sábado, 16 de maio de 2020

“LUTAR NO FRIO E NA LAMA”: A CAMPANHA TERRESTRE NA GUERRA DAS MALVINAS (PARTE II)


Tropas argentinas em Port Stanley, 2 de abril de 1982
Leiam a primeira parte desse artigo.

CONSEQUÊNCIAS DA INVASÃO

Após a invasão argentina às ilhas Malvinas e Geórgia do Sul, que chocou o mundo, os ingleses, logo após a conclusão das operações argentinas, receberam via rádio e telex (uma espécie de comunicação de forma impressa da época) a confirmação da presença de grandes forças argentinas nas ilhas. Isso provocou a mobilização das forças inglesas para o envio de uma grande força aeronaval para a retomada das ilhas. As operações militares britânicas na Guerra das Malvinas receberam o codinome “Operação Corporate”, e o comandante da força-tarefa era o almirante Sir John Fieldhouse.

Entrementes, foram tentadas soluções diplomáticas envolvendo a Organização das Nações Unidas (ONU) – que votou a Resolução 502, exigindo a imediata retirada argentina das ilhas, sendo ignorada pelos mesmos – e tentativas de intermediação do Papa João Paulo II, dos governos dos Estados Unidos, Cuba (que enviou um embaixador para a Argentina e ao sobrevoar o território brasileiro sem autorização, sua aeronave – um Illyushin Il-62 da empresa aérea Cubana de Aviación – foi interceptado por caças Mirage IIIEBR da Força Aérea Brasileira), França e até do Brasil para uma solução pacífica para o conflito. Como argentinos e ingleses não chegaram a um acordo, a possibilidade de um conflito armado entre os dois países visando a retomada das ilhas pelos ingleses era iminente.

No dia 6 de abril, o governo britânico criou um Gabinete de Guerra, com a liderança da então Primeira-Ministra Margaret Thatcher, para supervisionar diariamente o desenrolar da campanha. Este foi o instrumento crítico de gerenciamento da crise para os britânicos. O Gabinete de Guerra reuniu-se pelo menos diariamente até ser dissolvido em 12 de agosto. Nesse gabinete todas as mais importantes decisões sobre a condução da crise e da guerra foram tomadas.

A OCUPAÇÃO DAS ILHAS MALVINAS

Enquanto as indecisões pairavam no ar sobre o futuro das ilhas, no caso das Malvinas, essa passou a viver uma ocupação militar por parte dos argentinos, que durou 74 dias, até o final da guerra. Durante essa ocupação, os argentinos mudaram alguns elementos do dia-a-dia dos habitantes da ilha: passou a usar o espanhol como idioma oficial da ilha em vez do inglês, mudou todos os nomes ingleses das ruas, vilas e cidades para nomes argentinos (Port Stanley, por exemplo, tornou-se “Puerto Argentino”), inverteu a mão das ruas, da esquerda tradicional inglesa para a direita usada na Argentina, mudou placas do sistema imperial inglês para o sistema métrico adotados pelos argentinos, mudou selos e códigos postais, dentre outras modificações.

Durante a ocupação cerca de 114 habitantes das ilhas foram presos por “desobediência civil” e ao menos 14 foram mantidos em prisão domiciliar durante a ocupação. Um dos atos de desobediência civil mais famosos foi o de Reg Silvey (faroleiro e rádio amador) que transmitia mensagens de rádio clandestinas por toda a ocupação, inclusive ajudando os ingleses estarem a par das condições dos habitantes da ilha. Muitos habitantes foram “fichados” e outros já estavam sendo monitorados mesmo antes da invasão por potencialmente serem considerados “perigosos”. Mesmo assim não foram verificados abusos das tropas de ocupação nem dos policiais argentinos designados para as ilhas.

Com exceção de alunos de uma escola, que foi evacuada para o continente e seu prédio transformado em quartel pelos argentinos, não houve confisco de propriedade privada durante a ocupação, mas, se os habitantes da ilha se recusassem a colaborar com os argentinos, os bens em questão poderiam ser requisitados, como é normal em situações militares. No entanto, os oficiais argentinos desapropriaram temporariamente propriedades civis para morar em Port Stanley e Goose Green, embora punissem severamente quaisquer praças que fizessem o mesmo.

