Israel por via aérea.


Todos estes fatos históricos, quando relembrados neste momento, causam uma forte sensação de déjà vu.


Na manhã do dia 7 de outubro de 2023, durante o Simchat Torah, outro importante feriado judaico, terroristas do Hamas fizeram um ataque muito forte contra Israel, com incursões por terra (inclusive com túneis), mar (com uso de botes e outros meios) e ar (com uso de paragliders e outros meios).


Embora ainda não tenhamos maiores informações, é evidente que o ataque foi muito bem organizado e executado, pegando Israel totalmente de surpresa.


As IDF (Forças de Defesa de Israel) levaram muitas horas para reagir, e no momento em que escrevemos este artigo, mais de 72h depois dos ataques iniciais, ainda havia terroristas do Hamas em território israelense.


Não vamos nos deter em relação às atrocidades cometidas pelo Hamas, algumas das quais já descritas neste artigo, mas vamos fazer uma análise, tão isenta quanto possível, das questões militares envolvidas, e das implicações para o Brasil.


A SURPRESA DE ISRAEL


A primeira coisa que chama a atenção em relação a toda essa estória é o fato de que Israel foi pego de surpresa.


Não vamos aqui nos deter com "teorias da conspiração" - "Israel planejou tudo isso" - já que, como de costume em tais "teorias", não há provas concretas, mas sim analisar como o país que conta com um dos melhores aparatos de Inteligência foi pego de surpresa.


Primeiramente, é importante lembrar que, por melhor que seja a comunidade de Inteligência de Israel, eles ainda são humanos e, portanto, passíveis de falhas. Ainda não sabemos o que causou o "apagão", mas que ele aconteceu é algo evidente.


Em segundo lugar, devemos dar crédito ao Hamas, que não só planejou, provavelmente por anos, uma ação tão grandiosa com um nível enorme de sigilo, como também conduziu uma operação magistral de desinformação, dando a entender, através de vários canais, que não tinha interesse em conflitos com Israel no momento.


Adicionalmente, e compondo os pontos anteriores, Israel pode ter colocado uma confiança exagerada em seus sensores automatizados de vigilância, deslocando pessoal do Oeste, junto à Faixa de Gaza, para o Leste, junto à região da Judeia e Samaria (também conhecida como Cisjordânia). Isso trouxe dois problemas que facilitaram o 'trabalho' do Hamas - os postos de vigilância estavam com pouco pessoal, e aumentou tempo de reação de Israel.


Outro ponto importante é que o Hamas aprendeu não apenas com seus próprios erros, mas também com as experiências de outros, inclusive com a Guerra Russo-Ucraniana. Sistemas como o Iron Dome (defesa anti mísseis) e Trophy (defesa para blindados) causaram grandes problemas para o Hamas em ações anteriores, e desta vez não foram tão eficientes.


O Hamas derrotou o Iron Dome através de ataques de saturação, lançando várias centenas de foguetes contra cada alvo, de forma que foi impossível conter todos os ataques. Já o Trophy se mostrou incapaz de proteger os blindados contra ataques por 'drones'. Outros blindados foram destruídos por ataques de saturação, envolvendo armas como o RPG-7, além de, provavelmente, alguns deles estarem em baixa prontidão.


Israel, pelo contrário, não incorporou as lições da Ucrânia, mostrando-se incapaz de combater os drones do Hamas, que destruíram vários alvos em Israel.


Israel também posicionou seus obuseiros lado a lado, em posições fixas, situação esta que causou inúmeras perdas na Ucrânia, pois mesmo um pequeno drone, se atingir as munições e causar explosões secundárias, poderia causar perdas significativas.


Outro ponto fundamental é a ação de atores estrangeiros. Suspeita-se fortemente que o Irã esteja coordenando, ou no mínimo dando apoio material, ao Hamas.


Além disso, o Hizballah (também grafado Hezbollah) começou a atacar Israel a partir do Líbano, e ataques a partir da Síria (feitos pelo Hizballah ou por forças iranianas presentes no país) também foram relatados.


Um voo partindo da Síria para o Irã foi relatado, e embora ainda não tentamos maiores informações sobre seus objetivos, é bem provável que envolva o transporte de armas.


De modo semelhante, os EUA não só deslocaram a Sexta Frota, que inclui um NAe (navio-aeródromo, "porta aviões"), como também considera fazer uma incursão para resgatar cidadãos americanos feitos reféns pelo Hamas, e também começaram a enviar armas para Israel por via aérea, de modo semelhante à Operação Nickel Grass, aumentando ainda mais as semelhanças com a guerra de 1973.


Finalmente, mas também bastante importante, os tempos de resposta e de mobilização das IDF foram bastante inadequados.


Há relatos de que civis, desesperados, pediram socorro por mais de 6 horas, e ainda assim o socorro não chegou a tempo. A tragédia só não foi ainda pior porque, como há um número considerável de veteranos das IDF espalhados pela sociedade israelense, muitos deles agiram por conta própria, com relatos de soldados da reserva com mais de 70 anos pegando em armas e eliminando vários terroristas. Embora tais ações heroicas sejam admiráveis, não deveriam ter sido necessárias.


