quarta-feira, 18 de agosto de 2021

A desastrosa retirada americana do Afeganistão - passado, presente e (provável) futuro

Em 7 de outubro de 2001, menos de um mês após os terríveis atentados de 11 de setembro, os EUA lançaram uma série de mísseis Tomahawk contra alvos da al Qaeda no Afeganistão, iniciando aquela que se tornou a guerra mais prolongada da história dos EUA, culminando, em 6 de julho de 2021, com uma retirada "com o rabo entre as pernas", na calada da noite, sem sequer comunicar a ação aos parceiros militares no Afeganistão! Como isso aconteceu?

Um Boeing Vertol CH-46 Sea Knight retira pessoas da Embaixada dos EUA em Kabul (esquerda), uma imagem praticamente idêntica à da queda de Saigon, em 1975 (direita). Curiosamente, a aeronave das duas fotos é exatamente a mesma, já que, apesar de ter saído do serviço militar em 2015, o Sea Knight ainda serve ao Departamento de Estado americano!

Durante os quase 20 anos em que os EUA estiveram no país, inúmeros erros militares aconteceram, mas na verdade a história começou muitos anos antes, em 19 de junho de 1940, no atual Vietnã, então Indochina.

VIETNÃ, EXEMPLO DA "GUERRA POR PROCURAÇÃO"

Naquela data, o Japão começou uma pesada ofensiva diplomática na Indochina, então colônia francesa, aproveitando-se do fato que a França tinha sido derrotada pela Alemanha nazista e estava num processo de transição para o governo marionete de Vichy. A França, sem condições de resistir, cedeu à pressão japonesa, apenas para sofrer uma ofensiva atrás de outra.

Esta ofensiva diplomática japonesa culminou numa rápida invasão militar, e em apenas 4 dias, entre 22 e 26 de setembro, o Japão conquistou a Indochina. Após negociações com a França, permaneceu controlando a porção norte do país, "devolvendo" parcialmente o sul da península para a França. Era o auge da Guerra Sino Japonesa, e a fronteira entre a Indochina e a China era de grande importância estratégica para os planos japoneses. O Japão já sofria também com os embargos americanos que levariam ao ataque a Pearl Harbor em 1941, e a navegação no Mar do Sul da China seria muito mais fácil caso o Japão dominasse a Península da Indochina.

A invasão japonesa foi o estopim para a organização do Viet Minh, um movimento vietnamita de resistência de inspiração comunista, que causou muita dor de cabeça aos japoneses até o final da Guerra, da mesma forma que a Resistência Francesa na Europa nazista.

Após a libertação da França em 1944, o Japão cancelou todos os acordos diplomáticos com os franceses e estabeleceu o "Império do Vietnã", um "governo marionete" que perdurou até o final da Segunda Guerra.

Aproveitando-se do caos pós Segunda Guerra Mundial, o Viet Minh conquistou o governo da Indochina; a França tentou resistir, mas sem muito sucesso, embora conseguisse manter a porção sul da península. Era a Guerra da Indochina.

A Guerra Fria interferiu bastante neste conflito, e já em 1950 a URSS reconheceu a "República Democrática do Vietnã", ou Vietnã do Norte, com a capital em Hanoi, sob o poder do Viet Minh, e os os Aliados (França, Inglaterra, EUA) reconheceram o "Estado do Vietnã", ou Vietnã do Sul, com capital em Saigon, governado pelo "imperador", aquele estabelecido pelo Japão, anos antes.

Ainda em 1950, com a Guerra da Coreia em andamento, URSS e China passaram a apoiar militarmente o Vietnã do Norte, e os EUA e França passaram a apoiar militarmente o Vietnã do Sul.

A França abandonou em definitivo a região entre 1954 e 1955, iniciando-se um período de grande convulsão interna nas duas porções do Vietnã. Os EUA assumiram uma presença militar cada vez maior no Vietnã do Sul, embora se limitassem a apoiar o país, sem enfrentar diretamente o Vietnã do Norte.

Mas, em 1964, com o chamado "Incidente do Golfo de Tonkin", os EUA passaram a atacar diretamente o Vietnã do Norte, começando assim o conflito que ficou conhecido como Guerra do Vietnã; não vamos nos aprofundar muito sobre este conflito neste momento.

