O exército norte-americano publicou, em outubro do ano passado, um documento chamado “The operational environment and the changing character of warfare”. Nele o TRADOC, Comando de Adestramento e Doutrina daquele país, discorre sobre como as aceleradas mudanças em curso em todos os aspectos da vida humana e da sociedade alterarão decisivamente o ambiente operacional e a natureza da guerra nos próximos anos. Neste artigo, apresento minha interpretação do documento.A acelerada evolução em todos os campos do conhecimento proporcionou o surgimento de tecnologias disruptivas, tais como armas hipersônicas, uso de inteligência artificial, nanotecnologias, internet das coisas, computação quântica, neurociência, biologia sintética e robótica, para citar apenas alguns exemplos.
Ao mesmo tempo, a humanidade experimenta um momento de mudanças demográficas, mudanças climáticas, disparidades econômicas crescentes e aumento da competição por recursos naturais, em especial a água. Há também o surgimento de novos atores no cenário político-econômico e social, como organizações não-governamentais transnacionais e ideologicamente motivadas, além de indivíduos com tamanho poder político e econômico que podem influenciar e exercer pressões comparáveis apenas àquelas que, no século 20, eram exercidas pelos entes estatais. Tudo isso em um ambiente de onipresença da informação.
Nesse contexto, o documento do exército norte-americano delineia dois horizontes temporais. Um primeiro, dos dias atuais até o ano de 2035, no qual a humanidade viverá um período de progresso acelerado. No segundo, de 2035 até 2050, um período chamado de “igualdade contestada”, na qual a natureza da guerra sofrerá mudanças dramáticas, quase revolucionárias.
Nos próximos anos, a humanidade se tornará mais rica, mais velha, mais urbana e mais bem educada. Mas a distribuição desigual desse progresso em um ambiente de informação onipresente aumentará as tensões e os conflitos, ameaçando a estabilidade econômica e política de vários países.
Ao mesmo tempo, as mudanças climáticas poderão resultar em aumento da escassez de recursos e da insegurança alimentar, aumento das migrações e do número de refugiados. O degelo do Oceano Ártico poderá tornar aquela região um novo foco de disputa geopolítica.
O processo de urbanização se acelerará. Algumas megacidades poderão se tornar política e economicamente mais importantes do que os estados-nação nos quais estão inseridas. A vida nessas cidades se tornará ao mesmo tempo mais fácil e mais complexa, em razão dos múltiplos desafios da vida nas cidades. Tensões sociais poderão se agravar em razão disso.
A inteligência artificial administrará e otimizará muitos aspectos da vida moderna. A integração entre homens e máquinas, por intermédio de dispositivos de realidade virtual se tornarão comuns. O “aprendizado de máquina[2]” e o acesso a enormes bases de dados, por computadores potentes, permitirão a aceleração de estudos e a descoberta de relações de causa e efeito antes desconhecidas. O desenvolvimento da ciência médica, da neurociência e das biotecnologias desafiarão conceitos filosóficos e religiosos, integrando cada vez mais homens e máquinas, criando dilemas éticos complexos.
É neste contexto futuro que o exército dos EUA define como seus potenciais adversários, no futuro próximo, o chamado grupo “2+3”, Rússia, China, Coreia do Norte, Irã e os Grupos Radicais e Organizações Criminosas Transnacionais, que atuarão para confrontar os interesses do país.
Considera-se que esses adversários estão pensando em como confrontar os EUA e seus aliados, utilizando estratégias de guerra híbrida, que os permite atuar no local e momento que eles escolherem, sempre mantendo-se abaixo da linha da guerra, muitas vezes usando “proxies”, mercenários e criminosos, alvejando a vontade nacional e o aparato do processo de tomada de decisões, dos próprios EUA, dos aliados da OTAN ou da União Europeia.
Embora essa maneira de atuar não seja nova, as condições do acelerado desenvolvimento mundial permitiram aos adversários dos EUA combinar modos de emprego tradicionais com estratégias híbridas e táticas de guerra assimétrica, ao mesmo tempo em que se utilizam de tecnologias de ponta, como fogos de longo alcance, capacidades de guerra eletrônica, satélites, operações de informação, armas de destruição em massa e capacidades cibernéticas, dentre outras.
Os EUA identificam que, pelo menos na primeira metade do período de progresso acelerado, até 2035, a Rússia será seu principal adversário. O país já estaria investindo, há mais de uma década, em novas capacidades para superar o poder militar norte-americano, com o desenvolvimento de uma gama de novas tecnologias de uso militar, como robótica, computação avançada, armas hipersônicas e sistemas espaciais. A China teria condições de ultrapassar a Rússia na segunda metade desse período.
Em algum ponto próximo a 2035, pela primeira vez desde a Segunda Guerra Mundial, os EUA seriam obrigados a se confrontar com um adversário capaz de operar em todos os domínios, inclusive com certa vantagem tecnológica sobre as forças armadas do país. As vantagens estratégicas norte-americanas poderão diminuir a um ponto em que os desafios se tornarão cada vez maiores e mais complexos.