Levou cerca de 48 horas para conseguir a mobilização adequada, com vários relatos de problemas na distribuição de armas e equipamentos - um tempo relativamente longo, ao se considerar a realidade geográfica de Israel, com distâncias bastante reduzidas.


LIÇÕES PARA O BRASIL


Cada um dos pontos apontados acima traz lições extremamente importantes para o Brasil.


A mais importante de todas é aprender a reconhecer os verdadeiros inimigos, internos e externos, e preparar uma vigilância adequada. Ao contrário dos "terroristas" desarmados que só representam perigo em mentes vazias e fracas, o Brasil precisa se proteger de terroristas verdadeiros.


Sabe-se que regiões como a Tríplice Fronteira (entre Brasil, Argentina e Paraguai) abriga células de grupos como o Hamas e o Hizballah, além do perigo do Estado paralelo dos narcoterroristas, que já causam inúmeros problemas em países como a Colômbia e o México, e muitos destes grupos já estão, direta ou indiretamente, atuando no Brasil.


Estes grupos criminosos são cada vez mais criativos e perigosos, e devem ser monitorados e interrompidos antes de causar problemas - tentar remediar depois da tragédia é muito pior, em todos os sentidos possíveis, como ficou bastante claro nas ondas de ataques contra escolas, que causaram muitas vítimas, além de deixar inúmeras famílias apreensivas e sobrecarregar os aparatos policiais.


Em segundo lugar, nossa comunidade de Inteligência não é nem de longe considerada eficiente como a israelense. Embora, felizmente, boa parte disto se deve ao fato de que nosso entorno geopolítico é muito mais benigno do que o israelense, não deve servir de justificativa para sermos lenientes.


Ações como o intercâmbio com outras agências, melhor treinamento e equipamento, e melhores políticas de captação de recursos humanos, fugindo de "jabuticabas" como o concurso público para agências de Inteligência, podem e devem ser buscadas, bem como um maior aporte e gestão cada vez mais eficiente de recursos financeiros.


Mesmo com a alta tecnologia dos sistemas de vigilância israelenses, que só precisam vigiar uma fronteira de pouco mais de 100 km junto à Faixa de Gaza, houve uma grande incursão de terroristas. Nossas fronteiras terrestres se estendem por milhares de quilômetros, a maioria deles em regiões isoladas e até mesmo inóspitas, portanto o desafio é exponencialmente maior do que o israelense.


Aparatos como o Sistema de Gerenciamento da Amazônia Azul (SisGAAz), Sistema Integrado de Monitoramento de Fronteiras (SISFRON) e Sistema de Vigilância da Amazônia (Sivam) precisam ser melhorados e ampliados. Nossas fronteiras são extremamente porosas, e tal situação não é nada segura para o Brasil.


Outra questão importante, e que já tratamos em outros artigos, é a importância de uma BID (Base Industrial de Defesa) robusta.


Embora Israel conte com uma BID bastante forte, relatos da IAF (Força Aérea Israelense) comprovam que a guerra moderna pode consumir cem toneladas de PGM (munições guiadas de precisão, "armas inteligentes") em um único dia, portanto é importante não só dispor de uma quantidade adequada destes e outros meios, como também devemos ser capazes de produzir tantos deles quanto possível com pouco ou nenhum sobreaviso.


Ademais, é temerário colocar nossa Defesa nas mãos de terceiros. A Rússia, apesar de uma poderosa BID, está com dificuldades em cumprir contratos de fornecimento de armas a vários de seus clientes, inclusive a Índia, que usam suas armas há mais de meio século, e até mesmo os EUA se encontram com prazos muito dilatados para fornecer certos sistemas.


Esta dificuldade em fornecer as armas ainda não leva em consideração questões como embargos e sanções. Como o Brasil viu bem de perto, situações como "violações de direitos humanos" podem ser usadas como justificativa para dificultar ou impedir o fornecimento de armas e/ou subsistemas, como foi o caso de componentes do grupo moto propulsor dos blindados Guarani que o Brasil pretende exportar para as Filipinas.


Nada impede que, no futuro, o próprio Brasil seja impedido de adquirir armas devido a acusações de "violações ambientais", como os países da União Europeia já costumam fazer contra o Brasil em negociações com o Mercosul em relação ao nosso agro, e não é impossível que venham a usar tais acusações para embasar sanções referentes à venda de armas.


De forma semelhante, não podemos pensar que o entorno geopolítico será sempre benigno. Nações não têm amigos, têm interesses, e estes interesses mudam conforme o tempo.


A consequência é que países cujos interesses estejam bem alinhados hoje podem estar em campos opostos em pouco tempo. Um exemplo é o Irã - o país era um importante aliado dos EUA e de Israel em 1978, mas em 1979, após a Revolução Islâmica, tornou-se um inimigo ferrenho de ambos.