O Vietnã do Norte, agindo diretamente ou através do grupo Viet Cong ("sucessor" do Viet Minh), recebeu forte apoio chinês e, principalmente, soviético, durante a Guerra do Vietnã. A URSS via com bons olhos a expansão de movimentos de inspiração comunista mas, para não guerrear diretamente com os EUA, fizeram ali uma "guerra por procuração", em que o Vietnã do Norte foi o "procurador".

Tais conflitos eram muito comuns durante a Guerra Fria, como por exemplo na Coreia, mas nunca antes uma guerra tinha sido tão longa para os EUA, e poucas foram tão sangrentas e custosas. Nos quase 10 anos de guerra, morreram quase 60 mil soldados americanos, além de mais de 150 mil feridos, num total de mais de 210 mil baixas.

A Guerra do Vietnã teve muitas características marcantes, das quais destacaremos as seguintes:

  • Falta de objetivos claros. Ao contrário de conflitos anteriores, como a Guerra da Coreia, não havia objetivos claros quando a guerra começou. Isso dificultou bastante a ação militar, pois sem objetivos claros é difícil o planejamento. O fato que a segurança direta dos EUA e de aliados não estava sob ameaça devido à situação do Vietnã dificultava bastante a definição de objetivos militarmente válidos.
  • A falta de objetivos claros tem outra consequência direta, a falta de uma "estratégia de saída", ou seja, uma forma de conseguir sair do conflito com "direito a cantar vitória" - sem objetivos claros, como se pode falar que venceu? A falta de uma "estratégia de saída" claramente definida gerava também um grande risco político ao Presidente que decidisse encerrar a guerra, pois seria visto como perdedor e/ou traidor, e seus prospectos políticos nos EUA depois de receber tal pecha seriam nulos, isso se conseguisse escapar da prisão. Seu partido também sofreria muito nas urnas, o que representava um risco político inaceitável.
  • Falta de apoio doméstico e internacional. Países como a Inglaterra, tradicional aliada dos EUA, não apoiavam a presença americana no Vietnã, em parte pela falta de objetivos claros, e não apoiou os EUA naquele conflito. Diversos outros países tinham sérias reservas, e até clara oposição, ao envolvimento americano no Vietnã. Internamente, a falta de apoio também era generalizada, fazendo com que tanto a diplomacia como a política interna americana andassem "no fio da navalha" durante todo o conflito. O receio de que a China e/ou a URSS entrassem diretamente no conflito era outro complicador importante.
  • Ingerência política em assuntos militares. Para atender as demandas conflitantes em termos de diplomacia e política interna, a ingerência política era generalizada, com diversos planos militares sendo cancelados ou modificados para acomodar questões puramente políticas, o que erodiu boa parte da superioridade militar americana frente os guerrilheiros vietnamitas. Para piorar ainda mais a situação, pedidos militares por ações mais enérgicas e/ou por mais tropas eram frequentemente ignorados.
  • O Viet Cong era um inimigo temível, muito aguerrido e combativo, ao contrário das FFAA (Forças Armadas) do Vietnã do Sul. Corrupção, ingerência, desinteresse, eram problemas generalizados, de modo que as vitórias do Vietnã do Sul, sem apoio americano, eram incomuns. Sempre houve o receio de que os aliados americanos ruiriam como um castelo de cartas assim que Washington ordenasse a retirada.

O resultado é bem conhecido - após vários anos de ingerência política em relação às ações militares, os EUA saíram em definitivo em 1973, após a assinatura de um acordo de paz com o Vietnã do Norte em Paris, mas em seguida o Vietnã do Norte seguiu a guerra contra o Vietnã do Sul, tomando Saigon e unificando o país sob a bandeira comunista em 1975.

A retirada do pessoal americano e seus apoiadores vietnamitas a partir da embaixada americana em Saigon, em especial, se tornou o símbolo máximo da humilhante saída dos EUA daquele conflito.

