quarta-feira, 19 de maio de 2021

Operação Guardião das Muralhas - um novo conceito militar de Israel frente ao Hamas

Será que Israel está lutando em 2021 de uma forma diferente que em anos anteriores? O GBN investigou e responde neste artigo!

Memorável foto noturna de longa exposição, mostrando os disparos de foguetes do Hamas (à direita) e dos mísseis defensivos Tamir, do sistema Iron Dome, da Rafael (à esquerda). Observe-se como os foguetes seguem uma trajetória balística, enquanto os Tamir executam uma série de manobras para interceptá-los.

Como é de conhecimento geral, Hamas e Israel se enfrentam de tempos em tempos, e em 2021 estamos assistindo a mais uma batalha de larga escala, nomeada pelas IDF (Forças de Defesa de Israel) como 'Operação Guardião das Muralhas'.

Um dos jornalistas israelenses mais renomados, Seth Franzman, escreveu algo interessante em seu Twitter [1] - Israel não está lutando em 2021 da mesma forma que lutou em anos anteriores.

Fomos pesquisar um pouco mais sobre o assunto, e resolvemos resumir o que observamos neste artigo.

HISTÓRICO

No caos pós Segunda Guerra Mundial, o já expressivo número de judeus no Mandato da Palestina (protetorado inglês que antes pertencia ao Império Otomano, que ruiu durante a Primeira Guerra Mundial), acabou sendo inflado pelo influxo de sobreviventes do Holocausto. Este influxo, mais a decadência inglesa, que era incapaz de gerenciar a situação, inflamou os ânimos de árabes e judeus a tal ponto que a nascente ONU (Organização das Nações Unidas) teve que intervir.

Em 29 de novembro de 1947, sob a liderança do inolvidável diplomata brasileiro Osvaldo Euclides de Sousa Aranha, a ONU aprovou a Resolução 181, que indicava como seria a partição do Mandato da Palestina: criação de um Estado judeu, um Estado árabe, e uma região, que incluía Jerusalém, sob controle internacional.

A combalida Inglaterra, incapaz de conduzir o conturbado processo, decidiu abandonar o Mandato da Palestina em 14 de maio de 1948, e a Agência Judaica, na época já muito bem organizada, aproveitou para anunciar a independência de Israel.

A Liga Árabe, composta por 6 países árabes e vários grupos militantes, reagiram imediatamente, e no dia seguinte, 15 de maio de 1948, começava a Guerra de Independência de Israel, e só terminou em 10 de março de 1949; Israel sobreviveu ante forças.

As linhas do armistício, conhecidas como 'Linha Verde' (por terem sido marcadas com uma caneta verde no mapa), acabaram por definir as fronteiras de Israel pelos próximos 18 anos - a Faixa de Gaza ficou sob domínio egípcio, a Cisjordânia (conhecida em Israel como JS, ou Judeia e Samaria, e que inclui uma parte de Jerusalém que é conhecida como Jerusalém Oriental) ficou sob domínio jordaniano, as Colinas de Golã ficaram sob domínio sírio, e Israel acabou ficando com praticamente o restante do país atual. Israel estabeleceu sua capital em Jerusalém, mas a maioria dos países, evitando o status dividido da cidade, estabelece que Tel Aviv, a segunda maior cidade do país, é a verdadeira capital.

Em 1967, na surpreende Guerra dos Seis Dias, Israel acabou por tomar as regiões da Faixa de Gaza, JS e Colinas de Golã, e unificou a cidade de Jerusalém sob seu comando. Nos anos subsequentes, após outros conflitos, foram fechados os acordos de paz com o Egito e com a Jordânia. Em ambos os casos, os países declararam não ter interesse em retomar suas antigas posses no território israelense.

Desta forma, a região da Faixa de Gaza ficou, por quase 40 anos, como parte de Israel, embora os Acordos de Oslo (1993) previssem que a região, bem como partes da JS, deveriam fazer parte da Palestina quando o processo de independência fosse concluído, o que infelizmente parece cada vez mais longe de acontecer.

A única organização palestina reconhecida como legítima internacionalmente, a PA (Autoridade Palestina), apesar de obrigada pelos Acordos a combater o terrorismo, ainda mantém seu braço armado, a Fatah, além de tolerar, ou mesmo apoiar, vários outros grupos, entre eles o Hamas e a PIJ (Palestinian Islamic Jihad).

Em 2005, respondendo a uma crescente pressão internacional, e também em função de constantes ataques por parte do Hamas, uma organização reconhecida como terrorista por diversos países, o PM (Primeiro Ministro israelense) Ariel Sharon decidiu pelo desengajamento unilateral, ou seja, resolveu retirar todos os militares e civis israelenses da Faixa de Gaza, sem exigir contrapartidas dos palestinos. Ou seja, na prática, a Faixa de Gaza tornou-se um território independente, embora, juridicamente, ainda seja parte dos territórios palestinos e esteja sob o comando da PA.

