Em 15/09/2020, aconteceu em Washington DC um evento sem precedentes na História - Israel assinou os Acordos de Abraão (referência a Abraão, patriarca dos judeus e dos árabes, tanto na Bíblia como no Corão), que são acordos de paz com dois países árabes (EAU - Emirados Árabes Unidos, e Bahrein) no mesmo dia. Até julho de 2020, ao longo dos seus 72 anos, Israel só tinha fechado outros dois acordos de paz com países árabes: Egito em 1979 e Jordânia em 1994. Os acordos com EAU e Bahrein foram anunciados com menos de 30 dias entre eles - 13 de agosto foi anunciado o acordo com os EAU e 11 de setembro foi anunciado o acordo com o Bahrein.
Ou seja, em 1 mês Israel dobrou os acordos de paz com países árabes dos últimos 72 anos.
Esses acordos, que vêm sendo costurados pelos EUA desde que o Presidente Trump assumiu o governo em 2018, marcam mudanças profundas nos paradigmas não apenas na diplomacia americana, mas também em como inimigos históricos se veem em uma região tão conturbada do nosso globo.
Vamos analisar, brevemente, como essas mudanças se desenrolaram.
A AMEAÇA IRANIANA
O Irã era um forte aliado dos países ocidentais depois do golpe que instituiu o Xá Reza Pahlavi como governante em 1953. Em 1979, por meio da Revolução Islâmica, o Irã se tornou uma teocracia que se opõe ferozmente ao Ocidente, em especial EUA, Inglaterra e Israel, e até hoje é governada pelo Conselho Revolucionário. Sua política expansionista e de apoio a diversos grupos terroristas fez com que já em 1984 o Irã entrasse na lista americana de países que apoiam o terrorismo, começando assim uma série de sanções contra o país.
Como parte de sua política expansionista, e como forma de se contrapor às sanções, o Irã anunciou em 2002 que desenvolveria pesquisas em energia nuclear, de forma contrária ao NPT (Tratado de Não-Proliferação de Armas Nucleares), que o país tinha assinado em 1970.
Após idas e vindas, incluindo revelações de que, ao contrário do alegado pelo Conselho Revolucionário, o Irã está de fato buscando armas nucleares, em 14/07/2015 foi anunciada a assinatura do JCPOA (Plano de Ação Conjunto Global), em que o Irã se comprometia a encerrar quaisquer atividades militares relacionadas à energia nuclear. O Presidente Obama assinou o JCPOA em nome dos EUA, apesar da forte oposição do Congresso, que se recusou a endossar o Acordo. O então empresário Donald Trump protestou vigorosamente contra o acordo, assim como vários aliados dos EUA, que temiam que o Irã usasse o dinheiro para apoiar grupos terroristas.
A iminente assinatura do JCPOA, inclusive, levou a alguns fatos praticamente inéditos.
O GCC (Conselho de Cooperação do Golfo Pérsico, constituído por países árabes do Golfo Pérsico como EAU, Bahrein e Arábia Saudita) e também Israel estavam de acordo sobre o mesmo assunto.
O PM (Primeiro Ministro) israelense, Benjamin Netanyahu, inclusive, chegou a tomar atitudes muito antagônicas ao Presidente Obama, inclusive discursando no Congresso sem o convite ou presença do Presidente. Israel sofreu retaliações americanas na forma de embargos temporários à venda de armas e resoluções na ONU que não foram barradas pelos EUA, algo também extremamente raro.
Após o JCPOA, com o alívio das sanções e a entrada de vultosos recursos, e exatamente como temiam os críticos ao acordo, o Irã aumentou seu apoio a grupos terroristas como Hizballah, Hamas e insurgentes no Iêmen, além de ameaças aos vizinhos. Isso aumentou ainda mais a oposição do GCC ao acordo e, de forma ainda tímida, começou a facilitar os contatos destes países com Israel.
Estes contatos foram, aos poucos, se intensificando e se tornando mais públicos, especialmente depois do começo do governo do Presidente Trump em 2016.
Como era de se esperar, Trump agiu contra o JCPOA na primeira oportunidade após sua eleição, em maio de 2018, reimpondo sanções contra o Irã.
O imbróglio continua até hoje, com o Irã ameaçando os vizinhos, Israel e os EUA.
A AMEAÇA TURCA
A Turquia, país que surgiu das cinzas do outrora poderoso Império Otomano, é um dos poucos países muçulmanos com o sistema jurídico totalmente laico.
Entretanto, desde que o ex prefeito de Istambul, Recep Tayyip Erdogan, subiu ao poder como PM da Turquia em 2003, começou uma nova fase da política externa turca.
