A USAF é, por larga margem, a maior força aérea do mundo,
mas isso também significa que suas demandas de REVO (reabastecimento em voo) e
transporte aéreo são igualmente imensas, o que se reflete na sua enorme
quantidade de aeronaves de transporte. Apesar dos números impressionantes que a
mesma exibe, um olhar mais atento revela dificuldades que precisam ser sanadas
com grande urgência, porém, nem o relógio, nem o orçamento ajudam.
Primeiramente, vamos a algumas definições. Na nomenclatura
da USAF, “K” (Kilo) representa a capacidade de transferir combustível, ou seja,
um tanker (“avião cisterna” em algumas nomenclaturas). Por exemplo, o C-130 é
uma aeronave de transporte que não é capaz de transferir combustível a outras
aeronaves (ou seja, não é um tanker), mas a variante KC-130, fruto da modificação no C-130 padrão, o qual recebe
diversos sistemas específicos para atender essa capacidade, é capaz de realizar o REVO.
Embora as definições sejam de certa forma arbitrárias, e por
vezes chegam a se confundir, pode-se definir uma aeronave de transporte tático
como sendo aquela de menor capacidade, geralmente medida em termos de capacidade de carga e
alcance, as quais operam mais próximo ao campo de batalha, enquanto que o
transporte estratégico, envolve aeronaves maiores e mais capazes, mas que
também demandam uma infraestrutura mais elaborada, o que impede tais aeronaves
de operar muito próximo a linha de frente.
No momento, a USAF opera uma frota com aproximadamente 500
aeronaves, 397 das quais são exemplares do vetusto KC-135 e 12 dessas aeronaves do KC-46 Pégasus, os quais
possuem limitações para cumprir missões REVO (este o foco deste artigo); mas
todos são capazes de realizar missões de transporte e operam a logística norte americana.
Além das aeronaves REVO, a USAF opera em torno de 400
aeronaves de transporte tático, das quais cerca de 300 são variantes do mítico C-130 Hércules.
Mas sua real força reside nos transportadores estratégicos, contando com os
monstruosos C-5 Galaxy (52 unidades) e sua espinha dorsal sendo composta pelo
C-17 Globemaster III (222 unidades).
O C-5 tem um compartimento de carga muito volumoso, que
somado à sua capacidade, pode carregar quase 128 toneladas, o que faz dele uma
aeronave essencial à USAF. Embora o C-17 carregue menos cargas (77,5 ton) e com
volumes menores que o C-5, ele pode operar em pistas mais rústicas, o que o
torna insubstituível em determinados teatros de operação.
Em um primeiro momento, pode parecer que tudo está bem. Mas
há problemas, alguns bastante sérios, e no momento não está claro como, ou se,
a USAF resolverá tais problemas sem reduzir sua capacidade operacional.
Para começar, na aviação de transporte tático, boa parte dos "Hércules" são de versões mais antigas e não da mais avançada C-130J "Super Hércules". Como os últimos C-130H e os primeiros C-130J foram entregues para a
USAF em 1996, boa parte da força tem mais de 30 anos de bastante uso. Entretanto,
como o C-130J tem apresentado bons resultados em serviço, é relativamente
simples para a USAF substituir os C-130 mais antigos pelos “Juliet”, então é
mais uma questão de cronograma e orçamento do que técnica.
No caso dos transportadores estratégicos a situação também é
complicada, pois o C-5 deixou de ser fabricado em 1989 e o C-17 em 2015. O C-5
tem um triste histórico de problemas ao longo da vida útil, mas sua enorme
capacidade de carga é, por vezes, a única solução disponível. Voltaremos a esse
ponto na próxima parte.
No caso da frota REVO, a situação é ainda mais dramática.
Embora numerosa, quase 80% da frota é composta pelo KC-135, que deixou de ser
fabricado em 1965. Apesar de ter sido modernizado diversas vezes, e mesmo sendo
uma aeronave muito capaz, a idade começa a pesar, e muitos KC-135 estão
chegando ao fim da vida útil das células. Com o KC-10 a situação é um pouco
melhor, tendo sido produzido até 1987. Isso nos leva ao KC-46, cuja história
tem sido bastante conturbada.
PROGRAMA KC-X
Os veteranos KC-135 se aproximam do fim de seu ciclo de vida |
A USAF está bem ciente das deficiências de REVO mencionadas
acima, e já no início dos anos 2000 lançou estudos para substituir 100 dos
KC-135 mais antigos.
A militarização, que é o processo de adaptar uma aeronave
civil para uso militar, não é nada simples. A primeira opção da USAF foi o
leasing de aeronaves KC-330 MRTT (Multi-Role Tanker e Transport), derivados do
Airbus A330 civil através de um processo de militarização, mas considerou que
os custos e riscos técnicos eram muito altos, pois naquela época a Airbus tinha
pouca ou nenhuma experiência com militarização de aeronaves civis em tankers.
