O crescente emprego das Forças Armadas no policiamento urbano, como na operação em curso no Rio, reacendeu entre os militares a discussão sobre a necessidade de adaptações legais para o uso das tropas, cujas ações podem restringir liberdades.
"Para uma maior efetividade das ações a sociedade está preparada para abrir mão do direito individual em prol do coletivo?", pergunta, em entrevista por e-mail, o general Otavio Santana do Rêgo Barros, chefe de Comunicação Social do Exército.
O oficial foi comandante do contingente brasileiro na missão de paz no Haiti em 2010 e chefiou uma grande operação no Complexo do Alemão (2011-12), além de ter cuidado da segurança da conferência Rio+20 (2012). Ele cita como um dos marcos legais que deveriam ser analisados o polêmico projeto de lei que prevê o julgamento pela Justiça Militar de crimes comuns, dolosos, cometidos por integrantes das Forças Armadas.
Rêgo Barros repete o argumento da Força de que isso daria segurança jurídica a soldados. A proposta é criticada por especialistas em direitos humanos, que veem nela uma forma de criar "foro privilegiado" para quem age em favelas. Um projeto de lei sobre o tema, o 2014/2003, está parado na Câmara.
"Ela [a Justiça Militar é especializada, constituída por juízes civis e militares de carreira que conjugam o conhecimento jurídico peculiar às atividades militares e a experiência prática, reconhecida pela austeridade na aplicação das penas e por sua celeridade", rebate Rêgo Barros.
Outro ponto que o general levanta é a dificuldade de operação. "Como capturar um criminoso que pode transitar livremente entre as milhares de casas da comunidade? A menos que haja uma delação ou um preciso levantamento de inteligência, torna-se uma tarefa muito difícil", afirma.
"Nas operações de GLO (Garantia da Lei e da Ordem)", afirma o general, referindo-se à convocação de militares pelo poder civil, "surgem questões como a necessidade de um maior controle e fiscalização das pessoas, incluindo restrições de movimento, que podem ferir algumas liberdades individuais e gerar inconvenientes à população local."
"Para se atingir uma maior efetividade nas ações, pode ser necessária a revisão de alguns marcos legais", diz, ressaltando que essa é uma tarefa que governos e o Congresso têm de assumir.
Ele reafirma uma queixa perene do Exército de que os militares não têm como missão natural o policiamento e que seu emprego precisa ser pontual e limitado –embora o governo Michel Temer (PMDB) prometa manter a ação no Rio até o fim de 2018. Desde 2010, foram mais de 30 pedidos de operações nesse modelo, que são previstas em lei, no país.
"Nessa situação [da operação] enquadra-se o apoio nas ações de cerco e patrulhamento de grandes áreas, com a ação principal sendo conduzida pelas forças policiais, mais aptas para cumprir missões dessa natureza. Convém sempre ressaltar que o treinamento do Exército, os seus armamentos e equipamentos são vocacionados para as ações de defesa externa."
Comparando as realidades operacionais no Haiti e no Rio, Rêgo Barros aponta similaridades no ambiente e na ausência do Estado. "Entretanto, apesar das aparentes semelhanças, a maior diferença reside no fato de que as operações ocorrem em contextos legais diversos", diz, lembrando que o Haiti era "caótico" em 2004, quando o Brasil assumiu a Missão de Paz das Nações Unidas na ilha caribenha.
"O país não possuía Forças Armadas, as instituições públicas estavam falidas. As tropas da ONU atuaram segundo um mandato amplo que autorizava o emprego da força. As ações visavam a criação de um ambiente seguro e estável", diz. Houve poucas baixas. Ao todo, a ONU perdeu 186 militares no país em 13 anos, mas apenas 15 em confrontos.
A situação é diversa no Brasil, argumenta o general, porque aqui o ordenamento jurídico está consolidado. No Haiti, o Brasil atuava com liberdade plena, e aos poucos as ações de segurança foram assumidas pela Polícia Nacional Haitiana. Ao fim, os militares agiam de modo análogo ao do Rio, com bloqueios e cercos.
Para ele, isso mostra que mesmo num contexto conturbado de operação de paz, forças policiais são o agente estatal mais adequado para cuidar da segurança pública. "O Exército está e sempre estará pronto para cumprir as suas missões previstas na Constituição, mas o que se espera é que esse emprego não seja banalizado, e que se siga o que prevê a legislação brasileira, ou seja, um emprego episódico, limitado no tempo e espaço", afirma.
Fonte: Folha via Notimp
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