- Na periferia de Diyarbakir, sudeste da Turquia, há um campo de refugiados onde pelo menos 2.700 yazidis vivem em barracas improvisadas mais de um ano depois de serem expulsos do norte do Iraque por fanáticos do Estado Islâmico.
Estive lá há pouco tempo, conversando com um casal que me mostrou as fotos, no celular, de um homem que teve a cabeça decepada no vilarejo onde moravam.
"São assassinos", disse Anter Halef, um homem orgulhoso, mas desprovido de qualquer esperança. Sentada em um canto, chorando, estava sua filha de 16 anos. Perguntei-lhe o motivo.
"A gente fugiu da guerra e…" murmurou Feryal. Os soluços, incontroláveis, engoliram o resto da frase. Não me lembro de ter visto tamanha dor em um rosto tão jovem. A vida lhe fora arrancada antes mesmo que começasse a viver.
Os yazidis, minoria religiosa vista pelos jihadistas do Estado Islâmico como um grupo de adoradores do diabo, constituem uma pequenina parte dos 2,2 milhões de refugiados que, para escapar da guerra na Síria e da violência no Iraque, foram para a Turquia. O Museu Memorial do Holocausto dos EUA descreve seu extermínio como um ato de genocídio.
Em toda a vasta área que controla – que inclui partes da Síria e do Iraque – o EI pratica o culto niilista à morte baseado em uma leitura medieval do Corão. Abre gargantas em execuções públicas, massacra comunidades "infiéis", como os yazidis, e transforma mulheres e crianças em escravas enquanto forma um califado próprio, baseado nos lucros da venda do petróleo, em um fanatismo absolutista e na habilidade digital.
De tempos em tempos, o grupo exporta o terror para além de seus domínios, como no caso da queda do avião russo que levava 224 pessoas a bordo, do extermínio aleatório de 130 pessoas que aproveitavam uma noite de sexta-feira em Paris e do pior ataque terrorista em solo norte-americano desde onze de setembro de 2001,em San Bernardino, na Califórnia, para pôr fim à panaceia complacente de que o Estado Islâmico era uma ameaça local.
Ninguém pode parar o fenômeno Estado Islâmico. Seu fascínio é inegável. O grupo se mostra em verdadeiras imagens de cinema, cujo efeito é ao mesmo tempo instigante e perturbador.
Em um ambiente de inquietação cada vez maior, políticos direitistas como Marine Le Pen, na França, e Donald Trump, nos EUA, veem suas propostas nacionalistas bem-recebidas. Já está bem claro que as eleições presidenciais norte-americanas de 2016 não vão ser um evento político comum. O medo e sua outra face, a beligerância, serão fatores cruciais.
A extensão dessa influência vai depender dos próximos passos do EI. Surgiu até uma nova corrente relativista que tende a depreciar os militantes, resumindo-os a um pequeno bando de selvagens com destreza cibernética, um "time universitário juvenil", como disse o presidente Obama uma vez, cuja importância só aumentamos se os encararmos da forma que eles próprios atuam contra o Ocidente – ou seja, a postura de guerra total.
Segundo essa linha de pensamento, a retaliação em massa é exatamente o que os jihadistas querem porque resultará em recrutamento. Melhor adotar a doutrina Obama de contenção. Após os atentados em Paris, o vice Joe Biden declarou: "Eu digo ao povo norte-americano que não há ameaça existencial aos EUA. Nada que o EI faça derrubará nosso governo, nem ameaçará o nosso estilo de vida."
Nada? Tente dizer isso para os habitantes de Bruxelas, praticamente confinados durante dias após os ataques na França; ou aos moradores de San Bernardino, onde um dos responsáveis pelo massacre, Tashfeen Malik, jurara lealdade ao EI.
Será o Estado Islâmico uma ameaça existencial às sociedades ocidentais? Por tabela, será que pode manter o controle do território que usa para conduzir essa ameaça? Essas são as principais questões que levamos para o ano que está prestes a se iniciar.