O desengajamento foi o gatilho para o pleito eleitoral de 2006, em que a PA venceu na Judeia e Samaria (JS) mas foi derrotada pelo Hamas na Faixa de Gaza, dando início a uma guerra civil que culminou, em 2007, com o estabelecimento do Hamas como a verdadeira autoridade na Faixa de Gaza, e a PA na JS, uma condição conhecida como 'o cisma palestino', que será investigado em um artigo futuro.


CONFLITOS ANTERIORES

Tão logo o Hamas consolidou seu poder, começou a atacar Israel, uma tendência que o grupo mantém até hoje. Além de escaramuças frequentes, Israel e Hamas se envolveram em curtos mas intensos conflitos abertos diversas vezes, com destaque para a Operação Chumbo Fundido (dezembro de 2008 - janeiro de 2009), Operação Coluna de Nuvem (novembro de 2012) e Operação Margem Protetora (julho e agosto de 2014).

Na Chumbo Fundido, as tropas terrestres das IDF foram obrigadas a invadir a Faixa de Gaza, com o objetivo de parar os incessantes ataques de foguetes sobre o sul de Israel. O saldo do conflito foram cerca de 13 israelenses mortos e 518 feridos (a maioria militares) e cerca de 1.400 palestinos mortos e 5000 feridos (metade dos quais eram militantes do Hamas e outras facções, segundo Israel).

Na Coluna de Nuvem, o Iron Dome teve ótimos resultados, tanto que as IDF não precisaram invadir. O saldo final foi bem menor que a Chumbo Fundido: Israel teve 6 mortos (2 militares) e 239 feridos (20 militares) e os palestinos tiveram 120 militantes mortos e 29 feridos, mais 57 civis mortos e um número desconhecido de feridos (segundo Israel).

A Margem Protetora foi o mais longo dos três conflitos, e o primeiro em que Israel teve que lidar não apenas com os 'tradicionais' morteiros e foguetes de curto alcance, mas também com foguetes de maior alcance, capazes de atingir até mesmo Tel Aviv e Jerusalém (distantes, respectivamente, 70 e 75 km da Cidade de Gaza), além de uma intrincada rede de túneis, apelidados de 'metrô de Gaza'. Desmantelar os túneis é uma tarefa difícil, e com os meios da época, as IDF não tiveram escolha a não ser lançar mão de extensivas operações terrestres.

Isso resultou em numerosas baixas - para Israel, 67 militares mortos e 469 feridos, além de 6 civis mortos e 87 feridos, e entre os palestinos houve 2.125 mortos; a identidade dos mortos ainda é tema de acalorados debates, sendo que Israel diz que 44% eram combatentes e do restante, cerca de 20% - homens entre 16 e 50 anos - não foram identificados, e é muito provável que boa parte deles também fossem combatentes.

Nesses três conflitos, Israel buscou, além de parar os ataques com foguetes, destruir o máximo possível das infraestruturas do Hamas e outros grupos, e causar o maior número possível de baixas em suas fileiras.

Essa estratégia, apesar de funcionar muito bem, teve um custo muito alto não apenas para os militantes, mas também para Israel.

CRÍTICA INTERNACIONAL

O número elevado de baixas entre os palestinos causa diversos problemas para Israel.

O primeiro deles é que o Hamas é um usuário contumaz da nefasta prática dos 'escudos humanos', ou seja, posiciona suas armas e combatentes no meio de instalações civis, como o Hospital al Shifa, que continha bunkers da organização em 2014 [2]. Outros grupos, como a PIJ, seguem o mesmo comportamento grotesco. Este comportamento é um crime de guerra, mas os terroristas parecem pensar que as regras não se aplicam a eles.

Isso deixa Israel 'entre a cruz e a espada' - ou eles deixam de atacar os militantes (com receio de causar baixas civis palestinas) e colocam os próprios civis e militares em risco, ou atacam (aceitando a terrível consequência em termos de baixas palestinas) mas protegem seus civis e militares no processo.

Não é uma escolha simples, mas Israel, assim como outros países democráticos, tem como principal obrigação a proteção dos seus, e frequentemente autoriza operações que causam baixas entre os civis. O resultado é um bombardeio da mídia em geral que, desinformada do DIH (Direito Internacional Humanitário), ou mal intencionada mesmo, pensa que numa guerra é terminantemente proibido causar baixas civis, o que não é verdade.