As ações turcas, cada vez mais assertivas e agressivas, complicaram suas relações exteriores na região:
- Turquia rompeu com Israel em 2010 após o incidente com o Mavi Marmara
- Turquia tinha invadido o Chipre em 1974, ainda ocupa metade do país, e conversas de paz dão um passo pra frente e dois pra trás desde então; fronteiras terrestres e marítimas são parte do problema. França pende para o lado do Chipre
- Grécia e Turquia são inimigas a séculos; até hoje há disputas em relação a fronteiras terrestres e marítimas. França pende para o lado da Grécia
- Israel e Chipre descobriram reservas consideráveis de gás natural, algumas das quais estão em áreas reivindicadas pela Turquia. Além das reservas em si, há planos para gasodutos, que também passam por áreas reivindicadas pela Turquia (gasodutos devem passar pela Itália também)
- guerra civil da Síria: Turquia invadiu a Síria, supostamente para combater terroristas curdos; com isso, arrumou tretas com Rússia e Síria
- guerra civil da Líbia: Turquia apoia o grupo GNA (apoiado pela ONU), enquanto que Egito, Emirados Árabes Unidos e outros países (veladamente a França também) apoiam o grupo LNA. Rússia parece apoiar os dois lados
Como se pode observar na longa lista de desavenças da Turquia, os EAU têm na Turquia outro inimigo comum com Israel. Outros países do GCC também não estão felizes com as ações turcas, o que pode facilitar outros acordos entre Israel e países árabes.
A "QUESTÃO PALESTINA"
Quando Israel declarou, após um hiato de milênios, seu renascimento e independência em 1947, reconhecida formalmente pela ONU em 1948, começou uma longa história de conflitos com os países árabes.
No dia seguinte ao reconhecimento da independência pela ONU, vários países árabes atacaram Israel, e o que seriam dois países acabaram virando Israel, com a Faixa de Gaza ocupada pelo Egito e a Cisjordânia ocupada pela Jordânia, situação que, apesar de não ser reconhecida pela comunidade internacional, persistiu até a Guerra dos Seis Dias.
A vitória estonteante na Guerra dos Seis Dias de 1967, seguida pela vitória apertada na Guerra do Yom Kippur de 1973, consolidaram as fronteiras israelenses, especialmente após os acordos de paz com Egito e Jordânia, seguidos pela trégua mediada pela ONU com o Líbano em 2000, que validaram quase todas as fronteiras israelenses.
Desta feita, as fronteiras israelenses são reconhecidas internacionalmente, com exceção de contenciosos na fronteira com a Síria (resquícios da Guerra dos Seis Dias) e nas fronteiras internas com a PA (Autoridade Palestina), reconhecida internacionalmente como governo interino dos palestinos, um povo de ascendência árabe, na ausência de um acordo de paz formal com Israel, após o colapso dos Acordos de Oslo assinados em 1993
A "Questão Palestina", como é geralmente chamada, persiste sem uma solução que satisfaça a ambas as partes, Israel e PA.
Até muito recentemente, era tido como "senso comum" que Israel não poderia normalizar suas relações com os países árabes sem antes resolver a "Questão Palestina".
Entretanto, desenvolvimentos relativamente recentes, como a Primavera Árabe (que começou em 2011), a ascensão de ameaças como o grupo terrorista ISIS (Estado Islâmico), as ameaças iraniana e turca, entre outras, levaram os países árabes a rever muitos dos seus conceitos, inclusive a normalização de relações com Israel.
Provas contundentes destas mudanças foram vistas em agosto e setembro de 2020.
Assim como Irã e Turquia (que não são países árabes), a PA reagiu de forma imediata e vigorosa ao anúncio do acordo entre Israel e EAU, pedindo uma reunião extraordinária da Liga Árabe para repudiar o acordo, tal como aconteceu na época do acordo entre Israel e Egito; na época, o Egito chegou a ser expulso da Liga Árabe, situação que persistiu por quase 10 anos.
Qual não foi a surpresa da PA quando, além de rejeitar o pedido de repúdio, a Liga Árabe declarou que os países membros têm total liberdade de conduzir suas relações externas da forma que acharem melhor!
Além desta declaração bastante incisiva, países árabes têm, repetidamente, declarado que as atitudes da PA não são as melhores para os palestinos, mostrando assim que a "Questão Palestina" não é tão central como o "senso comum" queria fazer parecer - ou que, no mínimo, eles não veem com bons olhos a PA, especialmente o Presidente Mahmoud Abbas, cujo mandato deveria ter encerrado em 2009, mas que permanece no poder porque barrou todas as tentativas de eleições desde então.
Mas as facções palestinas não vão aceitar tranquilamente esta mudança, tanto que o Hamas atacou Ashdod mais ou menos no horário da cerimônia de assinatura dos acordos em Washington.
CONCLUSÃO
Como toda mudança de paradigmas, há grande incerteza sobre o futuro, além de ceticismo e oposição às mudanças.
Tal ceticismo e oposição não vêm apenas de lugares já esperados, como Irã, Turquia e PA, mas também da Europa.
A União Europeia persiste no “senso comum” que pouco ou nada melhorou a situação dos palestinos nas últimas décadas. Apenas o representante da Hungria esteve presente na cerimônia de assinatura dos acordos.
O tempo dirá quem está com a razão, mas tudo indica que a prática de atrelar acordos entre Israel e países árabes à "Questão Palestina" está com os dias contados.
Renato Henrique Marçal de Oliveira é químico e trabalha na Embrapa com pesquisas sobre gases de efeito estufa. Entusiasta e estudioso de assuntos militares desde os 10 anos de idade, escreve principalmente sobre armas leves, aviação militar e as IDF (Forças de Defesa de Israel).
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