Deputados, senadores, prefeitos, governadores, secretários estaduais, magistrados, promotores, desembargadores, ministros. O Brasil é recordista no número de autoridades com foro privilegiado - ou seja, que não são julgados pela Justiça comum, mas por tribunais de segunda e terceira instâncias.
Esse grupo seleto, mas de proporções significativas - cerca de 45 mil pessoas, segundo estimativa do presidente da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe), Roberto Veloso - pode sofrer a primeira restrição significativa desde a promulgação da Constituição de 1988, já que o tema está na pauta tanto do Legislativo quanto do Judiciário.
Nesta quarta, a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara vota um Proposta de Emenda Constitucional (PEC) que extingue a prerrogativa de foro para praticamente toda a lista, exceto para os chefes dos três Poderes. No dia seguinte, o Supremo Tribunal Federal (STF) retoma julgamento que pode restringir o privilégio de políticos, que teriam acesso a ele apenas quando os crimes fossem cometidos no exercício da função e tivessem relação com ela.
O foro especial é utilizado em diversos países sob a justificativa de proteger cargos públicos-chave de perseguição política. A ideia é permitir que autoridades sensíveis a represálias e intimidação sejam julgadas por tribunais isentos, explica Newton Tavares Filho, consultor legislativo da Câmara. "A questão é que nós não temos provas concretas dessa isenção", pondera o especialista.
Autor de um estudo técnico que compara o sistema brasileiro com o de 16 outros países, Tavares Filho não encontrou nenhum tão abrangente quanto o do Brasil. De maneira geral, ele afirma, no resto do mundo o foro especial é restrito a poucos líderes, um número que dificilmente passa de algumas dezenas - presidentes da República, do Senado, da Câmara, primeiros-ministros.
Em muitos casos, a prerrogativa se limita aos delitos relacionados ao cargo e não abrange os crimes comuns, como no Brasil. Os crimes de responsabilidade, que ensejam os processos de impeachment, têm um conjunto de regras à parte, que também varia a depender do país.
Como funciona no resto do mundo
O sistema mais parecido com o do Brasil encontrado foi o da Espanha, onde todos os parlamentares têm direito a foro privilegiado e, por isso, são julgados apenas pela Câmara Penal do Tribunal Supremo. "Estamos falando de algumas centenas de pessoas, isso já é uma situação excepcional", diz Tavares Filho.
A lista também é longa na Colômbia, onde os congressistas - além de alguns magistrados, determinados agentes do Ministério Público, procurador-geral, controlador-geral etc. - estão sob a competência da Corte Suprema.
Os Estados Unidos são o extremo oposto. Nem o presidente americano tem prerrogativa de foro. Esse é um privilégio restrito a alguns diplomatas, embaixadores e cônsules - ou seja, é uma questão mais ligada ao direito internacional.
Na Alemanha, o foro existe apenas para o presidente, que é julgado pela Corte Constitucional em casos de impeachment, previsto para qualquer violação da lei constitucional ou da lei federal. Para ser aberto, o processo precisa passar por uma moção no Bundestag e no Bundesrat, equivalentes à Câmara e ao Senado.
A constituição francesa, por sua vez, dá imunidade ao presidente, que não pode ser sujeito a nenhuma ação, ato de instrução ou ato persecutório perante nenhuma jurisdição ou autoridade administrativa enquanto estiver no cargo. Os casos de impeachment tramitam em uma corte especial formada por membros do Congresso.
Em 1993, os ministros de Estado franceses perderam o foro privilegiado na Suprema Corte e passaram a ser julgados pela Cour de Justice de la République, formada por 12 parlamentares e 3 juízes, apenas nos casos em que os delitos estão diretamente ligados ao cargo. O órgão foi recentemente definido como "jurisdição de exceção" pelo presidente Emmanuel Macron, que é favorável à sua supressão.
No Brasil, o foro já foi ainda mais amplo
Mas se hoje o Brasil se destaca pelo alcance das categorias com foro especial, a situação já foi ainda mais abrangente.
Até 1999, a prerrogativa de foro por função no Brasil valia mesmo depois do fim do exercício funcional - no caso dos políticos, do mandato. A previsão foi estabelecida pela Súmula 394, editada em 1964 e cancelada pelo próprio STF.
Foi ela que garantiu que o ex-presidente Fernando Collor fosse julgado em 1994 pelo Supremo na ação penal que apurava a prática de corrupção passiva. Ele foi absolvido por falta de provas. A mudança na regra permitiu que as denúncias contra o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, por exemplo, fossem enviadas à primeira instância.