Embora, de certa forma os EUA tenham ganho a guerra (assinatura de um tratado de paz em termos relativamente favoráveis aos EUA), na opinião pública em geral e na de vários especialistas no assunto, na verdade os EUA perderam aquela guerra, pois o país terminou unificado sob uma bandeira comunista, ao contrário do que os EUA desejavam ao se envolver na região nos anos 1950.

Uma consequência da Guerra do Vietnã foi o surgimento da "Doutrina Powell", que foi assunto deste artigo no GBN News. De forma resumida, os EUA não deveriam jamais entrar em outra guerra sem objetivos claros e alcançáveis por meios militares, sem forte apoio interno E externo, ou com ingerência política em assuntos militares.

A VINGANÇA AMERICANA

Já na década de 1970, o Afeganistão, que já tinha sido palco de inúmeros conflitos ao longo de sua longa história, fazia uma transição para deixar de ser um país "de Terceiro Mundo", mas a modernização não era vista com bons olhos por grupos fundamentalistas muçulmanos.

A rede de Inteligência americana, que inclui a espionagem, naquela época já incluía satélites, e mostrava que a URSS estava em decadência, e uma guerra prolongada seria desastrosa para os soviéticos.

Como a URSS, além de vizinha, era um parceiro comercial e militar importante para o Afeganistão, assim como os EUA eram para o Vietnã do Sul, Zbigniew Brzezinski, Conselheiro de Segurança Nacional do Presidente Jimmy Carter, percebeu uma oportunidade de se vingar dos soviéticos, arrastando-os para uma guerra parecida com a do Vietnã, através de apoio aos guerrilheiros afegãos, assim como a URSS tinha apoiado o Viet Minh e o Viet Cong, anos antes.

Os EUA começaram, timidamente, a apoiar os guerrilheiros afegãos, inicialmente com apoio direto e indireto do Paquistão e da China, e aos poucos o país se dirigia para uma guerra civil. O plano de Brzezinski deu certo.

Como a URSS tinha muitos interesses no Afeganistão, começou a se envolver na guerra civil do país, o que levou a ataques dos guerrilheiros contra pessoal e instalações soviéticas, e ainda em 1979 teve início a Guerra Soviético-Afegã.

O filme "Jogos de Poder", de 2007, mostra um pouco desta saga, que também foi romantizada no filme "Rambo 3". O sucessor de Carter, Ronald Reagan, aprofundou ainda mais o apoio americano aos guerrilheiros afegãos, e o resultado foi uma longa, penosa e custosa guerra, que durou quase dez anos, terminando em 1989.

Muitos especialistas concordam que a Guerra Sovíetico-Afegã acelerou ainda mais a queda da URSS em 1991, deixando os EUA como a potência hegemônica no mundo pelas próximas décadas.

QUEM PLANTA VENTO...

Em 1990, com a Guerra Fria chegando ao fim, vários conflitos começaram nos quatro cantos do planeta, e um deles foi a Guerra do Golfo de 1991. A "Doutrina Powell" foi seguida ao pé da letra, mesmo porquê Powell era o Chefe do Estado Maior Conjunto das Forças Armadas Americanas à época, e os EUA alcançaram uma vitória esmagadora, enterrando de vez o fiasco do Vietnã.

Como parte do envolvimento americano naquele conflito, dezenas de milhares de militares americanos foram enviados à Arábia Saudita, país de origem do islamismo, e muitos fundamentalistas muçulmanos ficaram extremamente desgostosos com a presença de tantos "infiéis" no berço do Islã. Muitos destes fundamentalistas tas já viam os EUA como o "Grande Satã" (e Israel como o "Pequeno Satã"), e esta "invasão" foi o estopim para uma onda de atentados terroristas contra objetivos os ocidentais em geral, e americanos em especial.

Um destes fundamentalistas, o saudita Osama bin Laden, tinha sido uma figura central na Guerra Soviético-Afegã, e já na época comandava o grupo terrorista al Qaeda, que inclusive assumiu a responsabilidade por vários atentados contra os EUA.

Como bin Laden tinha lutado lado a lado com os guerrilheiros afegãos, a al Qaeda tinha no Afeganistão um importante centro para operações e treinamento, o que levou os EUA a, pouco a pouco, cortarem o relacionamento relativamente amistoso com o Afeganistão.

