Com a Guerra na Síria a pleno vapor, e com a Turquia aumentando sua participação em um conflito que inicialmente era uma guerra civil, começaram a surgir combates aéreos entre aeronaves turcas e sírias, com a TuAF (Força Aérea Turca) inclusive chegando a abater, com caças F-16 e mísseis AIM-120, algumas aeronaves de da SyAAF (Força Aérea Síria) em missões CAS (apoio aéreo aproximado). A TuAF enviou caças para missões CAP (patrulha aérea de combate) depois que aeronaves da SyAAF causaram mais de 30 baixas entre os turcos.
Em resposta a este desenvolvimento, a SyAAF anunciou que enviaria caças Mig-29, armados com mísseis R-77, para fazer missões de CAP e escolta. Ao que parece, a TuAF reduziu as CAP dos seus F-16, indicando que estão levando a sério a possibilidade de combates com os MiG-29 e preferem não correr riscos.
Tanto a mídia especializada como as pessoas que acompanham a temática ficaram em polvorosa, com torcidas de um lado e do outro, surgindo muitas coisas que não tem bases com a realidade.
O GBN, preparou um artigo simplificado, com o intuito de contribuir com nossos leitores, ampliando seus conhecimentos.
F-35C Lightining II lançando um AIM-120 AMRAAM. |
QUAL É O ALCANCE DE UM MÍSSIL?
Muitos debates iniciam com afirmações como o caça “X” com o míssil “Y” pode abater alvos a 200 km, gerando análises do tipo “super trunfo”, com os lados apresentando apenas as fichas técnicas dos AAM (mísseis ar-ar) e dos caças.
Mas para entender melhor o assunto, a primeira informação é que as especificações não são algo sagrado, até mesmo em literaturas dos próprios fabricantes é possível encontrar divergências. A razão é que a informação é apenas simplificada. Quando um fabricante por exemplo diz que o míssil “Y” tem um alcance de 100 km.
Como se é de esperar, o fabricante informa o alcance do míssil, ele vai apresentar o maior valor possível. Este é o alcance cinemático, que é o alcance físico máximo do míssil em condições ideais, geralmente algo do tipo, contra um alvo grande e não manobrável (ex: avião de transporte), com lançador e alvo na mesma e elevada altitude (por exemplo, 30-35 mil pés), ambos à mesma velocidade (geralmente em torno de Mach 0,9), em determinadas condições ambientais, e ambos em aspecto frontal (alvo à frente) e alinhamento perfeito (atitude, ou ângulo entre as aeronaves, é 0º). Este geralmente é o alcance que o fabricante se refere na ficha técnica, os tais 100 km.
Em combate real, o disparo de mísseis quase nunca é feito próximo do alcance cinemático por algumas razões – primeiro porque o alvo vai manobrar quando detectar o disparo, as condições de altitude, as posições não são o alinhamento frontal perfeito, as altitudes e velocidades, além das condições ambientais, também não são as mesmas utilizadas ao determinar o alcance, e por aí vai. Ou seja, o alcance cinemático pode variar bruscamente frente a mudanças relativamente pequenas de atitude, altitude e velocidade, por exemplo.
Por isso, além do alcance cinemático, a análise também considera o alcance efetivo, que é uma fração do alcance cinemático, geralmente entre 50 e 75%, em que o alvo tem muito menos condições de fugir. O alcance do míssil Y já caiu para 50-75 km, mas este valor varia muito menos que o alcance cinemático com diferenças relativamente pequenas de altitude, atitude e velocidade.
Considerando-se que o alvo não é um avião de transporte, mas sim um caça, entra um outro alcance, que é a NEZ (No Escape Zone), que é menor que o alcance efetivo, geralmente em torno de 75% dele, ou seja, algo em torno de 35 – 56 km para o míssil Y. E é dentro da NEZ que a maioria dos abates reais acontecem, e as manobras do inimigo já são levadas em consideração, ou seja, dentro da NEZ o inimigo tem pouca chance de escapar, ainda que faça manobras evasivas.
Outro ponto a se levar em consideração é a propulsão do míssil. A maioria dos mísseis utiliza motores foguete, o que significa que vão exaurir o combustível em pouco tempo e a partir daí só vão perder energia, especialmente com manobras ou mudanças de altitude.
Entretanto, mísseis como o MBDA Meteor, que usam propulsão ramjet, continuam com o motor em funcionamento por praticamente todo o engajamento, o que pode aumentar significativamente sua NEZ.