Hoje, a capital do Estado Islâmico, Raqqa, muito mais próxima da Europa do que as montanhas de Tora Bora, no Afeganistão, é tolerada como um núcleo terrorista, ao passo que o santuário afegão da Al Qaeda foi desativado por forças militares após os ataques a Nova York e Washington. É como se a metastização da ideologia jihadista que gerou o EI como sua nova manifestação mais potente sugasse a vontade do Ocidente.
Nesse final de ano, pela primeira vez, algumas pesquisas revelam que a maioria dos norte-americanos é a favor do uso de forças terrestres contra o Estado Islâmico. A política foi rejeitada pelo presidente Obama, embora no discurso que fez, após o massacre de San Bernardino, tenha pedido ao Congresso autorização para o uso de força militar contra os terroristas.
O presidente François Hollande deixou bem claro que a França está em guerra com o EI e que a luta agora deve ter um tom muito mais urgente; entretanto, no momento, a impressão é de que a sua é uma voz solitária. Para o governo Obama, a estratégia de operações aéreas está dando certo e colocar forças militares em terra, principalmente depois do Iraque, seria loucura.
Não entendo como o EI pode ser encarado como qualquer outra coisa que não uma ameaça existencial às sociedades ocidentais, pois defende a destruição de todas as liberdades conquistadas – sejam políticas ou sexuais – consequentes do Iluminismo e da rejeição da religião como referência de ordem da sociedade. Sua ascensão levaria a humanidade de volta à Idade Média, já que cada apóstata seria um alvo de destruição.
A facção relativista que prega o "esperar para ver o que vai dar" tem, no mínimo, que dizer por que tem tanta certeza de que os militantes não vão usar o território que controlam, nem o dinheiro que possuem, para desenvolver armas de destruição em massa, incluindo as químicas, ou lançar um ataque cibernético devastador no Ocidente. Precisa explicar por que acredita que o tempo é nosso aliado.
A liberdade não é para qualquer um. O caminho que leva a Raqqa é, sob vários aspectos, o mesmo que parte do fardo que ela representa – desde as escolhas pessoais e seus dilemas à submissão, passando pela ideologia islamita abrangente. Se o mundo livre e seus aliados na região tiverem que lutar contra esse magnetismo, eles têm que se livrar da droga consumista da liberdade.
Porque o mal, quando não combatido, se propaga. Permitir que o Estado Islâmico consolide seu poder sobre territórios e mentes no ano que se aproxima é convidar, ou, no mínimo, aceitar, a repetição inevitável das tragédias de Paris ou San Bernardino; é admitir que o fracasso sírio vai continuar piorando. Isso, por sua vez, vai aumentar a ansiedade e os medos de que os políticos nacionalistas, geralmente islamofóbicos, na Europa e EUA, se aproveitam.
No campo de refugiados yazidis, Anter Halef me disse: "Não temos mais vida neste mundo. Só vazio." Ele estava alquebrado, mas, pelo menos, tinha vivido sua vida – ao contrário dos filhos. "O EI não tem religião. Nenhum homem, em sã consciência, mataria uma criança. Numa única noite, eles assassinaram 1.800 pessoas."
Desde a nossa conversa, combatentes curdos e yazidis retomaram a cidade de Sinjar, área de onde vem a família de Halef. Os curdos estão investigando uma vala comum que contém os restos mortais de mulheres mais velhas que o Estado Islâmico, no controle da região desde agosto de 2014, não quis mais usar como escravas do sexo.
Talvez os Halef consigam um dia retornar a Sinjar, palco de todas essas abominações, mas a minha impressão é a de que, pelo menos para a adolescente Feryal, não há volta.
Não sei direito o que aconteceu à garota, mas sem dúvida ela foi destruída, da mesma forma que o jornalista James Foley, antes de ser decapitado, em agosto de 2014. Jamais me esquecerei dos olhos da jovem, transformados em poços vazios. Eles pediam uma atitude da humanidade.
Fonte: The New York Times
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