Mas o pior estava por vir.

Em 11 de setembro de 2001, os EUA foram fustigados por vários atentados terroristas, dos quais os ataques às Torres Gêmeas do World Trade Center causaram as maiores baixas.

Não demorou para que as agências de inteligência americana apontassem a al Qaeda como responsável pelos ataques, e os EUA deram um ultimato aos Taleban, grupo fundamentalista que na época detinha o poder no Afeganistão, para que entregassem bin Laden e expulsassem a al Qaeda do seu território.

O Taleban se recusou, os EUA abriram o conflito com uma "chuva" de mísseis de cruzeiro Tomahawk em 7 de outubro de 2001, e pouco tempo depois enviaram um grande número de tropas ao país, começando assim a GWOT (Guerra Mundial Contra o Terrorismo), e a Guerra do Afeganistão foi a primeira de muitas guerras e batalhas americanas ao redor do globo no Século 21. Os antigos aliados afegãos agora eram inimigos ferrenhos dos americanos.

Pouco tempo depois de invadir o Afeganistão, em 2003, os EUA também começaram uma guerra contra o Iraque, a princípio também no âmbito da GWOT.

Apesar da esmagadora superioridade militar, os EUA não tinham vida fácil nem no Afeganistão nem no Iraque. Neste artigo vamos focar mais no Afeganistão, mas boa parte do que dissermos aqui se aplica também ao Iraque.

ABANDONO DA DOUTRINA POWELL E RESULTADOS AMARGOS

A al Qaeda foi derrotada rapidamente mas, ao invés de desaparecer, o grupo se adaptou aos novos tempos, aumentando sua presença geográfica no Oriente Médio e outros lugares, e inspirando o surgimento de outros grupos, como o Estado Islâmico (ISIS) e o Boko Haram, levando a conflitos grandes e pequenos em vários outros lugares.

O Taleban também se adaptou rapidamente ao estilo de guerra americano, e passou a oferecer grande resistência à presença americana no país. Aguerridos e motivados, os Taleban se mostraram um adversário temível.

Uma pergunta frequente que aparece, tanto no meio militar como na mídia em geral, é como que os EUA, com tamanho poder bélico, "perdeu" para um bando de insurgentes desnutridos, sem instrução nenhuma, sem treinamento militar formal e sem armas pesadas como tanques ou jatos supersônicos?

A resposta é, ao mesmo tempo, simples e complexa - os EUA não se prepararam adequadamente para o conflito.

O primeiro ponto é que, ao contrário do preconizado, os EUA caíram na tentação de fugir à Doutrina Powell. A GWOT, inicialmente, contou com a solidariedade internacional e grande apoio interno, atendendo a dois requerimentos essenciais da Doutrina.

Entretanto, após a derrota da al Qaeda no Afeganistão, o começo da Guerra do Iraque e, principalmente, após a execução de bin Laden em 2011, o apoio interno à guerra despencou. O fato de que a guerra estava causando um grande número de baixas entre os militares americanos (total aproximado de 2,2 mil mortos e 20 mil feridos, números consideravelmente menores que os do Vietnã), levou à erosão do apoio interno, e muitas vozes no país queriam o fim da guerra.

Outro erro que acabou custando muito caro aos EUA foi a falta de uma "estratégia de saída", inclusive devido à tentativa de "democratizar" o país, coisas a que a Doutrina Powell se opõe com veemência. O motivo é muito simples - "democratizar" um país é algo impossível usando-se meramente de meios diplomáticos e militares. Fatores culturais são essenciais, e o Afeganistão simplesmente não teve uma democracia ao estilo ocidental durante sua história milenar, a não ser pela tentativa pré Guerra Soviético-Afegã. Aliás, a tentativa de "democratizar" o país foi um dos principais pontos de contenda entre os soviéticos e os fundamentalistas islâmicos. Sem uma "estratégia de saída", o conflito quase que inevitavelmente seria muito prolongado. 