Outro fator a se levar em consideração é a trajetória do míssil. A maioria deles voa mais ou menos em linha reta para engajar seus alvos, dando o menor tempo de voo possível. Entretanto, em algumas situações de alcance extremo, pode ser preferível uma trajetória “loft”, em que o míssil vai subir bastante e depois virar para baixo para atacar o alvo. Poucos mísseis podem usar esta trajetória, e mesmo os que podem não vão fazê-lo em todas as situações.
Finalmente, temos que levar em consideração questões de atitude, altitude, aspecto e velocidade; todos os alcances acima são para engajamentos iniciados no aspecto frontal, atitude tão próxima de 0º quanto possível, e à mesma altitude e velocidade no momento do disparo.
Engajar um alvo que não esteja à mesma altitude do lançador significa que o míssil perderá energia ao ganhar altitude e/ou enfrentar o ar mais denso das baixas altitudes. Da mesma forma, um engajamento no aspecto traseiro significa que o alvo está se afastando durante o engajamento, forçando o míssil a, literalmente, ‘correr atrás’ do alvo.
Quanto à combinação entre aspecto, velocidade e alcance, há um fato curioso – maior velocidade do alvo significa maior alcance num engajamento em aspecto frontal e menor alcance no engajamento em aspecto traseiro, enquanto que a menor velocidade tem o efeito inverso. Ou seja, a velocidade pode facilitar ou dificultar o engajamento, dependendo das circunstâncias.
O alcance num engajamento em aspecto traseiro pode reduzir o alcance para 10% do alcance em aspecto frontal, e um engajamento com as aeronaves em aspecto lateral pode reduzir o alcance a 50%; em ambos os casos a redução depende das velocidades do alvo e do atacante.
A velocidade e a altitude do lançador também são importantes. A grosso modo, quanto mais alto e mais rápido o lançador está, maior será o alcance cinemático do míssil, geralmente também aumentando a NEZ.
De forma geral o combate aéreo pode ser reduzido ao seguinte – você procura colocar o inimigo dentro da sua NEZ ao mesmo tempo em que faz de tudo para não cair na NEZ do inimigo.
Quanto aos SAM (Surface Air Missiles)? Os mesmos conceitos se aplicam, com a diferença que o míssil sempre parte de baixas altitudes e com velocidade e altitude iniciais zero. É por isso que um SAM tem alcance bastante inferior a um AAM que use o mesmo projétil. O RIM-7 Sea Sparrow, por exemplo, tem apenas 25% do alcance do AIM-7 Sparrow, que usa o mesmo projétil. Para contornar tais limitações, os SAM geralmente recorrem a boosters (pequenos motores foguete, geralmente descartados após o lançamento) ou a projéteis maiores que os lançados do ar, já que geralmente o aumento de peso não é tão crítico como em aeronaves.
RIM-7 Sea Sparow |
Finalmente, um último aviso em relação aos alcances – como os militares não costumão divulgar dados completos, apresentando apenas pontos positivos, é bem possível que os alcances reais dos mísseis sejam maiores ou menores do que o fabricante é autorizado a divulgar, o que influencia nas análises, mas não muda os princípios básicos mencionados até aqui.
SENSORES
A “Kill chain” (corrente da morte) de F2T2EA (Find, Fix, Track, Target, Engage, Assess) deve ser realizada a cada ação militar. Disparar mísseis é o elo “E” (engajar). Para quebrar a corrente, basta quebrar um dos elos, o quanto antes melhor.
De nada adianta o míssil ter centenas de quilômetros de alcance, se o vetor de lançamento não tiver antes concluído as demais etapas da corrente, e de nada adianta engajar se não fizer, depois do engajamento, uma avaliação dos resultados do engajamento: o alvo pode, por quaisquer motivos, não ter sido atingido, podendo até, em certos casos, contra-atacar.
Os valores reais dos alcances acima, especialmente a NEZ, dependem muito dos sensores e sistemas instalados no lançador e no alvo. Na guerra aérea, o sensor mais importante ainda é o radar, pois apresenta maior alcance e robustez frente a condições climáticas. A desvantagem é que sistemas como o RWR (Radar Warning Receiver) alertam o alvo para emissões de radar, e a mudança nos padrões de emissão (necessárias conforme os elos da corrente mudam) ajudam nas medidas defensivas.
Radares mais modernos, com capacidades como AESA (varredura eletrônica ativa) e CEC (capacidades de engajamento cooperativo, em que sistemas de outras unidades aliadas, como aeronaves, auxiliam no engajamento), podem aumentar a NEZ do mesmo míssil em comparação a situações sem AESA e/ou CEC.