Outra prática terrível dos terroristas, não só entre os palestinos mas também em outros países, é a de que seus combatentes não usam fardas, se misturando entre os civis tanto em vida quanto na morte; esta prática, a perfídia, e também é um crime de guerra. Este é um dos fatores que dificultam bastante a identificação das baixas, e o Ministério da Saúde da Faixa de Gaza, que é apenas mais um tentáculo do Hamas, se aproveita deste fato para inflar as baixas entre os civis. Mencionamos acima que no mínimo 44%, e potencialmente até 64%, das baixas em 2014 eram combatentes, mas os palestinos alegam o inverso, ou seja, que 65% das baixas eram civis.

Embora toda morte de inocentes seja trágica, até mesmo a razão de fatalidades de 1 combatente para 2 civis é algo muito significativo no meio militar, e a probabilidade nada remota de que Israel na verdade causou mais baixas entre combatentes do que entre civis, em uma das regiões mais densamente povoadas do mundo, contra um inimigo que não só usa escudos humanos mas também pratica a perfídia, é um atestado da eficiência dos israelenses. [3]

Estas críticas, além de outros fatores, levaram a que a ONU fizesse relatórios, altamente críticos a Israel, sobre a Chumbo Fundido e sobre a Margem Protetora.

Israel reavalia suas operações militares, continuamente, independentemente dos resultados, e segue aperfeiçoando suas táticas. Depois da enxurrada de críticas em 2014, as IDF demoraram mais tempo para lançar uma operação de larga escala, restringindo-se a escaramuças.


SHEIKH JARRAH

Devido aos vários conflitos que assolaram a região no Século 20, a Guerra de Independência e a Guerra dos Seis Dias foram as que deixaram as maiores marcas.

Quando da Guerra de Independência, muitos judeus que tinham propriedades nas regiões que vieram a ser tomadas pelos árabes, e depois retomadas por Israel na Guerra dos Seis Dias, ficaram num limbo legal. Afinal, de quem são as propriedades? Dos judeus que eram os donos em 1948, ou dos árabes que se instalaram nestes lugares depois?

A situação foi resolvida, em anos posteriores, quando Israel passou uma série de leis, definindo que os judeus que pudessem provar que eram os legítimos donos antes da Guerra de Independência, teriam o direito a suas posses restituído, e que os árabes que pudessem provar que moravam nestas áreas antes de 1968 teriam o direito de permanecer, com arranjos sendo feitos para indenizações.

Um dos bairros que ficou neste limbo jurídico foi a região de Sheikh Jarrah, na porção oriental da capital Jerusalém. Após uma longa disputa jurídica, a Suprema Corte de Israel decidiu, em 2013, que os moradores da região - que só conseguiram comprovar que se instalaram em 1972 - poderiam permanecer em suas casas, desde que pagassem os aluguéis correspondentes aos quase 40 anos em que estiveram irregularmente nas casas aos donos originais das propriedades.

Os moradores não conseguiram fazer os pagamentos, e as ordens de despejo começaram a acontecer, se intensificando ainda mais em abril 2021. Os confrontos entre os manifestantes que apoiam os moradores, e os policiais que foram cumprir as ordens de despejo, começaram a aumentar ao ponto de provocar um caos generalizado na região. Há fortes indícios de que o Fatah é um dos incitadores das manifestações violentas.

O Hamas, pressionado internamente pela péssima gestão civil e pelos estragos sofridos nas escaramuças e conflitos com Israel, aproveitou a confusão para voltar aos holofotes internacionais, e ganhar pontos com o eleitorado palestino frente às eleições gerais que estavam próximas - as primeiras desde 2006, que acabaram sendo canceladas antes mesmo do começo do conflito atual - decidiu atacar Israel com uma chuva de foguetes. Israel decidiu que esta escaramuça estava grande o bastante para ser 'batizada', e chamou o conflito de 'Operação Guardião das Muralhas', quando o Hamas lançou foguetes em Jerusalém em 10 de maio de 2021.


OPERAÇÃO GUARDIÃO DAS MURALHAS

Desde o princípio da Operação, pôde-se notar uma mudança de estratégia de Israel.

Graças aos avanços tecnológicos e operacionais implementados a partir de 2014, Israel pôde combater os túneis sem precisar recorrer a incursões terrestres até hoje (19/05), e também se dedicou a não apenas atacar, mas destruir completamente os prédios usados pelo Hamas, ações duramente criticadas pela mídia em geral, mas que a mesma mídia se recusou a noticiar por muitos anos. [5] Aqui vemos novamente a perfídia e o uso de escudos humanos em ação - um dos prédios destruídos era usado por veículos internacionais de mídia como Associated Press e al Jazeera.