A FORÇA-TAREFA BRITÂNICA E A PREPARAÇÃO PARA A RETOMADA DAS ILHAS

O trajeto da Força-Tarefa britânica durante a Campanha das Malvinas

O governo britânico não tinha um plano de contingência para uma invasão das ilhas, e a força-tarefa foi rapidamente reunida a partir de qualquer embarcação disponível da frota inglesa. O submarino nuclear HMS Conqueror partiu da França no dia 4 de abril, enquanto os dois porta-aviões HMS Invincible (que estava pra ser vendido para a Austrália) e HMS Hermes (que tinha sido vendido para a Índia e estava para ser entregue), na companhia de embarcações de escolta, deixaram Portsmouth apenas um dia depois. O transatlântico SS Canberra foi requisitado e partiu no dia 9 de abril com a 3ª Brigada de Comandos a bordo. O transatlântico SS Queen Elizabeth 2 também foi requisitado e deixou Southampton em 12 de maio com a 5ª Brigada de Infantaria a bordo. Toda a força-tarefa acabou por compreender 127 navios: 43 navios da Marinha Real, 22 navios auxiliares da Frota Real e 62 navios mercantes requisitados para a missão.
 
Fotografia da capa da revista norte-americana "Newsweek", do dia 19 de abril de 1982, representando o HMS Hermes, líder da Força-Tarefa Britânica. A manchete lembra o título da sequência de 1980 de Guerra nas Estrelas, "O Império Contra-Ataca", de grande sucesso na época.

A retomada das Ilhas Malvinas era considerada extremamente difícil, sendo considerada impossível por muitos analistas da época. Em primeiro lugar, os britânicos estavam teoricamente inferiorizados pela disparidade no tamanho de suas frotas aéreas implantadas na região. Os britânicos tinham apenas 42 aeronaves (28 Sea Harriers e 14 Harrier GR.3, aeronaves V/STOL que nunca havia sido testadas em combate) disponíveis para operações de combate aéreo, contra aproximadamente 122 caças a jato (que mesmo enfraquecidos com o embargo imposto à Argentina desde 1977, ainda consistia uma poderosa força), dos quais cerca de 50 eram caças supersônicos de superioridade aérea (Mirage III e Dagger) e o restante como aviões de ataque (A-4 Skyhawk e Super Étendard – esse capaz de levar o poderoso míssil antinavio Exocet), das Forças Aéreas da Argentina (FAA e COAN) durante a guerra. Fundamentalmente, os britânicos careciam de aeronaves de alerta e controle aéreo (AEW). O planejamento também considerou a frota de superfície argentina e a ameaça representada por navios da Marinha Argentina equipados com Exocet ou pelos então dois modernos submarinos Tipo 209.

Em meados de abril, a Royal Air Force (RAF) montou a base aérea “RAF Ascension Island”, situada no mesmo local do Aeroporto de Wideawake no território ultramarino britânico da Ilha da Ascensão, no meio do Oceano Atlântico, a cerca de 2.200 km do litoral de Pernambuco, Brasil e a mais de 6.000 km das Malvinas, incluindo uma força considerável dos bombardeiros Avro Vulcan B Mk 2, os aviões de reabastecimento Handley Page Victor K Mk 2 e os caças McDonnell Douglas Phantom FGR Mk 2 para protegê-los. Enquanto isso, a principal força-tarefa naval britânica chegou à Ascensão para se preparar para o serviço ativo. Uma pequena força já havia sido enviada para o sul para recuperar a Geórgia do Sul.

Os encontros começaram em abril; a Força-Tarefa Britânica foi acompanhada por aeronaves Boeing 707 de reconhecimento da Força Aérea Argentina durante sua viagem ao sul. Vários desses voos foram interceptados pelos Sea Harriers fora da zona de exclusão imposta pelos britânicos (de 320 km em torno das ilhas); os 707 estavam desarmados não foram atacados porque ainda estavam em andamento movimentos diplomáticos e o Reino Unido ainda não havia decidido se comprometer com a força armada. No dia 23 de abril, uma aeronave comercial Douglas DC-10 da então companhia área brasileira VARIG a caminho da África do Sul foi interceptado pelos britânicos Harriers que identificaram visualmente o avião civil.

A OPERAÇÃO PARAQUET: A RETOMADA DAS ILHAS GEÓRGIA DO SUL
 
Mapa da "Operação Paraquet", 25 e 26 de abril de 1982.

A retomada das Ilhas Geórgia do Sul, a “Operação Paraquet”, foi realizada sob o comando do major Guy Sheridan, dos Royal Marines (RN), foi composta de soldados do RN de 42 Commando, operadores do Serviço Aéreo Especial (SAS) e do Serviço Especial de Botes (SBS) que foram enviadas como forças de reconhecimento apoiando o ataque principal dos Royal Marines. Todos foram embarcados na RFA Tidespring. O primeiro a chegar foi o submarino “HMS Conqueror”, no 19 de abril, e a ilha foi sobrevoada por um Handley Page Victor, que efetuou missão ELINT, no dia 20 de abril.