A ingerência política, em parte impulsionada pela impopularidade do conflito, também foi crucial. Vários militares pediram o envio de mais tropas ao país, mas tais pedidos foram negados, em parte também porque a Guerra do Iraque demandava um grande esforço militar, de tal forma que os esforços em um país prejudicavam os esforços no outro.

O Presidente Obama encerrou formalmente a Guerra do Iraque em 2011, embora a presença militar americana persista até hoje, mas ainda assim não enviou os vários milhares de soldados pedidos por seus generais.

Outro ponto bastante polêmico da GWOT é o uso generalizado de 'drones' (ARP, aeronaves remotamente pilotadas, ou VANT, veículos aéreos não tripulados) para realizar diversos ataques. A vantagem dos drones é que não expõem pilotos humanos ao risco do abate, mas gera a ilusão de que é possível conduzir uma "guerra limpa". O fim da Guerra Fria levou ao sucateamento da rede de Inteligência americana ao redor do mundo de modo geral, e no Afeganistão os efeitos foram muito pronunciados, tanto que levaram quase 10 anos para finalmente eliminar bin Laden. A consequência era que as informações obtidas eram, frequentemente, incorretas, o que levou a muitos ataques contra não combatentes. O Taleban, habilmente, usava o ódio e o ressentimento causados por tais situações para recrutar mais guerrilheiros e minar o apoio dos moradores aos americanos.

Mas o ponto que provavelmente foi o mais importante é que, para muitos afegãos, os Talebans eram vistos com bons olhos, pois tinham resistido aos invasores soviéticos muitos anos antes, e os americanos eram vistos com a mesma desconfiança dirigida aos soviéticos, se não pior, ao contrário, por exemplo, do que aconteceu na Coreia nos anos 1950 e na Europa na Segunda Guerra Mundial. O resultado é que era praticamente impossível contar com o apoio dos moradores locais, e era impossível garantir que as conquistas no campo de batalha iriam perdurar.

Para piorar ainda mais a situação, vários relatos apontam para a corrupção generalizada da liderança afegã, em boa parte aflorada pelos bilhões de dólares investidos pelos EUA no país, e o desinteresse dos integrantes das FFAA Afegãs em termos de treinar com afinco, mais a liderança claramente incompetente das FFAA. Além da desconfiança generalizada, um fator importante neste sentido é o sectarismo étnico-religioso do Afeganistão, o que levava a tremenda dificuldades em termos militares quando, por exemplo, os soldados de uma etnia deveriam ser liderados por oficiais de outra etnia, ou quando as operações militares envolviam diferentes etnias. Um complicador final é que, mesmo dentro do mesmo grupo étnico-religioso, havia ainda uma intrincada rede de quesões tribais e de clãs.

Estes fenômenos étnico-religiosos, tribais e de clãs, apesar de não serem exclusivos do Afeganistão, tiveram uma influência decisiva no conflito porque o modus operandi americano foi incapaz de lidar com tais questões. Os soviéticos também não souberam lidar com tais questões, o que também foi uma causa decisiva na sua derrota, assim como vários outros inimigos em tempos anteriores, o que levou o Afeganistão a ganhar o infame apelido de "Cemitério de Impérios".

Por último, mas não menos importante, uma questão deve ser feita - por quê os EUA atacaram o Taleban em menos de um mês após o 11 de setembro? Por quê não negociaram mais, ou não tentaram envolver outros países, como o Paquistão, nas negociações? A Doutrina Powell preconiza, com bastante ênfase, que todas as opções diplomáticas devem ser esgotadas antes de se considerar o uso de força militar, e o Presidente George W Bush, aconselhado por Condoleezza Rice, não deu à diplomacia o tempo necessário para evitar um conflito. Este, talvez, tenha sido o maior erro de todos, custando duas décadas e mais de um trilhão de dólares numa guerra que talvez pudesse ter sido evitada. As reservas em relação a negociar com o Taleban, embora válidas, caem por terra ao se observar que, no final das contas, os EUA tiveram que negociar com eles do mesmo jeito!

Muitos especialistas, analisando os pontos acima e outros, anteviram o resultado que acabou se concretizando em 2021 pela simples observação de que os preceitos de Powell foram ignorados.

