O termo “desglobalização” entrou para o vocabulário político-econômico em 2016.
A decisão do Reino Unido de sair da União Europeia e a eleição de Donald Trump nos Estados Unidos com uma plataforma anti-comércio mostraram que muita gente não acha que integração é sinônimo de prosperidade.
Richard Baldwin não acredita que a globalização será revertida, e sim que ficará cada vez mais “abruta, imprevisível, incontrolável e individual”. E a culpa não é nem da política, e sim da tecnologia.
Professor de economia internacional no Geneva Institute desde 1991 e diretor do Centro para Pesquisa em Política Econômica em Londres desde 2006, Baldwin pesquisa o tema há mais de 30 anos.
No ano passado, lançou pela Harvard University Press o livro “The Great Convergence: Information Technology and the New Globalization” (“A Grande Convergência: Tecnologia da Informação e a Nova Globalização”, em tradução livre).
O livro, por enquanto sem lançamento previsto para o Brasil, entrou na lista de melhores do ano da The Economist e do Financial Times.
Na semana passada, Baldwin conversou com EXAME.com por telefone sobre tecnologia, comércio, política e imigração – e de como o Brasil pode se inserir neste novo mundo. Veja a entrevista:
EXAME.com – Após os grandes choques de 2016, dá para dizer que estamos em meio a uma reversão da globalização?
Richard Baldwin – É uma reação contra a globalização, mas que não fará com que ela seja revertida.
A maioria das pessoas pensa na globalização como bens atravessando fronteiras, e por boa parte do período pós-guerra ela foi realmente liderada pelo comércio.
Mas desde os anos 90, a revolução das comunicações permitiu que a globalização fosse conduzida pela deslocalização do conhecimento.
A tecnologia de informação ficou tão boa que as fábricas puderam ser espalhadas pelos países, e esse desenvolvimento é irreversível.
Estamos vendo uma reação a algumas das implicações sociais disso, mas como ela está fluindo pela internet, não pode ser revertida com um protecionismo antiquado – apesar de que vão tentar.
EXAME.com – Então a tecnologia tem hoje um papel mais importante do que a abertura comercial e de investimento?
Baldwin – Eu acredito que a possibilidade de transferir várias tarefas e coordenar atividades complexas através de grandes distâncias mudou completamente como a manufatura é feita globalmente.
A consequência foi uma nova combinação de alta tecnologia e salários baixos – acima de tudo na China, que juntou trabalho chinês com tecnologia americana, alemã, japonesa. Será difícil desfazer isso porque essa não é uma tecnologia fácil de se conter.
EXAME.com – É interessante porque a produção industrial americana continua crescendo, mas a parcela de trabalhadores nesse setor só cai. E isso é algo que Donald Trump não cita. Proteção comercial pode trazer empregos de volta em mercados desenvolvidos?
Baldwin – Terá um efeito negativo, até onde eu vejo. Os trabalhadores americanos estão competindo com os chineses fora do país e com os robôs dentro do país. Mesmo se tentarem restringir a competição com os chineses, o que não acho ser possível, ainda estariam competindo com os robôs.
A proteção prometida por Trump pode trazer um pouco da manufatura de volta, mas com empregos para robôs, não para trabalhadores – e certamente não para os trabalhadores pouco educados que ele diz proteger.
Um segundo aspecto é que a promessa de colocar tarifas sobre China e México tornará mais caro trazer insumos industriais para a América. Para fazer um carro, Alemanha e Japão, por exemplo, importam partes e componentes dos lugares de baixo custo.
Se você colocar tarifas e isso ficar mais caro, a produção de carros a serem vendidos nos EUA pode até ficar lá, mas a de carros para serem exportados provavelmente irá embora. As tarifas apenas tornarão os EUA uma ilha de alto custo.
EXAME.com – Há um grande debate sobre o efeito da robótica e da alta tecnologia sobre o nível de emprego. Você acha que veremos desemprego em massa ou a economia vai se adaptar e novos cargos serão criados, como a história mostrou até hoje?
