Em mais uma mostra de que em matéria política o Brasil tem um grande passado pela frente, a ideia de implementar o parlamentarismo voltou com força no país. Desde que a República é República, sempre que há uma crise grave o tema volta à boca de políticos e simpáticos à causa.
Rejeitado pela população em plebiscito por duas vezes, os brasileiros passaram os últimos dias vendo e ouvindo personagens influentes de Brasília tratando do assunto.
Desde que a denúncia contra o presidente Michel Temer foi votada na Câmara, na última quarta-feira, deram declarações em apoio à causa o próprio presidente, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, do Senado, Eunício Oliveira, do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes.
Assim, o tema volta a ser quente dentro da pauta da reforma política que tramita no Congresso. Temer costuma dizer que o país vive um regime “quase parlamentarista”, tamanha sua dependência do Congresso para governar.
A desculpa para a investida é sempre a mesma: em uma época de instabilidades, um sistema que permite a troca do chefe do Executivo sempre que ele não tiver maioria parlamentar ajudaria a trazer previsibilidade e estabilidade política.
De acordo com o que o senador e ex-ministro José Serra, um defensor histórico do parlamentarismo, escreveu em um artigo, no modelo atual “as maiorias parlamentares são incapazes de implementar programas majoritários, embora mantenham elevado poder de veto”, o que seria prejudicial para o país, principalmente na hora de implementar agendas positivas.
Especialistas ouvidos por EXAME concordam com a afirmação, mas dizem que, além de o melhor momento para fazer a mudança não ser agora, outras modificações no sistema político e eleitoral deveriam acontecer antes de essa possibilidade ser cogitada.
“Qualquer mudança dessa proporção agora, com vistas nas eleições de 2018, é oportunismo puro”, diz Luiz Guilherme Arcaro Conci, professor de Teoria do Estado e Direito Constitucional da Faculdade de Direito da PUC-SP.
“Além disso, mesmo no médio prazo, sem uma série de reformas, a começar pela partidária, diminuindo o número de partidos, exigindo democracia interna nas siglas, fomentando bases ideológicas claras e acabando com o personalismo que existe, qualquer mudança do sistema de governo será fracassada”.
Para isso, é unânime entre especialistas a necessidade da criação de uma cláusula de barreira. Outros pontos que estão sendo discutidos na reforma política que tramita no Congresso também são apontados como fundamentais, como debates sérios sobre eleições distritais para o Congresso (e não a adoção oportunista do distritão, em debate na Câmara, que tem como único objetivo perpetuar os que já estão no Congresso).
“É preciso um sistema partidário que seja minimamente consistente, que não seja tão múltiplo, senão há muita dificuldade de formar maiorias no parlamento”, diz Ana Paula de Barcellos, professora de Direito Constitucional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). “Do jeito que está, o sistema potencializa as desvantagens do parlamentarismo e não deixa as vantagens se desenvolverem”.
Os riscos
A fragmentação partidária e, por sua vez, a dificuldade para formar maiorias tornariam o parlamentarismo brasileiro também instável, justamente a característica contrária ao que se busca nele. Durante o ano e quatro meses que durou o sistema no país na década de 1960, foram três primeiros-ministros diferentes. “A mera alteração no sistema de governo no Brasil nos proporcionaria algo muito próximo do parlamentarismo italiano, onde há multiplicidade de partidos e infidelidade partidária, personalismo e ausência de ideologia”, diz Conci, da PUC-SP. Nos últimos 70 anos, a Itália teve 63 governos.
Em um momento de crise política aguda, a população também tende a olhar com desconfiança qualquer grande mudança, por melhores que possam ser os argumentos. Uma ideia que tem sido difundida por grupos contrários ao parlamentarismo é que o Congresso – que é confiável para apenas 10% da população, de acordo com pesquisa do Ibope divulgada no ano passado – pode estar agindo em benefício próprio, já que aumentaria seus poderes ao escolher o primeiro-ministro.
A maneira como isso se daria depende de qual for a forma de parlamentarismo escolhida. Em alguns modelos, como o francês e o português, o presidente, eleito pela população, mantém boa parcela dos poderes, num modelo conhecido como semiparlamentarismo, ou semipresidencialismo. Na França, por exemplo, o presidente indica o ministro a ser referendado pelos parlamentares. Aqui, tudo isso dependerá da proposta de emenda que será encampada pelos parlamentares, se isso de fato acontecer.