RETIRADA DO AFEGANISTÃO - OBAMA, TRUMP E BIDEN

O Presidente George W Bush enviou cada vez mais tropas ao país, de tal forma que, ao final do seu mandato, em 2009, já havia mais de 60 mil tropas no Afeganistão, número que, ao contrário das promessas de campanha, subiu muito no primeiro mandato do Presidente Obama, para mais de 110 mil tropas em 2011. Foi neste ano que os EUA fizeram as primeiras tentativas de retirar suas forças do país, apesar de muitos generais insistirem para que o número aumentasse para mais de 250 mil tropas.

Já naquela época estava claro que os EUA não conseguiriam derrotar o Taleban, devido aos fatores mencionados acima, e também ficava cada vez mais evidente que uma guerra civil era inevitável, exatamente como aconteceu com a URSS três décadas antes.

O feitiço se voltou contra o feiticeiro!

Os EUA precisavam sair do Afeganistão antes do início da guerra civil, caso contrário ficaria por ali vários anos mais. Mas, sem uma boa "estratégia de saída" e sem a menor possibilidade de declarar vitória, Obama teria grande dificuldade em encerrar o conflito.

Obama iniciou o "Tratado de Paz do Afeganistão" e começou a retirar as tropas do país, mas a um ritmo bastante lento, numa tentativa de equilibrar suas promessas de reeleição de encerrar o conflito, mas sem se comprometer a sair sem poder declarar vitória. Novamente, a política estava interferindo nos planos militares, e Obama terminou seus dois mandatos sem tirar todas as tropas. Ao final do seu mandato, restavam menos de 12 mil tropas americanas.

Uma das principais plataformas políticas do então candidato Trump foi justamente o encerramento definitivo da Guerra do Afeganistão, independente do custo político. Inicialmente, Trump aumentou um pouco a quantidade de tropas no país, para aproximadamente 15 mil tropas, mas acelerou os preparativos para uma retirada definitiva

Para tanto, em fevereiro de 2020, os EUA assinaram um acordo definitivo com o Taleban, os chamados "Acordos de Doha", em que previam um cronograma ambicioso para a retirada das tropas até maio, já de olho nas eleições de novembro, e o Taleban se comprometia a não ameaçar, direta ou indiretamente, os EUA ou seus aliados. 

Entretanto, além da tempestade política de um ano eleitoral, os EUA foram duramente atingidos pela pandemia de covid-19, além de vários outros fatores, e o cronograma sofreu vários atrasos e reajustes, mas os EUA seguiram retirando, gradualmente, suas tropas do país, a tal ponto que, no final de 2020, já havia menos de 9 mil tropas no país, o menor número desde 2002.

Joe Biden se elegeu e deu seguimento aos Acordos de Doha, mas de uma forma extremamente abrupta: em 6 de julho de 2021, praticamente todas as tropas americanas deixaram o país na calada da noite, evacuando a Base Aérea de Bagram sem avisar aos colegas afegãos, e deixando uma enorme quantidade de armas para trás.

O Taleban aproveitou-se da confusão da retirada desordenada dos americanos e, descumprindo os Acordos de Doha, atacou as Forças Armadas do Afeganistão, conquistando uma série impressionante de vitórias e, pouco mais de um mês depois da evacuação americana, tomaram a capital Kabul.

As cenas da evacuação dos civis americanos de Kabul foram ainda mais patéticas do que a evacuação de Saigon, quase meio século antes. Da mesma forma como tradutores, militares e outros vietnamitas que trabalharam junto aos EUA durante a guerra, os afegãos que trabalharam com os americanos correm sério risco de vida, e muitos militares afegãos já fugiram para países vizinhos, e os civis que trabalharam com os EUA tentam, desesperadamente, fugir do país.

Muitas pessoas morreram ao tentar se segurar aos aviões que decolavam do Aeroporto Internacional Hamid Karzai, no meio de Kabul, com as pessoas tendo que passar por barragens e atiradores Talebans durante todo o tempo.

O mais revoltante é que a Base Aérea de Bagram seria um local muito mais adequado e seguro para a evacuação destas pessoas, o que dá a forte impressão de que ou os preparos para a retirada foram muito mal feitos ou executados, ou que Biden não seguiu as recomendações dos militares e das agências de Inteligência, que previam o cenário caótico que estamos vendo nos noticiários.