Assim, o mundo entrará no período da “igualdade contestada”, por volta de 2035, com as potências globais disputando a manutenção ou a mudança da ordem global construída no pós-guerra. Os estados-nação, embora permaneçam sendo os atores principais no sistema internacional, passarão a ser desafiados por redes globais de afinidades – étnicas, religiosas, regionais, sociais ou econômicas – mantidas por intermédio de comunicações on line, cujos membros podem sentir uma afinidade mais forte do que com sua própria nacionalidade. É interessante notar que neste ponto o documento do TRADOC apresenta um cenário que confirmaria a teoria do Choque das Civilizações, apresentada por Samuel Huntington em 1993.
Embora EUA, China e Rússia permaneçam sendo as principais potências militares do planeta, a possibilidade de se adquirir capacidades voltadas ao emprego militar ou às disputas de poder, por intermédio da difusão generalizada de conhecimentos e pelo roubo cibernético de propriedade intelectual, fará surgir novos competidores. Os custos para a manutenção de uma hegemonia global tornarão impossível que um único país a detenha. A ordem global será multipolar, e dominada por uma complexa rede de alianças de curto prazo, de acordo com os interesses momentâneos dos atores globais. Será um mundo marcado pela desordem e pelo emprego do poder militar.
Nessas condições de frágil equilíbrio, alguns aspectos da guerra se modificarão. Como nenhuma nação terá uma superioridade absoluta de capacidades que desequilibrem significativamente a balança da guerra a seu favor, a dimensão moral e cognitiva ganhará enorme importância. As operações militares terão cada vez mais o objetivo de afetar a vontade e a coesão nacionais. As operações de informação e os ataques cibernéticos serão direcionados contra pessoas e segmentos da população, dos governos e da iniciativa privada.
O aforismo Clausewitzniano de que a guerra é a continuação da política por outros meios ganhará um novo destaque, na medida em que a dimensão política se aproximará da dimensão militar. Isto porque todos os elementos do poder nacional deverão estar integrados à construção da segurança coletiva da nação contra as inúmeras, difusas e incertas ameaças. A atuação conjunta e interagências, de modo a criar um ambiente governamental sinérgico que fortaleça a dissuasão de ameaças, será de fundamental importância para a manutenção da segurança e para a defesa dos EUA.
Embora no ano de 2050 se espere que as forças armadas sejam mais capazes do que em qualquer outro momento da história, o emprego de forças militares será limitado. Elas serão tão destrutivas e serão equipadas com materiais de emprego militar tão desenvolvidos e caros que a substituição dos armamentos, viaturas e equipamentos em larga escala, como seria normal em uma guerra de longa duração, será inviável. Ao mesmo tempo, os operadores de tais equipamentos deverão possuir um longo tempo de aprendizado e treinamento, o que tornará os exércitos cada vez mais profissionais, o que também dificultará o recompletamento de pessoal.
Nações, atores não-estatais e mesmo indivíduos serão capazes de atacar forças militares e infraestruturas civis a distâncias intercontinentais, por meios convencionais ou não. Alvos como agricultura e suprimento, finanças e comércio, transportes, água, energia elétrica, entretenimento e informação não estarão fora do alcance das ações adversas, mesmo a milhares de quilômetros do eventual Teatro de Operações.
Novos dilemas éticos e do Direito Internacional dos Conflitos Armados (DICA) surgirão. A definição entre combatentes e não-combatentes e mesmo o que é ou deixa de ser uma ação militar sofrerá mudanças. Novos conceitos terão que definir, por exemplo, se um drone robotizado poderá ser empregado contra soldados inimigos. Ou se um ataque cibernético, que desligue a eletricidade de uma cidade onde há uma base militar, mas também de hospitais que atendam a civis, é ou não legítimo do ponto de vista do DICA.
Na conclusão do documento, o exército dos EUA reconhece que tentar prever acontecimentos futuros não é uma tarefa fácil. Mas que todos devem reconhecer que se vive um momento de aceleração de mudanças e que as ideias, conceitos, doutrina, equipamento e treinamento atuais provavelmente serão insuficientes para se obter sucesso nos conflitos do futuro. E que esse sucesso dependerá das decisões tomadas hoje.
Finalmente, não se deve ignorar que a divulgação deste documento de modo ostensivo atende ao exército norte-americano na medida em que transmite à sociedade e aos políticos do país a ideia de que serão necessários vultosos recursos financeiros para que a Força se mantenha nos níveis operacionais adequados à nova realidade mundial. Por outro lado, divulga para a comunidade internacional uma mensagem clara de que o país estará preparado para enfrentar esse novo e desafiador cenário que está por vir, fortalecendo a dissuasão e mostrando aos competidores que haverá um alto custo financeiro para se manter em condições de desafiar os EUA. Nesse aspecto, não custa lembrar que a desintegração da antiga União Soviética se deveu, em parte, aos excessivos gastos com defesa, decorrentes da corrida armamentista com os EUA durante a Guerra Fria, que debilitaram economicamente o país.
Quanto a nós, brasileiros, o documento relembra a máxima de que constitui erro capital preparar uma força armada para a última guerra, ao invés da próxima. Cabe estar atento e manter os olhos postos no futuro, para que o país tenha forças armadas à altura dos desafios que lhe serão impostos no século 21.
Fonte: Blog Paulo Filho, Liderança e Geopolítica