Vários anos de tensão com o vizinho Chile fizeram com que a Argentina ignorasse a importância do REVO (Reabastecimento em Voo), e o custo disso na Guerra das Falklands/Malvinas seria muito alto para a aviação argentina.
Em 2 de abril de 1982, em meio a uma grave crise política, a Junta Militar que governava a Argentina decidiu colocar em ação um plano de invasão das Ilhas Malvinas/Falklands. Como a Inglaterra tinha negociado a cessão das ilhas à Argentina num passado recente, o general Leopoldo Galtieri, presidente argentino, calculou que os britânicos não fariam nada além de “espernear” diplomaticamente junto à ONU, e que em pouco tempo o caso seria esquecido.
Entretanto, como apontado no “Relatório Rattenbach” [1], o embaixador argentino na Inglaterra, Carlos Ortiz de Rozas, “ficou no escuro” em relação às ações militares e diplomáticas argentinas; os britânicos montaram uma contra ofensiva muito rapidamente e os argentinos foram pegos de surpresa.
Os britânicos reconquistaram as ilhas num espaço de tempo bastante curto e muito de sua vitória deveu-se a erros argentinos, seja no planejamento ou na execução da conquista das ilhas.
Neste artigo vamos tratar de um ponto que foi crucial para a derrota argentina, a pequena autonomia das aeronaves táticas usadas por ambos os lados no conflito. Se, por um lado, os britânicos foram capazes de executar com maestria, uma série complexa de REVO (Reabastecimento em Voo) na "Operação Black Buck" [2], os argentinos negligenciaram totalmente este princípio da guerra moderna, e os velozes Mirage e Dagger da FAA (Fuerza Aérea Argentina, Força Aérea Argentina) não estavam equipados com sondas REVO. Apenas duas aeronaves KC-130H da 1ª Brigada Aérea, baseada em Comodoro Rivadavia, podiam fornecer combustível em voo, e somente as aeronaves Skyhawk e Super Étendard (estes pertencentes ao COAN, Comando da Aviação Naval da Argentina) estavam equipadas com sondas de reabastecimento.
Na prática, e por uma série de razões, o NAe (Navio Aeródromo, “porta-aviões”) argentino ARA Veinticinco de Mayo pouco ou nada fez durante o conflito, portanto ele não será objeto deste artigo.
A Geografia é um Inimigo Invencível
O arquipélago das Ilhas Falklands, mais conhecidas na Argentina como Ilhas Malvinas, é composto por duas ilhas principais, Isla Gran Malvina (Falkland Ocidental) e Isla Soledad (Falkland Oriental) e centenas de outras ilhas menores, entre as quais se destaca a Isla Borbón (Pebble Island para os ingleses). Além das Malvinas, a Argentina invadiu também as ilhas Georgia do Sul e Sandwich do Sul.
MAPA 1 –Stanley está em 1, Pradera del Ganso em 7 e Isla Borbón em 11 (Air & Space Power Journal, vol. 16, issue 3, p 59-77).
O arquipélago fica a uma distância considerável do continente; sua cidade principal, Stanley (Puerto Argentino), abriga o maior aeródromo das ilhas e se localiza na Isla Soledad. Havia aeródromos menores com pistas de grama em Pradera del Ganso (Goose Green para os britânicos, também na Isla Soledad) e na Isla Borbón, mas apenas aeronaves leves a hélice como o IA-58 Pucará e o T-34 Mentor podiam operar em tais pistas.
Embora a Argentina tenha falhado ao não ampliar o aeródromo de Stanley para permitir que suas aeronaves operassem a partir das ilhas (o que efetivamente resolveria o problema da autonomia), vamos focar na questão estratégica de não contar com boa capacidade REVO, e contrastar esta lacuna com as missões Black Buck [2] e o próprio ataque argentino ao HMS Sheffield [4].
Esta falha argentina em relação ao REVO, na verdade tem uma explicação bastante simples – a Argentina se preparava, há muitos anos, para um conflito com o Chile. Como o Chile é um país estreito, os argentinos não sentiram necessidade de se equipar com REVO. Tal omissão seria crucial na Guerra das Malvinas.