Os primeiros desembarques das tropas da SAS ocorreram no dia 21 de abril, mas o tempo estava tão ruim (principal característica das operações terrestres da Guerra da Malvinas – o mau tempo) que a operação foi abortada depois que dois helicópteros caíram no nevoeiro numa geleira no sul das ilhas. No dia 23 de abril o RFA Tidespring recebeu um alerta de um possível submarino argentino na região, tendo que se afastar das ilhas. No dia seguinte, 24 de abril, as forças britânicas se reagruparam e foram novamente tentar atacar as ilhas.
 
Um dos helicópteros Westland Wessex caídos durante a operação. Ao fundo, operadores SAS saíndo de outro Wessex,

No dia 25 de abril, após cumprir missão de reabastecimento da guarnição argentina no nas ilhas, o submarino ARA Santa Fe foi avistado na superfície por um helicóptero Westland Wessex HAS Mk 3 do HMS Antrim, que atacou o submarino argentino com cargas de profundidade. O HMS Plymouth lançou um helicóptero Westland Wasp HAS.Mk.1 e o HMS Brilliant lançou um Westland Lynx HAS Mk 2. O Lynx lançou um torpedo e atingiu o submarino com sua metralhadora; o Wessex também disparou contra Santa Fe com sua GPMG. O Wasp do HMS Plymouth e outros dois Wasps lançados pelo HMS Endurance dispararam mísseis antinavio AS-12 ASM no submarino, acertando-o em cheio, mesmo não ativando totalmente suas espoletas. O Santa Fe também foi danificado por torpedos e tornou-se inoperante. A tripulação abandonou o submarino no cais em King Edward Point.
 
Dois Royal Mariners no cais inspecionando o abandonado submarino "ARA Santa Fe" e seus danos.

Com o RFA Tidespring agora no mar, e as forças argentinas aumentadas pela tripulação do submarino, o major Sheridan decidiu reunir os 76 homens que ele tinha e fazer um ataque direto naquele dia. Após uma curta marcha forçada pelas tropas britânicas e uma salva de bombardeio naval por dois navios da Marinha Real (HMS Antrim e HMS Plymouth), as forças argentinas se renderam sem resistência.

Na manhã do dia 26, o comandante da guarnição argentina nas ilhas, tenente-comandante Luis Lagos (que decidira não lutar contra forças tão poderosas) firmava a rendição na base do British Antarctic Survey em King Edwards Point. O infame tenente-comandante Alfredo Astiz, responsável pelos quinze comandos mergulhadores táticos não aceitou, a princípio, este fato. Porém, diante do que se tinha acima, pela tarde firmaria também a rendição a bordo do HMS Plymouth, copiando desnecessariamente o ato de Lagos. Incapaz de resistir ao ataque britânico, Alfredo Astiz se rendeu a uma pequena força de comando britânica e assinou o documento de rendição incondicional sem disparar um único tiro, o que violaria o código militar argentino, que poderia lhe dar até três anos de prisão. A imagem de Astiz assinando o documento de rendição deu a volta ao mundo.
 
Astiz e seus homens nas Ilhas Georgia do Sul, em 1982

Astiz era acusado de ter participado do assassinato de vários militantes de esquerda durante a “Guerra Suja” na Argentina na década de 1970, inclusive, quando foi capturado pelos ingleses, foi requisitado para extradição pelo governo francês para ser julgado na França pelo desaparecimento de duas freiras francesas na Argentina. Como ele foi capturado como Prisioneiro de Guerra, ele não poderia ser extraditado para a França, então com o fim da Guerra das Malvinas, ele pôde retornar para a Argentina, juntamente com os outros capturados.

A mensagem enviada pela força naval da Geórgia do Sul para Londres foi: “Tenha o prazer de informar Sua Majestade que a Bandeira Branca tremulava ao lado do Union Jack (a bandeira britânica) na Geórgia do Sul. Deus salve a rainha”. A primeira-ministra, Margaret Thatcher, deu a notícia à mídia, dizendo-lhes: “Apenas se alegrem com essa notícia e parabenizam nossas forças e os Royal Marines!”


Na terceira parte desse artigo, as operações terrestres inglesas para a retomada das Ilhas Malvinas.

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Por Luiz Reis, Professor de História da Rede Oficial de Ensino do Estado do Ceará e da Prefeitura de Fortaleza, Historiador Militar, entusiasta da Aviação Civil e Militar, fotógrafo amador. Brasiliense com alma paulista, reside em Fortaleza-CE. Luiz colaborou com o Canal Arte da Guerra e o Blog Velho General e atua esporadicamente nos blogs da Trilogia Forças de Defesa, também fazendo parte da equipe de articulistas do GBN Defense. Presta consultoria sobre História da Aviação, Aviação Militar e Comercial. Contato: [email protected]






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