Baldwin – Antes era a automação, agora é inteligência artificial. Então acho que é a continuação de uma tendência histórica: pensem em quantos empregos foram substituídos na área de cavalos quando surgiram os carros e caminhões, ou nos portos quando surgiram os contêineres. A automação leva à disrupção, mas não necessariamente à destruição de empregos.
A tendência de semanas mais curtas de trabalho é de certa forma uma resposta a isso, já que mais produção pode ser feita com menos trabalhadores. Todo mundo costumava trabalhar o dia todo no sábado, e isso mudou.
No meu livro estou enfatizando a inteligência remota ao invés da inteligência artificial – e isso pode interessar ao Brasil. Há muita gente bem qualificada em países como o Brasil, em todo tipo de profissão.
Seu salário como jornalista, por exemplo, é provavelmente um décimo do que seu equivalente ganha na Alemanha, e se tivermos software de tradução simultânea – que está sendo desenvolvido rapidamente – você poderia fazer parte desse trabalho e ganhar parte do seu salário.
Duas tecnologias são chave para isso: a telepresença, que é é basicamente um Skype muito bom, e a telerobótica, que são robôs controlados remotamente. Isso permitiria que pessoas no Brasil possam vender serviços nos países ricos sem ir para lá.
Isso será positivo para países em desenvolvimento, que terão uma forma fácil de exportar seus talentos, e disruptivo nos países ricos, onde há muita gente cujos empregos são protegidos hoje apenas pelo fato de que precisam de presença física para executar suas tarefas.
EXAME.com – Você concorda com o diagnóstico de que nos últimos 20 ou 30 anos os grandes vencedores da globalização foram os asiáticos que deixaram a pobreza enquanto as maiores perdedoras foram as classes médias dos países desenvolvidos?
Baldwin – O “gráfico do elefante”, do economista Branko Milanovic, é uma visualização exata disso. Ele mostra como a distribuição de renda global mudou de 1988 a 2008, não por país mas de acordo com o status inicial de cada indivíduo.
Os 20% mais pobres não ganharam tanto. Aqueles no meio, basicamente trabalhadores indianos e chineses, foram os que mais ganharam. A classe média dos países ricos não teve qualquer ganho, mas aqueles mais ricos dentro dos países ricos ganharam muito também.
Eu explico isso com a ideia de globalização pelo conhecimento, transferido dos países ricos para uma porção de outros que se industrializavam rapidamente. Isso criou uma classe média global e tirou 600 milhões de pessoas da pobreza.
Os donos dessa tecnologia no G7 ficaram muito ricos porque agora seu know-how estava sendo aplicado em dois lugares. Eles eram valorizados como profissionais, com conhecimento na cabeça, e como donos da tecnologia, através de empresas como Apple e Google.
EXAME.com – Por que isso não foi previsto pelos políticos nos países ricos?
Baldwin – As pessoas estavam pensando na globalização antiga, que cria alguns vencedores e outros perdedores, mas a nova globalização é mais abruta, imprevisível, incontrolável e individual.
Ao quebrar os processos de produção, ela ajuda ou prejudica as pessoas em um nível muito mais fino de resolução, então fica mais difícil de entender o que está acontecendo.
Mas parte da questão é que os conservadores abraçaram políticas benéficas para os ricos dos países ricos, e tinham desculpas para fazer com que as pessoas acreditasse que poderia ser bom para todos, e não foi.
Os salários para trabalhadores nos países ricos estão estagnados há duas décadas e meia e essas pessoas estavam acreditando em livre comércio e cortes de impostos, e votando por gente que defendia isso.
Estão revoltados e atacando tanto a esquerda quanto a direita porque sentem que foram enganados nos últimos 25 anos. Mas vale olhar além.
O Japão não tem qualquer movimento contra a globalização, apesar de ter passado por tantos choques quanto todo mundo, porque a coesão social faz com que os japoneses ainda se sintam parte do “Time Japão”, compartilhando benefícios e dividindo o ônus, um espírito que desapareceu nos EUA e Reino Unido no período.