Nada impede, porém, que seja implementado um parlamentarismo puro, com amplo poder ao Congresso para escolher o primeiro-ministro, o que aumentaria o poder de deputados e senadores. Cabe lembrar que todos os presidentes da Câmara dos Deputados nos últimos 20 anos são investigados ou suspeitos de corrupção. Três deles, incluindo o último, Eduardo Cunha – ferrenho defensor do parlamentarismo -, passaram algum tempo na prisão.
Em uma reunião na noite de terça 9, a mudança no sistema de governo chegou a ser debatida por parlamentares que trabalham na reforma política, mas, de acordo com o presidente do Senado, Eunício de Oliveira (PMDB-CE), ele “não evoluiu”. Isso não significa que não evoluirá em próximas conversas. Por outro lado, o caminho para uma mudança que possa ser aplicada já para as próximas eleições é longo.
Como o sistema de governo é definido na Constituição, seria necessária uma emenda constitucional. Para que isso aconteça, no entanto, é preciso que o projeto seja aprovado por três quintos dos deputados e dos senadores em duas votações em cada casa. Como qualquer mudança com vistas à 2018 deve acontecer no máximo um ano antes das eleições, o tempo para que o processo todo fosse completado é curto. Alguns projetos sobre o assunto tramitam no Congresso, como o do senador Aloysio Nunes (PSDB-SP), apresentado em 2016, mas pouco ou nada andaram.
As dúvidas legais
O Brasil teve dois períodos parlamentaristas. O primeiro, ainda durante o império, aconteceu entre 1847 e 1889. O segundo é uma experiência mais atual e durou um ano e quatro meses, entre 1961 e 1963. O projeto também foi aprovado a toque de caixa com a intenção de reduzir os poderes do presidente João Goulart, que assumiria após a renúncia de Jânio Quadros.
À brasileira, a decisão foi tomada atrelada à consulta à população pela validade do novo sistema de governo, mas foi implementada antes de isso acontecer. Quando foi realizado o referendo, em 1963, o povo escolheu o regime presidencialista e tudo foi desfeito. Algo parecido aconteceu após a Constituição de 1988, que manteve o presidencialismo, mas marcou um plebiscito para que a população decidisse se o sistema deveria ser esse mesmo.
Em 1993, PT, PMDB e PFL (atual Democratas) apoiaram a manutenção do presidencialismo, enquanto o PSDB era favorável ao parlamentarismo. Nenhum grande partido defendeu a outra opção disponível, a monarquia (!). O resultado das urnas foi, assim como em 1963, expressivo: 55% das pessoas preferiram manter o regime em que o presidente tem maior poder, enquanto 24% preferiam a mudança para o parlamentarismo. “Foi um plebiscito legítimo e com ampla representatividade. Por mais que algumas correntes digam que houve problema de marketing político para um dos lados, o resultado foi expressivo”, diz Fernando Schüler, cientista político e professor da escola de negócios Insper.
A realização desse plebiscito é justamente um dos pontos que deixam dúvida quanto à possibilidade da mudança de sistema de governo neste momento ou num futuro próximo. Existem três correntes de pensamentos quanto à legalidade. Uma delas diz que o sistema atual é uma cláusula pétrea da Constituição de 1988 e que a palavra final foi dada no plebiscito de 1993, o que impossibilitaria qualquer mudança. Outra pensa que seria possível uma mudança por meio de emenda constitucional, mas somente mediante nova consulta da opinião pública acerca do assunto. Por último, mas menos defensável do ponto de vista jurídico, está a corrente que diz que não seria necessário um novo plebiscito ou referendo.
Mesmo assim, ninguém arrisca dar uma palavra final sobre como se desenvolverá a questão jurídica sobre o assunto. “A política brasileira pode ser surpreendente. O Congresso pode aprovar uma emenda constitucional que mude o sistema, mas muito provavelmente a questão será submetida ao Supremo por quem ficar descontente”, diz Barcellos, da UERJ.
O Supremo, no entanto, tem tentado se manter afastado de questões que são decididas com grande consenso no Legislativo e apoiadas pelo Executivo. “O Supremo tem escolhido não fazer essa arbitragem política em questões quase consensuais. Se entender que não há uma falta grave, o Tribunal pode não se pronunciar sobre o assunto. A emenda passa a valer e vida que segue”, diz Barcellos. Aconteça o que acontecer, voltaremos a ouvir falar muito em parlamentarismo a cada crise política. Oportunidade não há de faltar.
Fonte: EXAME
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