sexta-feira, 6 de janeiro de 2017

VBTP "Charrua" - Ágil, robusto e com garra

Seguindo nossa série de matérias sobre alguns dos veículos desenvolvidos no Brasil para o mercado de defesa, resolvemos agora apresentar um pouco sobre um dos projetos que julgo ainda um conceito muito interessante e ainda atual, que poderia muito bem vir a atender ás necessidades não apenas do Exército Brasileiro, como também do Corpo de Fuzileiros Navais da Marinha do Brasil. O veículo da vez é o VBTP "Charrua".

Estudos para modernizar o M-59 deram origem ao "Charrua"
Tudo começou com a necessidade do Exército Brasileiro em modernizar suas viaturas M-59 oriundas dos excedentes dos EUA e que estavam muito aquém em termos de desempenho para atender as necessidades do EB. Então, a partir de um desenvolvimento conjunto entre o EB e a Moto Peças S/A, foram iniciados estudos visando modernizar tal viatura, algo muito complexo, tendo em vista que o M-59 era um projeto que remonta o fim dos anos 40 e tendo entrado em operação nos meados de 1953 com o US Army. Para ter ideia do desafio, o desempenho de tal veículo era muito ruim, sua propulsão era composta por dois motores GMC 302 á gasolina, estes motores eram ligados a uma transmissão hidramática 301MG, esse sistema motriz complexo era necessário devido ao grande peso de deslocamento e oferecia um desempenho insatisfatório, com uma autonomia de apenas 150 km e velocidade máxima de 32 km/h apenas!!! Outro ponto negativo era a carência de uma blindagem eficiente.

Em primeiro se pensou em substituir os dois motores GM 302 dispostos nas laterais do veículo, por apenas um motor diesel de origem nacional. Este primeiro passo foi seguido da decisão de se partir para o projeto e concepção de veículo inteiramente novo, aliando o espaço interno do M-59 incorporando o desempenho e qualidades satisfatórias presente no M-113. Então surgia o "Charrua", um incrível VBTP nacional que visava atender as necessidades do EB e do CFN, sendo o substituto natural não apenas das obsoletas viaturas M-59, mas também do M-113 de origem norte americana.

Protótipo M1 do Charrua
Os estudos foram iniciados em 1983, tendo o primeiro protótipo sido apresentado dois anos depois. Inicialmente fora pensado conceber 3 versões base do veículo, sendo uma leve com peso estimado em 18 toneladas, que seria uma das duas versões com capacidade anfíbia, voltada ao transporte de pessoal, ambulância, posto de comando e comunicações. Uma versão média na ordem de 21 toneladas também anfíbia, seria destinada aos fuzileiros navais, destinada a defesa anti-aérea e autodefesa ambos armados com um canhão de 20mm, um armada com torreta de 60mm ou 90mm, além de uma versão equipada com sistema de radar. A terceira versão seria a pesada e sem capacidade anfíbia, sendo destinada a receber um canhão mais pesado de 105mm, uma viatura equipada com obus de 155mm, carro de socorro / oficina, lançador de foguetes e transporte de cargas e munições, oferecendo assim uma família completa de veículos blindados sobre lagartas para atender as necessidades logísticas e de combate do EB e CFN, além de se criar um importante produto para o mercado de exportação, que era ávido pelos produtos e soluções desenvolvidos pela indústria brasileira, que á época oferecia um grande leque de produtos de alta qualidade e baixo custo de aquisição e operação.

A blindagem do veículo era capaz de resistir a munições de 7,62 mm, podendo oferecer proteção contra calibres maiores, até o .50, isso era possível com a aplicação de placas cerâmicas nas superfícies externas, que segundo os seus projetistas, poderia suportar impactos até de munições de 20mm.  Sua motorização contava com um motor Scania de 394 cv, disposto na parte dianteira direita, ao lado do condutor, contava com uma caixa automática Allison (duas marchas à frente e ré), a suspensão contava com dez barras de torção e oito amortecedores hidráulicos e na água a propulsão era feita por dois hidrojatos.