Penso na globalização no mundo rico entre os anos 60 e 80. A liberalização dos mercados foi acompanhada por seguridade social, taxação progressiva, seguro saúde, universidades… uma série de políticas sociais simultâneas, o que fez muitos americanos acreditarem que tinham uma chance justa de aproveitar as novas oportunidades lidando com a nova competição.
Desde [Ronald] Reagan, a liberalização avançou, mas com corte no bem-estar social, o que deixou as pessoas pressionadas pelos dois lados (mesma coisa no Reino Unido). Em alguns lugares como na Europa, onde o avanço do estado de bem-estar social continuou, há uma reação, mas menor.
O economista e filósofo Karl Polanyi tem uma teoria de que o fascismo e o comunismo foram uma reação contra as rupturas da Revolução Industrial, que romperam o tecido social tradicional. Se você ler [os romancistas Emile] Zola ou [Charles] Dickens, verá que foi uma época terrível para a classe trabalhadora. E parte da reação foi contra isso.
Trump é contra comércio, mas no Reino Unido, eles são pelo comércio, mas contra a União Europeia. Convenceram as pessoas de que a UE era o problema, mas [a primeira-ministra britânica] Thereza May diz que é a favor do livre comércio com vários países – incluindo a China.
O fato deles serem tão diferentes nessa área indica que não estamos vendo uma solução racional. A raiva está sendo manipulada para sugerir políticas que não são necessariamente do interesse das pessoas que votam por elas.
Os fascistas foram horríveis até para quem votou por eles, mas as pessoas estavam tão bravas que ficaram dispostas a abraçar respostas loucas.
EXAME.com – Você não citou a imigração, celebrada pela maioria dos economistas e rejeitada por boa parte da sociedade – como prova seu papel nas campanhas vitoriosas do Trump e Brexit.
Baldwin – Culpar imigrantes é politicamente potente, mas eles não são os culpados. Veja as áreas do Reino Unido que votaram pelo Brexit: lá não há imigrantes. Agora pense nos lugares que votaram contra, como Londres: cheios de imigrantes.
Imigrantes vão para lugares vibrantes, não para lugares deprimidos sem empregos. Aqueles que ficaram para trás com o declínio da manufatura não perderam emprego para imigrantes, mas para a automação e as importações.
Se você olhar para o impacto dos imigrantes sobre os salários, especialmente na Europa, eles são complementares. Praticamente todo mundo que trabalha em restaurantes ou construção em Londres é estrangeiro; os britânicos não querem mais esses empregos.
É falso dizer que os imigrantes são culpados, mas eles são visíveis e diferentes e é fácil mobilizar as pessoas contra eles.
EXAME.com – O Brasil é uma economia de renda média e ainda muito fechada. Nossa inserção internacional está sendo repensada em um cenário de crise interna e mudança externa. Existe algum mapa?
Baldwin – Uma coisa boa seria recolocar a integração do Cone Sul nos trilhos, já que ele tem um número considerável de pessoas com um nível de renda razoável e que seria útil explorar. Nunca fui contra o Mercosul e acho uma pena que tenha se desmontado um pouco.
Outra coisa: essa ideia de que proteção mantém empregos foi quebrada, e o Brasil precisa pensar em ter bons empregos se integrando nas cadeias de valor globais, ao invés de tentar ter indústrias inteiras. E parcialmente por causa da sua geografia, tentar exportar mais serviços tirando vantagem das telecomunicações.
As pessoas falam na barreira da língua, mas ela está prestes a desaparecer por causa de alguns aplicativos – que ainda não são tão bons, mas apenas precisam de mais processamento, coisa que dobra a cada 6 meses.
Profissionais brasileiros vão poder exportar serviços para outros países, e essa é uma forma de crescimento importante e que exigirá muita tecnologia da informação.
Pense na globalização como algo que permite tirar de onde está abundante e vender onde é escasso, e geralmente o preço mostra onde é abundante ou não. Você tem todo esse talento no Brasil de preço bem baixo por padrões internacionais, e exportação de serviços é onde eu apostaria para o futuro.
Fonte: Exame
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