Os raros turistas que decidem cruzar o lago Tanganika, entre a Tanzânia, Burundi, Zâmbia e a República Democrática do Congo, no leste da África, costumam levar um susto quando veem o barco no qual será feita aquela viagem: o Liemba, um arcaico navio a vapor alemão, construído em 1913, que combateu nas águas daquele mesmo lago ainda na Primeira Guerra Mundial – que, como se sabe, aconteceu mais de um século atrás.
Trata-se do único navio usado naquele conflito que ainda navega, e, com 108 anos de idade, um dos mais antigos barcos de transporte de passageiros em atividade no mundo.
Mas o que torna o Liemba ainda mais interessante do que a idade avançada é a sua própria história.
Construído em pedaços
O Liemba foi construído na Alemanha, sob o nome Graf von Goetzen, às vésperas da Primeira Grande Guerra, para ajudar a defender o então chamado Leste Africano Alemão, que compreendia os atuais territórios de Ruanda, Burundi, Tanzânia e todo o entorno do lago Tanganika, o segundo maior do mundo em volume de água.
Mas como o destino do navio era o miolo do continente africano, onde, obviamente, não seria possível chegar navegando, a sua construção foi bem original.
O Graf von Goetzen foi produzido em pequenos pedaços e acondicionado em 5 000 caixas, que foram transportadas (primeiro de navio, depois de trem, num total de 14 000 quilômetros) da Europa até o coração da África, onde, finalmente, foi montado – feito um gigantesco Lego.
Defendeu a Alemanha na África
A montagem do Graf von Goetzen só ficou pronta em 1915, quando a Primeira Guerra já corria solta na Europa e ameaçava invadir os domínios alemães na África.
Mas, equipado com quatro poderosos canhões, o navio logo se transformou em uma espécie de barreira contra a penetração dos Aliados naquela parte do continente africano.
Patrulhando intensamente as águas do Tanganika, o Graf von Goetzen impediu o avanço dos exércitos da Bélgica e da Inglaterra sobre o território alemão, o que levou os ingleses a usar o mesmo expediente dos inimigos e despachar para o lago dois navios de combate, igualmente desmontados. Não adiantou. Nem assim os ingleses conseguiram derrotar o Graf von Goetzen, que seguiu garantindo a liderança alemã naquela parte da África.
Afundado pelos próprios alemães
Até que, já sem recursos para continuar se defendendo dos ataques cada vez mais violentos dos Aliados, e vendo a guerra cada vez mais perdida, os próprios alemães decidiram por um fim ao seu valioso navio: retiraram os quatro canhões e ordenaram que a própria tripulação do Graf von Goetzen o afundasse em uma das baías do lago, para que ele não caísse nas mãos dos ingleses.
Antes disso, porém, os mesmos engenheiros alemães que haviam montado o navio o "prepararam" para afundar com o mínimo de prejuízo, visando um futuro resgate, quando a guerra terminasse – o que, de fato, aconteceria, mas não exatamente como os alemães haviam imaginado.
O casco do Graf von Goetzen foi enchido de areia e suas caldeiras e demais partes mecânicas cobertas com uma espessa camada de graxa, a fim de protegê-las da água. Em seguida, as válvulas foram abertas e o navio deslizou suavemente para o fundo da baía de Katabe, em 26 de julho de 1916.
Resgatado pelo ingleses
Durante oito anos, o Graf von Goetzen ficou submerso, a 20 metros de profundidade. Mas, com o fim dos combates e a retirada alemã da região, uma equipe inglesa resolveu resgatar o navio do fundo do lago, após constatar que ele estava em ótimo estado, graças as precauções tomadas pelos engenheiros alemães, anos antes.
Centenas de barricas foram infladas sob o casco e fizeram o outrora mais poderoso navio de combate da África voltar à superfície. E à vida. Os ingleses, então, doaram o Graf von Goetzen ao recém implantado governo da Tanzânia, que o rebatizou Liemba, nome do Lago Tanganika no idioma Swahili, e, em maio de 1927, teve início a segunda vida deste navio, que perdura até hoje.
Desde então, lá se vão 94 anos, o Liemba tem sido usado ininterruptamente no transporte de cargas e pessoas, no próprio lago.
Serviu de inspiração para o cinema
Em 1979, suas caldeiras e máquinas a vapor foram substituídas por dois modernos motores a diesel, mas o restante do barco permanece praticamente igual a época em que atuou na Primeira Guerra Mundial.
Isso levou o Liemba a servir de inspiração para o romancista C. S. Forester escrever o clássico Uma Aventura na África ("The African Queen", no título original, em inglês), na década de 1930, que depois virou filme de sucesso, com Humphrey Bogart fazendo o papel de um comandante que é convencido por uma insinuante passageira, papel de Katherine Hepburn, a descer perigosos rios para atacar um navio de guerra alemão em plena África – uma clara alusão ao Graf von Goetzen alemão.
Virou símbolo na Tanzânia
Hoje, a grande maioria dos quase 600 passageiros que lotam o Liemba nos percursos regulares que ele faz, duas vezes por mês, entre as cidades de Kigoma, na Tanzânia, e Mpulungu, na Zâmbia – um roteiro de 570 quilômetros, que dura quase três dias inteiros, e soma mais de 20 paradas no caminho, para o embarque e desembarque de mais cargas e pessoas -, pouco sabe sobre o passado do navio que as transporta, exceto que se trata de um velho barco, como sua aparência deixa claro.
O Liemba, que virou uma espécie de símbolo afetivo da Tanzânia, continua sendo o único elo de ligação entre centenas de esquecidos vilarejos africanos com o restante do mundo, mesmo papel desempenhado, no passado, por outros barcos, que por isso mesmo se tornaram lendários.
Um similar brasileiro
No Brasil, outro velho barco que também fez história, após navegar durante quase um século nas águas do Rio São Francisco, agora tenta voltar à vida.
Após sete anos desativado e esquecido nas margens do rio, na cidade mineira de Pirapora, o vapor Benjamim Guimarães, construído em 1913 e um dos mais antigos barcos do gênero no mundo, finalmente está sendo recuperado e restaurado, já que se trata do único barco do país que faz parte do Patrimônio Histórico do país. (clique aqui para conhecer a interessante história do barco mais antigo do Brasil).
Para os ribeirinhos do trecho mineiro do Rio São Francisco, o velho vapor Benjamim Guimarães, cuja previsão é ficar pronto no final deste ano, tem a mesma relevância do Liemba para os moradores das margens do Lago Tanganika.
A esperança é que, tal qual os africanos, eles possam voltar a navegar em um barco que faz parte da sua História.
por: Jorge de Souza
Fonte: Histórias do Mar
O Laurindo Pitta tambem foi da I GM e ainda avega na Baia da Guanabara
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