Apesar de ter a previsão de três distintas versões, apenas foram construídos protótipos da versão leve, sendo diferentes entre si no aspecto externo, onde o primeiro protótipo modelo M1 apresentava linhas mais retas muito similares ao desenho dos M-59, porém alguns ajustes foram feitos no veículo, principalmente no exterior, originando o segundo protótipo que vou denominar aqui M2, o "Charrua II", protótipo que apresentava linhas mais arrojadas e modernas com relação ao M1. Ambos protótipo possuíam muitos componentes oriundos do M-41 que era um dos pilares da força blindada brasileira na época.

O acesso ao interior do veículo podia ser feito pela larga rampa traseira de acionamento hidráulico, ou através da duas portas localizadas na rampa ou ainda por duas escotilhas dispostas no teto. A viatura oferecia a capacidade de se disparar do interior da mesma, dispondo de seis seteiras e três periscópios, um deles para visão noturna, ainda havia no teto uma torre que poderia ser equipada com uma metralhadora .50 ou canhões de 20/25mm de acordo com a versão da viatura.

Testado exaustivamente pelo exército que avaliou o protótipo M1, o CFN também avaliou o novo veículo, tendo testado em seu campo de provas o protótipo M2, o "Charrua" apresentou um excelente desempenho e grande mobilidade de manobras tanto na terra, exibindo capacidade de girar em torno do próprio eixo, capacidade conhecida como pivoteamento, como na água onde apresentou grande agilidade oferecida pelo sistema de hidrojato. Em sua configuração padrão o "Charrua" chegava a ordem de 17,5 Toneladas, tendo como padrão uma tripulação de 3 homens, podendo transportar 9 soldados, porém essa capacidade poderia chegar aos 22 soldados. Na estrada o "Charrua" poderia atingir 70km/h e na água navegar á uma velocidade de até 8km/h.

Charrua com a torre Bofors 40mm
Ainda houve uma avaliação com a instalação de uma torre com canhão Bofors de 40mm, que pretendia ser uma versão antiaérea do "Charrua", porém o projeto se limitou a montagem da torre pela CBV, não progredindo.

O Charrua II permaneceu em testes até os anos 90. Apesar de suas inerentes qualidades que o colocavam em um patamar muito acima de tudo que era disponível no inventário das forças em sua categoria, a falta de consciência política, aliada a expressivos cortes de orçamento sofrido pelas Forças Armadas impediu que o "Charrua" fosse produzido. Ainda nesta época, a indústria de defesa nacional enfrentava uma grave crise, com uma enorme que nas exportações, que levou a muitas das indústrias de defesa brasileiras vir a fechar as portas, como foi o caso da gigante Engesa, tal conjuntura política e econômica acabou por inviabilizando o prosseguimento do projeto, que ficou limitado aos dois protótipos até então produzidos e exaustivamente avaliados. Embora se tenha perdido muito de seu potencial, a Moto Peças S/A ao contrário da maior parte da indústria de defesa nacional contemporâneas envolvidas com o desenvolvimento de tecnologia de defesa conseguiu sobreviver, ainda hoje operando sob a razão social de Moto Peças Transmissões S.A.

É lastimável termos tantos projetos promissores e não vermos nenhum interesse político em levar adiante, algo que representaria não apenas independência de material de defesa em relação aos demais players do cenário geopolítico, como também o investimento e a retomada destes projetos é extremamente vital ao desenvolvimento de uma política estratégica, representando muito mais do que apenas produzir seu próprio material de defesa, mas ganhar prestígio e reconhecimento nas relações internacionais e abrir uma nova e promissora oportunidade ao desenvolvimento tecnológico de nossa indústria, gerando capacitação e especialização de mão de obra, contribuindo para o investimento nos centros de pesquisa e desenvolvimento que podem render frutos não apenas ao setor de defesa, mas á um amplo leque de soluções aos mais variados mercados e campos tecnológicos, representando também um promissor mercado de exportação para os produtos nacionais de defesa. 

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