A próxima iniciativa da USAF, em 2002, foi o leasing do
KC-767, derivados dos Boeing 767 civil (o maior rival do A330), mas o Congresso
acabou cancelando os trabalhos em 2006, pois o leasing foi considerado pouco
eficaz do ponto de vista econômico. Tanto o A330 MRTT como o KC-767 acabaram
sendo adotados por vários países, conforme este artigo do GBN: (REVO e Transporte de longo alcance - Conheçam as soluções
para lacuna na FAB).
Em 2007, a USAF lançou uma RFP (solicitação de propostas,
via de regra o primeiro passo em uma concorrência) para o KC-X. Airbus (em
parceria com a Northrop Grumman) e Boeing responderam ao RFP com propostas
atualizadas do KC-330 MRTT e KC-767. A proposta da Airbus foi declarada
vencedora em fevereiro de 2008, mas a Boeing recorreu da decisão poucos dias
depois alegando problemas na RFP, e o GAO (equivalente ao TCU) ordenou à USAF
que refizesse a competição já em junho de 2008. Embora o DoD (equivalente ao
Ministério da Defesa) tentasse fazer uma “licitação relâmpago” para resolver o
impasse ainda em 2008, acabou por cancelar o KC-X.
Em 2009 o KC-X foi lançado novamente, desta vez com a RFP
devidamente corrigida, e além da Boeing e da Airbus, houve um terceiro
concorrente, a US Aerospace/Antonov, oferecendo o Antonov An-112 (derivado com
motores a jato do An-70). Após uma série de “trapalhadas”, que incluiu a
eliminação da US Aerospace/Antonov por minúcias técnicas, a proposta da Boeing
foi escolhida em fevereiro de 2011, conforme relatado pelo GBN (KC-46A NewGen Tanker da Boeing é o novo reabastecedor da
USAF). A proposta da Boeing era tão agressiva
financeiramente que a Airbus preferiu não recorrer, alegando que havia um sério
risco de prejuízo econômico se o fizesse.
O CDR (revisão crítica do design) só foi concluído em 2013,
como relatado à época pelo GBN (USAF conclui revisão de projeto do KC-46 Tanker).
O primeiro voo do KC-46A foi em 28 de dezembro de 2014.
Além da demora de quase 10 anos até a escolha do KC-46,
diversos problemas técnicos na fase de desenvolvimento, muitos relacionados à
militarização em si, estão se mostrando difíceis de resolver. Uma falha no
sistema de retenção de cargas levou a USAF a proibir a operação da aeronave no
transporte de cargas entre setembro e dezembro de 2019, mas a falha de projeto
já foi resolvida.
Mas dois outros problemas estão se mostrando mais difíceis
de resolver, como as falhas no RVS (sistema de visão remota), que o GBN
explicou em mais detalhes: (KC-46 coloca em risco capacidade de REVO da USAF),
e o recente anúncio em 31 de março de 2020 de problemas com vazamento de
combustível da haste (probe) de transferência de combustível, sendo graves o
bastante para serem consideradas como Categoria 1.
Categoria 1 descreve uma classe de defeitos graves o
bastante para impedir ou limitar seriamente a capacidade da aeronave de efetuar
missões relacionadas a tal sistema. Uma aeronave em desenvolvimento que
apresente um defeito Categoria 1 não pode atingir a IOC (Capacidade Inicial de
Operação, em que a aeronave é liberada para usos reais limitados).
O KC-46 deveria ter obtido IOC já em 2017, mas estamos em
abril de 2020 e ainda não há uma data fixada para ser emitida a IOC,
principalmente em função dos problemas com RVS e de transferência de
combustível.
Como o contrato do KC-X impõe à Boeing que arque com os
custos referentes a atrasos, o maior problema não é o econômico, mas o
cronograma em si. O fato de a USAF já ter programado para 2021 a retirada do
serviço ativo de 13 dos seus KC-135 e outros 10 exemplares do KC-10, significa
que o problema é muito urgente, podendo impactar seriamente nas capacidades
operacionais de diversos meios da USAF.
Para complicar ainda mais a situação, o programa de
substituição do KC-10, o KC-Z, ainda não saiu do papel; a Boeing propôs um
derivado do Boeing 777 para a função. Falamos mais sobre o KC-777, e um pouco
sobre o KC-46 e o A330 MRTT em artigo publicado aqui no GBN: (REVO e Transporte de longo alcance - Conheçam as soluções
para lacuna na FAB).
O provável competidor do KC-777 seria um Airbus A350 com o
pacote MRTT; o A350 é o maior rival do 777 no mercado civil.
CONCLUSÃO
Os constantes atrasos do KC-46 devem começar a prejudicar a
USAF já em 2021, como explicado na 1ª parte. E embora a recente troca na
diretoria da Boeing, motivada em grande parte pelos problemas do 737 Max, tenha
mostrado bons resultados até o momento, o KC-46 continua apresentando problemas
graves, e é improvável que a aeronave atinja o IOC até 2021. Resta à USAF
esperar pelo melhor, e à Boeing correr contra o relógio para evitar um apagão
em suas capacidades de projeção de longo alcance com apoio de REVO, além das
limitações em suas capacidades de transporte estratégico da USAF.
Por: Renato Marçal
GBN Defense - A informação começa aqui
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