A importância da autonomia na guerra moderna
Já na Segunda Guerra Mundial, durante a Batalha da Inglaterra, ficou bastante claro que a autonomia das aeronaves de combate era essencial. Um dos fatores que complicaram a Alemanha em 1940 era o fato de seus caças terem autonomia muito reduzida sobre a zona de combate, apenas 5-10 minutos em alguns casos. Com tão pouco tempo sobre a área de operação, os pilotos podiam fazer pouco mais que uma ou duas passagens de ataque e voltar à base. [5]
Com os jatos a situação ficava ainda mais complicada se acionassem o PC (Pós Combustor) em combate, pois ele aumenta drasticamente o consumo. Os pilotos americanos no Vietnã teriam ficado em maus lençóis se não fosse pela maturidade do REVO; a guerra no sudeste asiático foi a primeira campanha militar em larga escala em que o REVO foi usado intensivamente. [6]
Entretanto, apesar de a Guerra do Vietnã ter acontecido vários anos antes da invasão das Malvinas, os argentinos não tinham absorvido esta importante lição. Apenas dois aviões-tanque KC-130H da FAA podiam transferir combustível, e somente as aeronaves Skyhawk (tanto da FAA como do COAN) e os Super Étendard (exclusivos do COAN) podiam receber combustível em voo.
Geralmente se aplica o limite de 4:1 em termos de aeronaves reabastecidas por avião-tanque [7], o que significa que, na melhor das hipóteses, os dois KC-130H não poderiam reabastecer mais do que oito Skyhawk ou Super Étendard numa mesma surtida.
A FAA não se apressou em adaptar seus C-130 Hercules para missões REVO, alteração esta que não é demasiadamente cara, demorada ou complexa. Caso tivesse feito isso, poderia ter um total de até doze KC-130 para transferir combustível a suas aeronaves.
Outro erro da FAA foi não dotar seus Mirage e Dagger com sondas REVO, coisa que outros países já faziam à época, e que tampouco envolveria dificuldades intransponíveis.
Devido a estas omissões, os mesmos 5-10 minutos de autonomia sobre a zona de combate que atrapalharam os alemães em 1940 também assombraram os argentinos em 1982; em alguns casos a autonomia era de apenas 2 minutos.
A situação se complicou ainda mais quando os Harrier britânicos começaram a realizar CAP (Combat Air Patrol, Patrulha Aérea de Combate), colocando os argentinos “entre a cruz e a espada”: eles tinham que optar entre enfrentar os caças britânicos, mais ágeis e com autonomia de até uma hora (como operavam de distâncias muito mais curtas vindos dos porta-aviões eles podiam voar por muito mais tempo), correndo o risco de ficarem sem combustível, ou fugir sem completar suas missões.
Embora os pilotos argentinos demonstrassem grande perícia [8], a questão da autonomia complicava bastante as operações dos Dagger e Mirage. Os Skyhawk e Super Étendard, quando reabastecidos, tinham mais tranquilidade para operar e não é surpresa que tenham sido muito mais eficazes em combate, especialmente os Super Étendard com os mísseis Exocet.
Para complicar mais ainda a situação argentina, a Royal Navy posicionou seus navios a leste das Ilhas, o que obrigava as aeronaves argentinas a voarem 100-200 km a mais, colocando as aeronaves no limite extremo do alcance.
Citando o artigo “Air War in the Falklands”, de Carl A. Posey, publicado no Air Space Magazine de setembro de 2002 [9]:
“O REVO dava aos Skyhawk mais flexibilidade que os Daggers. ‘Por causa do REVO’, Rinke continua, ‘podíamos voar em baixa altitude a 70 milhas do alvo, depois de 10 a 15 milhas, 10 a 20 minutos, de 30 a 60 pés. Os últimos 5 minutos até o alvo eram a altitudes extremamente baixas, 10 a 30 pés. Voávamos à máxima potência mas a aeronave chegava no máximo a 450, 480 nós a baixa altitude. Sabíamos que tínhamos uma probabilidade de voltar à base de cerca de 50%’”.
O sucesso da Operação Black Buck
Em contraste, os ingleses executaram com bastante sucesso as operações de bombardeio aéreo envolvendo as maiores distâncias até aquele momento, usando uma complexa rede de REVO. O excelente artigo do Prof Luiz Reis explica minuciosamente esta operação, e recomendamos fortemente sua leitura. [2]
Como resultado, os britânicos conseguiram realizar com sucesso cinco ataques contra alvos situados a mais de doze mil quilômetros de distância, enquanto os argentinos tinham dificuldades em atacar alvos a distâncias muito menores.
A outra vantagem de contar com uma boa autonomia é que outras opções táticas e estratégicas se tornam disponíveis, forçando o inimigo a se preparar contra elas, ainda que nunca sejam executadas.
Foi exatamente o que aconteceu com a operação Black Buck – como os ingleses demonstraram ter alcance mais que suficiente para atacar Buenos Aires, a FAA foi obrigada a deslocar caças para a defesa da capital, complicando ainda mais as operações aéreas sobre as ilhas.