Este é um dos grandes atrativos de sistemas como o E-99 AEW – seu enorme radar pode aumentar significativamente a eficiência de caças sob sua tutela. Dependendo da combinação de sistemas e sensores, é até mesmo possível que um caça consiga disparar um míssil com o radar desligado, confiando em informações de um AEW transmitidos por meios seguros como data link; com isso, sistemas RWR do alvo não são alertados, exceto quando o míssil ligar seu radar interno, o que geralmente só acontece a curtíssimas distâncias, em que pouco ou nada pode ser feito para evitar o abate.
Os IRST (Infra-Red Search and Track) vêm ganhando espaço já que, ao contrário do radar, conseguem detectar o inimigo sem fazer emissões. Entretanto, no estado atual da tecnologia, os IRST não só tem alcances bem menores que os radares, como também são muito mais suscetíveis a situações climáticas como nuvens.
Entretanto, assim como há vários alcances para os mísseis, também há vários “alcances” para os sensores; os valores mencionados para os sensores geralmente são os de rastreio, ou seja, o atacante já sabe onde o alvo está e direciona todo o poder do sensor numa região relativamente pequena do céu. Alcances de busca são muito menores, pois o sensor tem que distribuir seu poder para faixas maiores do céu. E os alcances ainda podem ser reduzidos pelo inimigo, através de EW e LO, dos quais falaremos mais adiante.
NOE, EW, LO, VANT, ARM, SEAD, DEAD, A2AD, IADS
Ninguém quer facilitar a vida do inimigo, e há diversos meios e técnicas para quebrar a corrente, ou pelo menos para reduzir as distâncias em que o inimigo consegue encaixar os elos.
Uma técnica bastante utilizada, e que de certa forma já foi mencionada anteriormente, é o voo a baixa altitude. Da mesma forma como a altitude favorece o atacante ao aumentar o alcance do míssil e o alcance do radar, voar a baixa altitude reduz ambos. Em algumas situações, aeronaves voam NOE (Nape off Earth) para dificultar a detecção, técnica relativamente simples mas bastante eficiente, especialmente contra radares em solo.
Mas o voo NOE é complicado. Muitos casos de CFIT (colisão com o solo em voo controlado) em combate ocorrem justamente em NOE, já que a pouca distância do solo reduz muito as possibilidades do piloto. Além disso, os esforços estruturais são maiores, o que complica a manutenção e reduz a vida útil da aeronave, além de aumentar a fadiga dos pilotos. Finalmente, voos NOE aumentam consideravelmente o consumo de combustível, reduzindo sensivelmente o alcance de combate.
Além do aspecto puramente cinético (o míssil gasta muita energia pelo atrito com o ar mais denso das baixas altitudes), há de se levar também em consideração que o ruído do solo (as ondas de radar se espalham, e ao bater em obstáculos e no próprio solo) e a curvatura da Terra acabam por reduzir o alcance efetivo dos radares.
Outros meios amplamente utilizados para fugir ao alcance dos radares são a EW (Eletronic Warfare) e técnicas LO (pouco observáveis, ‘”Stealth”). Na prática, ambos tem o mesmo efeito, que é diminuir as distâncias de encaixe dos elos, dando ao inimigo menos oportunidades de engajamento. É possível combinar as técnicas para diminuir ainda mais o alcance de burn through (alcance em que o radar consegue detectar um alvo mesmo com EW, LO e NOE). Sistemas EW também podem ajudar a determinar quem é o inimigo e com que sistemas está tentando engajar sua aeronave.
Os valores de NEZ mencionados anteriormente não levam NOE, EW e LO em consideração, mesmo, porque as variações são muito grandes, especialmente quando as técnicas são combinadas. O uso de EW e/ou LO podem reduzir bruscamente os alcances em que é possível o engajamento, ao ponto em que a aeronave aplicando tais técnicas pode conseguir colocar o inimigo dentro da sua NEZ do antes mesmo de ser localizada, o que dá uma tremenda vantagem em combate.
Além de todas essas considerações, deve-se levar em conta os sistemas de despistamento, como “chaff”, “flare” e “jamming”, que em muitos casos conseguem quebrar o “travamento” do míssil, fazendo com que ele não consiga atingir seu alvo.
O uso de Drones (mais tecnicamente VANT, veículo aéreo não tripulado, sigla em inglês UAV) também é importante no combate aéreo. Alguns drones, como o Harop israelense, podem ser usados como suicidas contra baterias de SAM.