No front diplomático, a situação é ainda mais confusa, com temores de que a OTAN, que se envolveu pesadamente no conflito e cujas relações com os EUA já não estavam nos seus melhores dias, se complique ainda mais agora.

Outros aliados americanos, que já receavam que o apoio americano não seria tão incondicional e firme como alegado, também já procuram garantias de que não serão abandonados como os afegãos.

A China já está mostrando disposição em reconhecer a legitimidade do governo Taleban, e outros países, como Paquistão, Rússia e Turquia, também se mostram abertos a negociar com o Taleban.

Ou seja, além de perder no campo de batalha, os EUA também vão sofrer no campo diplomático.

CONCLUSÃO E LIÇÕES PARA O BRASIL

Após duas décadas, chega finalmente ao fim a desastrosa aventura militar americana no Afeganistão, e da maneira mais melancólica possível - o fiasco do Vietnã, que havia sido praticamente esquecido, agora parece pequeno perto do vexame atual.

Isso nos leva a reforçar algo sobre o que falamos em nosso artigo sobre a Doutrina Powell - o poderio bélico em si, ou a falta dele, não é suficiente para determinar o resultado de um conflito. Planejamento, doutrina, treinamento, motivação e liderança podem ser tão ou mais decisivos que qualidade e quantidade de meios disponíveis.

Israel demonstrou, recentemente, na Operação Guardiões das Muralhas, sobre a qual falamos neste artigo, que os preceitos da Doutrina Powell continuam tão válidos hoje como há 30 anos - uma operação bem planejada, bem executada, com os meios necessários, pode trazer excelentes resultados militares com um número mínimo de baixas e num prazo bem curto.

O Brasil pode tirar pelo menos duas lições deste conflito.

A primeira lição é que não há uma "guerra limpa". A guerra sempre é terrível, pode se desdobrar de modos inesperados, com grandes custos políticos, financeiros e de pessoal, portanto deve ser evitada o quanto possível; de modo geral, boas soluções diplomáticas são preferíveis a um conflito. Mas, caso seja necessária, deve ser conduzida de modo que os objetivos militares sejam muito mais importantes que os políticos. Tudo isso também se aplica, de modo geral, a ações militares como GLO (Garantia da Lei e da Ordem) e missões de paz.

Caso a diplomacia falhe, a guerra deve ser conduzida com objetivos claros, "estratégia de saída" bem definida, correta alocação de meios, mínima ingerência política, comunicação clara e apoio inconteste da população brasileira e de aliados internacionais - todas estas questões devem ser claramente respondidas com clareza e determinação antes de se comprometer com o uso de força militar.

A segunda lição, e provavelmente a mais importante, é a de que aliados são importantes mas temos que ter a capacidade de nos defender sem precisar deles, ou precisar o mínimo possível.

Vietnamitas e afegãos confiaram em agentes externos, e pagaram com a vida. Vários outros exemplos, ao longo da História, reforçam este ponto. Temos que ser capazes de nos defender, tanto das ameaças internas como das externas, dependendo o mínimo possível de outros países.

Para isso, além de FFAA bem equipadas, treinadas e motivadas, precisamos também desenvolver nossa Base Industrial de Defesa, de tal forma que a dependência de sistemas importados seja reduzida ao mínimo razoável.

Resta a nossa torcida para que o Brasil nunca tenha que se envolver em guerras. Mas, caso se envolva, que se use a Doutrina Powell para evitar um dejà vu de Kabul ou Saigon.


*Renato Henrique Marçal de Oliveira é químico e trabalha na Embrapa com pesquisas sobre gases de efeito estufa. Entusiasta e estudioso de assuntos militares desde os 10 anos de idade, escreve principalmente sobre armas leves, aviação militar e as IDF (Forças de Defesa de Israel)

GBN Defense - A informação começa aqui

Share this article :

0 comentários:

Postar um comentário

 

GBN Defense - A informação começa aqui Copyright © 2012 Template Designed by BTDesigner · Powered by Blogger