O ataque a Buenos Aires acabou não acontecendo, mas seus efeitos se fizeram sentir.
O afundamento do Sheffield e outros ataques à Royal Navy
O artigo sobre o HMS Sheffield é bastante completo, portanto vamos nos limitar a alguns comentários sobre os ataques. [4] O Super Étendard tinha uma sonda REVO, e esta sonda foi essencial naquela que foi a melhor ação argentina da Guerra, o ataque ao HMS Sheffield.
Os argentinos o precisaram voar cerca de 1.500 km (ida e volta) para o ataque, no qual foi preciso um REVO. Ou seja, sem REVO não teria sido possível atacar o Sheffield.
Nas demais missões de ataque, o principal vetor foi o A-4 Skyhawk, justamente porque, devido ao fato de poder fazer REVO, chegava à zona de combate com uma carga maior de bombas. O temor dos ingleses, um ataque maciço dos argentinos, acabou por não se concretizar devido à baixa capacidade de REVO.
Conclusão e lições para o Brasil
Este artigo mostra o quanto o REVO é importante para as forças aéreas modernas, e como a negligência deste fundamento foi mais um fator que complicou a tentativa de conquista das Malvinas pelos argentinos.
O Brasil ficou muito atento a esta guerra e se apressou a comprar aviões tanque nos anos seguintes. Foram adquiridos quatro unidades do KC-137 (uma versão do KC-135), aposentados após três décadas de bons serviços, e três KC-130H, que já estão sendo substituídos pelos KC-390 Millennium.
Outro ponto essencial foi que, nos programas de modernização a partir da Guerra das Falklands, a FAB equipou todas as suas aeronaves táticas a jato com sondas REVO, o mesmo acontecendo com os Skyhawk da Marinha do Brasil. Com isso, nossos caças podem ser reabastecidos por outros aviões-tanque ou por outras aeronaves táticas usando o sistema “buddy”.
KC-130H da FAB reabastecendo dois caças F-5EM simultaneamente (Foto: FAB/Domínio Público)
Para o futuro, adquirimos 27 KC-390 Millennium, das quais quatro já foram entregues. Mais importante ainda, os KC-390 também podem ser reabastecidos em voo, a exemplo dos Victor da RAF nas missões Black Buck, garantindo assim grande autonomia àquele que será o esteio da nossa aviação de transporte.
Nosso futuro caça F-39 Gripen também contará com sonda REVO.
Agradecimentos
Nossos especiais agradecimentos ao Prof. Luiz Reis pelas colaborações em relação ao contexto da época.
Referências
[1]https://www.casarosada.gob.ar/pdf/InformeRattenbach/01-InformeFinal.pdf
[2]http://www.gbnnews.com.br/2020/06/levar-guerra-ao-mais-distante-possivel.html
[3] http://www.gbnnews.com.br/2021/05/cumprindo-com-o-seu-dever-para.html
[4]http://www.gbnnews.com.br/2021/05/oataque-ao-hms-sheffield-ohms-sheffield.html
[5] https://www.airforcemag.com/article/0808battle/
[6]https://www.amc.af.mil/News/Article-Display/Article/147242/vietnam/
[7] http://www.ausairpower.net/TE-AAR-Expand.html
[8] https://www.youtube.com/watch?v=VM0BIRlhhXM
[9]https://www.airspacemag.com/military-aviation/air-war-in-the-falklands-32214512/
David Fairhall, “24 are killed as Argentine jets inflict double blow in fleet”, The Guardian, 27 de maio de 1982, disponível em https://www.theguardian.com/world/1982/may/27/argentina.military
Ian Cobain, “Revealed: catalogue of failings that sank Falklands warship HMS Sheffield”, The Guardian, 15 de outubro de 2017, disponível em https://www.theguardian.com/uk-news/2017/oct/15/revealed-full-story-behind-sinking-of-falklands-warship-hms-sheffield
Carlo Kopp, “Warship Vulnerability”, Air Power Australia, julho de 2005, disponível em https://www.ausairpower.net/Warship-Hits.html
Air and Space Power Journal, Outono de 2002, Vol. XVI, Nº 3, disponível em https://www.airuniversity.af.edu/Portals/10/ASPJ/journals/Volume-16_Issue-1-4/Fall02.pdf
Renato Henrique Marçal de Oliveira é químico e trabalha na Embrapa com pesquisas sobre gases de efeito estufa. Entusiasta e estudioso de assuntos militares desde os 10 anos de idade, escreve principalmente sobre armas leves, aviação militar e as IDF (Forças de Defesa de Israel).
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