O presidente em exercício continua sendo processado e julgado pelos ministros do STF, mas apenas com autorização da Câmara dos Deputados. O caso recente envolvendo Michel Temer é ilustrativo nesse sentido. Ele foi denunciado pela Procuradoria-Geral de República (PGR) duas vezes neste ano, mas o plenário da Casa bloqueou o prosseguimento. O processo fica parado até o peemedebista deixar o Planalto e, depois disso, será enviado à primeira instância.
O ex-ministro do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) José Augusto Delgado lembra que até recentemente os governadores também gozavam da blindagem do Legislativo. Para que fossem processados no STJ, era preciso que as assembleias estaduais permitissem.
Duas decisões do STF de maio, uma delas envolvendo processo que tinha como réu o governador de Minas Gerais, Fernando Pimentel (PT), mudaram a jurisprudência sobre o assunto.
"Eu passei 17 anos no tribunal, recebi vários processos contra governadores. Em nenhum deles a assembleia permitiu que eles se tornassem réus", diz ele, que integrou o STJ entre 1995 e 2008.
O que está em discussão
De autoria do senador Álvaro Dias (PV-PR), a PEC 337/2017 prevê o fim do foro especial para praticamente todas as autoridades hoje previstas na lei. A exceção seria o presidente da República, seu vice e os presidentes da Câmara, do Senado e do STF.
O projeto já passou pelo Senado e está em fase final de tramitação. Na quarta-feira ele será votado na CCJ e, se aprovado, passa para o plenário, onde enfrentará dois turnos.
No STF, o julgamento desta quinta-feira é para restringir o foro somente aos casos ocorridos durante e em razão do cargo ou mandato, não de atos anteriores. Ele foi iniciado em junho, mas interrompido depois que o ministro Alexandre de Moraes pediu vistas - ou seja, mais tempo para analisar o tema.
Já votaram Luís Roberto Barroso, Marco Aurélio Mello, Rosa Weber e a presidente da corte, Cármen Lúcia, todos a favor da restrição. Durante a sessão, o ministro Gilmar Mendes criticou a proposta e rebateu afirmações de que a tramitação no Supremo seria morosa e favoreceria a prescrição das penas. Para ele, a primeira instância seria "muito mais falha" para julgar casos criminais. Ele citou como exemplo o caso do Massacre do Carandiru, ocorrido em 1992 e ainda em aberto.
A mudança discutida no STF é mais branda, explica Tavares Filho, porque a corte não tem a prerrogativa de alterar a Constituição, mas apenas de interpretá-la. A extinção do foro, por exigir uma alteração da Constituição, precisa passar pelo Legislativo.
O caso específico em julgamento é uma questão de ordem proposta por Barroso na Ação Penal 937, que analisa a situação do prefeito de Cabo Frio (RJ), Marquinho Mendes (PMDB).
Denunciado por compra de votos nas eleições de 2008, o político cumpriu o mandato, assumiu como deputado federal em 2015 como suplente de Eduardo Cunha (PMDB-RJ) e, em 2016, foi eleito pela terceira vez em Cabo Frio, fazendo com que seu processo mudasse de foro diversas vezes.
A iniciativa do STF, na avaliação de Tavares Filho, é um sintoma do excesso de atribuições da corte. Especialmente depois do início da operação Lava Jato, ele pondera, o Supremo tem se ocupado cada vez mais com processos envolvendo políticos, e acaba se pronunciando em paralelo sobre uma série de questões importantes, de aborto a união homoafetiva.
"O Supremo não tem agilidade suficiente para julgar (todos os casos que recebe) e não está aparelhado para isso", comenta.
A transferência do foro para as instâncias de primeiro grau, avalia o presidente da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe), Roberto Veloso, daria celeridade aos processos e evitaria que um maior número de crimes prescrevesse antes do julgamento.
"Em três anos de Lava-Jato, o STF não tem uma condenação, enquanto o juiz (Sergio) Moro tem mais de cem", ele acrescenta.
O ex-ministro do STJ José Augusto Delgado defende o fim do privilégio e chama atenção para o protagonismo que os magistrados mais jovens, que em geral estão nas instâncias inferiores, receberiam com a mudança.
"Ao serem chamados a proferir decisões contra autoridades, eles não poderão se deixar pelo prestígio e pelas pressões do julgamento", aconselha.
Fonte: BBC Brasil