Outra opção importante contra radares, especialmente os utilizados em SAM, são os ARM (mísseis anti radar), como o AGM-88 HARM americano. Tais mísseis geralmente forçam o inimigo a não usar os radares, ou usá-los o mínimo possível, o que diminui consideravelmente a eficiência das defesas inimigas.
Via de regra, os países fazem uma rede IADS (sistemas integrados de defesas aéreas), em que sistemas em terra e aerotransportados trocam informações para garantir a integridade do espaço aéreo, garantindo assim uma grande capacidade A2AD (anti-acesso / negação de área).
Para conseguir efetuar missões em locais cobertos por A2AD, deve-se “quebrar” a IADS do inimigo. Esta missão é conhecida como SEAD / DEAD (supressão / eliminação das defesas aéreas do inimigo), em que ARM são essenciais. Em muitas guerras, as primeiras missões executadas por aeronaves é exatamente a “quebra” da IADS.
ROE, ORBAT, CONOPS E TREINAMENTO
Um dos fatores determinantes em combate são as ROE (regras de engajamento), ou seja, as regras em que o militar pode acionar o elo do engajamento. As ROE dependem da situação específica, e podem complicar bastante o combate.
Um exemplo clássico foram as ROE da Guerra do Vietnã. Após vários eventos de fogo amigo (aqueles em que uma aeronave aliada é atacado por outra aeronave aliada, geralmente por falhas de identificação / comunicação), os EUA decidiram adotar ROE muito restritivas, que obrigavam à VID (Visual Identification) da aeronave inimiga.
Com isso, o maior alcance dos sensores EW e radares americanos não ajudavam muito em relação às aeronaves norte vietnamitas, que tinham vantagens em relação ao menor tamanho e maior agilidade.
O míssil AIM-7 Sparrow, que tinha sido criado para combate BVR (Beyund Visual Range – além do alcance visual) contra bombardeiros acabou sendo usado como WVR (dentro do alcance visual) contra caças, e sua performance naquele conflito foi sofrível.
Atualmente, o que se pede é a confirmação por pelo menos dois sensores independentes, como RWR + radar ou IRST + radar, para confirmar a identificação do alvo sem precisar de VID. Com isso, o alcance dos engajamentos pode aumentar consideravelmente, tornando o alcance BVR a nova realidade, a menos que as ROE obriguem a VID.
Outros fatores que sempre devem ser analisados junto com especificações quando em situações reais são os CONOPS (conceitos de operações, que entre outras coisas englobam doutrinas e táticas) e ORBAT (ordem de batalha, ou seja, os meios à disposição) de todos os lados, além de fatores menos tangíveis como treinamento, manutenção e logística.
O F-22, por exemplo, é um caça incrível, mas não vai servir para nada se não estiver com a manutenção em dia e/ou sem combustível para voar; um MiG-21 no ar é melhor que um F-22 no hangar.
Finalmente, o treinamento é essencial, pois apenas pilotos e demais operadores bem treinados conseguem extrair todo o potencial da ORBAT em mãos, aplicando os CONOPS da melhor forma possível. O bom treinamento, inclusive, vai ditar as condições em que a melhor coisa a se fazer é simplesmente evitar o combate; mais vale a pena ficar sem lutar do que se arriscar e morrer.
Buscamos evitar ao máximo a menção de sistemas e situações específicas, já que os princípios acima se aplicam a praticamente todos.
Falando mais especificamente das ações turcas sobre a Síria, pode-se observar muitos dos princípios aqui mencionados:
● A TuAF destruiu baterias de SAM dos tipos Buk e Pantsir, mostrando que a SEAD / DEAD é importante para quebrar a IADS e os meios A2AD numa região de interesse.
● Ao que tudo indica, a TuAF utilizou o máximo da sua ORBAT, especialmente F-16 e AIM-120, conforme CONOPS bem estabelecida e por tripulações bem treinadas e supridas.
● As ROE turcas são flexíveis o bastante para permitir abates BVR, pois nos vídeos que alegadamente apresentam os abates não é possível visualizar as aeronaves turcas.
● Pelo menos uma fonte¹ suspeita do uso de aeronaves AEW pela TuAF com modos CEC através do Link 16 (padrão da OTAN), asserção compatível com abates BVR e identificação de alvos mesmo sem VID.
● Com o anúncio, pela SyAAF, de que caças Mig-29 começarão a fazer CAP, a TuAF diminuiu o envio de F-16 para atacar as aeronaves fazendo CAS, evitando assim engajamentos com maior risco para seus caças; isso indica um alto nível de treinamento, que identificou situações potencialmente perigosas para suas forças.
Por: Renato Marçal
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