Além de destruir os prédios usados por Hamas e outros grupos, Israel também está muito pouco interessado em causar baixas entre os 'praças' das organizações, e ao invés disto está caçando os 'oficiais', com diversos deles tendo sido abatidos e até mesmo admitidos publicamente pelas organizações. [6]

Israel busca, assim, 'matar dois coelhos com apenas um tiro' - forçar as organizações a voltarem ao status quo ante de, no máximo, se aventurarem em pequenas escaramuças, além de limitar as baixas civis ao nível da Pilar de Nuvem, ao invés da Margem Protetora.

Uma das ações israelenses que mais chamou a atenção neste sentido foi o fato de o porta-voz das IDF se comunicar, de maneira ambígua, dizendo que seus tanques estavam atacando a região. Isso era um engodo, e o objetivo das IDF, novamente, era 'matar dois coelhos com apenas um tiro' - os civis abandonaram a região perto dos tanques israelenses, e os combatentes palestinos foram para suas posições nos bunkers e túneis, que foram atacados por mais de 500 bombas da IAF (Força Aérea Israelense), que fustigou a região com mais de 150 aeronaves por cerca de 3 horas. [7] Sun Tzu, autor do famoso tratado 'A Arte da Guerra', certamente ficaria orgulhoso desta ação.

Mas nem tudo são flores para Israel - o apoio iraniano ao Hamas ajudou-os a construir um arsenal temível, tanto em quantidade como em qualidade, e certamente as IDF foram relapsas ao julgar o progresso do Hamas desde 2014, além do seu nível de prontidão e motivação para um conflito. [8]

Outro ponto que não pode ser ignorado é que Israel é cercado por inimigos, e outros players podem aproveitar a situação para semear o caos. 


Tweet das IDF mencionando ataques vindos do Líbano, provavelmente por grupos palestinos ligados ao Hamas. O Hizballah não se pronunciou sobre os ataques esporádicos vindos do Líbano, mas dificilmente se oporia. Ou seja, Israel corre o risco de ter que enfrentar uma guerra em dois fronts, que aconteceu pela última vez em 1973, na Guerra do Yom Kippur.

Isto certamente resultará em repreensão na análise pós conflito, a exemplo do que aconteceu após a Segunda Guerra do Líbano em 2006, assunto que será tema de um artigo a ser postado em breve no GBN.


CONCLUSÃO

Conforme citado na referência [6], Israel não quer apenas um cessar-fogo provisório, mas uma volta ao status quo ante, e já rejeitou diversos pedidos de cessar-fogo do Hamas e de outros países.

É provável que, a exemplo do que ocorreu em outras situações, Israel declare o fim das operações unilateralmente, como forma de negar ao Hamas a possibilidade de alegar que teve algum ganho neste conflito.

Israel sabe muito bem que o Hamas é um problema, mas entende que, no MENA, com frequência, o inimigo que você conhece é menos pior que o inimigo que você não conhece. 

Em tentativas ocidentais de substituir ditadores terríveis, como Muammar Qadafi e Saddam Hussein, 'a emenda saiu pior que o soneto', e Israel tenta, a todo custo, evitar que isto aconteça na Faixa de Gaza, portanto o objetivo é o de enfraquecer o Hamas, embora não a ponto de torná-lo vulnerável aos possíveis substitutos.

Uma coisa é certa - a próxima confrontação entre Hamas e as IDF é só uma questão de tempo.


REFERÊNCIAS

[1] https://threadreaderapp.com/thread/1394210828048650243.html

[2]https://www.washingtonpost.com/world/middle_east/while-israel-held-its-fire-the-militant-group-hamas-did-not/2014/07/15/116fd3d7-3c0f-4413-94a9-2ab16af1445d_story.html

[3] https://richard-kemp.com/gazas-civilian-casualties-the-truth-is-very-different/

[4]https://www.timesofisrael.com/palestinian-family-evicted-from-east-jerusalem-home-after-50-years/

[5]https://www.theatlantic.com/international/archive/2014/11/how-the-media-makes-the-israel-story/383262/

[6]https://www.dailywire.com/news/top-israeli-official-hamas-can-surrender-or-well-hunt-down-every-commander-every-post-until-we-win

[7] https://www.mako.co.il/news-military/2021_q2/Article-178966fb8e96971026.htm

[8] https://news-block.com/how-hamas-surprised-israel-with-its-abundant-firepower/


Renato Henrique Marçal de Oliveira é químico e trabalha na Embrapa com pesquisas sobre gases de efeito estufa. Entusiasta e estudioso de assuntos militares desde os 10 anos de idade, escreve principalmente sobre armas leves, aviação militar e as IDF (Forças de Defesa de Israel).


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