O Brasil não deve considerar que os alinhamentos geopolíticos de hoje estão escritos em pedra - pelo contrário, estão escritos em areia, e mudanças drásticas podem acontecer em questão de poucos meses ou anos, reforçando, novamente, a importância de uma BID bem estabelecida, e também a necessidade de buscar novas oportunidades no mercado de Defesa.


Países como Turquia, Índia e Coreia do Sul já despontam como grandes fornecedores de armas no mercado mundial. Outros países também estão ganhando espaço, como os Emirados Árabes Unidos e Japão.


O importante é diversificar os fornecedores, saindo da nossa forte dependência dos EUA e demais países da OTAN, que são mais propensos a implementar sanções até mesmo contra países de destaque geopolítico, como Rússia e China. O Brasil não está, de maneira nenhuma, isento de entrar para estas "listas negras".


Um ponto extremamente importante, e que já falamos diversas vezes neste site, é a "guerra dos drones". O Brasil precisa, com urgência, entrar de vez na era dos drones, tanto em termos de operação como em termos de defesas contra drones. A guerra na Ucrânia mostrou novamente, como se fosse necessário mais provas, que o campo de batalha moderno envolve drones em todos os domínios - terra, mar e ar - e quem não operar drones e não conseguir impedir a operação dos drones inimigos estará em grande desvantagem.


Outro ponto importante, apesar da oposição dos atuais governantes, é que civis devidamente armados e treinados podem evitar tragédias. Embora não tenhamos como manter um número tão elevado de reservistas treinados e armados como os israelenses, podemos e devemos ter programas de preparo da população civil, facilitando o acesso dos bons cidadãos a armas adquiridas legalmente.


Semelhantemente, é fundamental melhorar o tempo de resposta das Forças Auxiliares - relatos de que Bombeiros e Polícia Militar ou demoram demais para atender a ocorrências, ou sequer aparecem, são numerosos demais para serem considerados apenas reclamações infundadas. As Forças Auxiliares precisam ser bem treinadas e equipadas, de forma que possam atender satisfatoriamente ao contribuinte que, afinal de contas, paga seus salários.


Queremos acreditar que situações de atendimento inadequado se devem à sobrecarga de trabalho e inadequação de sistemas de coordenação destes valorosos profissionais, que obviamente se sentem tristes quando não conseguem atender à população da forma como gostariam.


Soluções relativamente simples, como uma central única de atendimento, por exemplo com o número universal 190, com atendentes devidamente treinados acionando os meios mais adequados, certamente ajudariam a direcionar melhor os  meios disponíveis, evitando assim tanto a duplicidade de forças em certas situações como a ausência de forças em outras.


Por fim, e compondo com o ponto anterior, o Brasil precisa melhorar seu sistema de mobilização de reservistas. O Exercício de Apresentação da Reserva (EXAR), no atual formato, é mera questão burocrática, mantendo alguns dados atualizados em função da importância, para o cidadão, de ter sua situação de alistamento obrigatório devidamente documentada.


Entretanto, o EXAR não significa absolutamente nada em relação a uma mobilização de emergência que, embora torçamos para que nunca seja necessária, ainda precisa ser devidamente preparada e treinada com frequência, de forma que, se necessários, os reservistas estejam preparados em pouco tempo.


Como Israel demonstrou claramente, mesmo um país do tamanho de Sergipe e que mobiliza seus reservistas com regularidade teve dificuldades em dispor deles rapidamente quando foi necessário. O desafio brasileiro certamente seria muito mais complexo, já que nosso país tem dimensões continentais, e nossa infraestrutura civil de transportes é inadequada.


Adequar o sistema de mobilização de reservistas inclui dispor de recursos adequados para equipá-los quando mobilizados, inclusive transporte, acomodação, alimentação, armamentos e indenizações (por lucros cessantes, ausências no trabalho, etc).


CONCLUSÃO


Além da ojeriza a ações terroristas como as executadas pelo Hamas, o Brasil precisa aprender as lições de conflitos ao redor do mundo, inclusive desta guerra em Israel.


Questões como dependência excessiva em tecnologias, adequação sistemas de vigilância e eficiência de mobilização de reservistas precisam ser tratadas com máxima urgência, pois nossa situação atual é claramente inadequada nestes quesitos.


Embora nossa condição geopolítica seja muito mais benigna do que a israelense, tudo pode mudar em muito pouco tempo - basta olhar a própria situação ucraniana, que em 2013 tinha excelentes relações com a Rússia e no ano seguinte foi invadida pelos vizinhos.


Concluímos este artigo com a frase imortal do inolvidável Ruy Barbosa:


"O Exército pode passar cem anos sem ser usado, mas nem um minuto sem estar preparado!"


Por Renato Henrique Marçal de Oliveira - Químico e trabalha na Embrapa com pesquisas sobre gases de efeito estufa. Entusiasta e estudioso de assuntos militares desde os 10 anos de idade, escreve principalmente sobre armas leves, aviação militar e as IDF (Forças de Defesa de Israel)


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