A indústria nacional de defesa renasce diante do reaparelhamento das Forças Armadas e empresas como Embraer, Avibras e Helibras investem e conquistam clientes num mercado que movimenta US$ 1,5 trilhão por ano
" O Brasil é um país pacífico.” A frase, estampada na primeira página do Livro Branco de Defesa, documento que reúne as estratégias das Forças Armadas brasileiras, é de uma verdade inconteste. Atualmente, 65 nações estão em pleno conflito bélico, em seus próprios territórios ou em terras estrangeiras. O Brasil não é uma delas. O País vive em harmonia com seus vizinhos e, desde a Segunda Guerra Mundial, terminada há exatos 70 anos, não envia tropas para combater além das nossas fronteiras – salvo em missões de paz, como no Haiti.
Isso não impede, no entanto, que a indústria nacional esteja presente, de forma efetiva, em diversas zonas de guerra. Ao contrário, o armamento made in Brazil tem conquistado cada vez mais espaço no trilionário mercado global de defesa, após importantes vitórias de empresas como Embraer, Avibras, Helibras, Imbel e Condor, entre outras. Pouca gente sabe, mas o avião EMB-314 Super Tucano, fabricado pela Embraer no município de Gavião Peixoto, no interior de São Paulo, possui mais de 30 mil horas de combate.
A aeronave destacou-se na famosa operação Fênix, conduzida pela força aérea da Colômbia, nas proximidades da fronteira com o Equador, que resultou na morte de Luis Edgar Devia Silva, codinome Raúl Reyes, o número dois das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc), em 2008. Nessa operação, o “pequeno notável” brasileiro combateu ao lado de jatos A37-Dragonfly, fabricados pela americana Cessna e operados pela CIA, a agência de inteligência dos Estados Unidos. O desempenho do Super Tucano chamou a atenção dos americanos. Tanto que, em 2013, a Embraer venceu uma licitação para fornecer aeronaves leves de reconhecimento para a maior potência militar do mundo.
As primeiras unidades foram entregues em setembro do ano passado e devem ser usadas em missões de combate e treinamento. “Não sei se há, na história, outro caso de um fabricante estrangeiro que vendeu aviões para a força aérea dos EUA”, afirma Jackson Schneider, presidente da Embraer Defesa e Segurança. “Em sua categoria, não existe nada mais moderno do que o Super Tucano.” Vender equipamentos militares aos americanos não é algo corriqueiro para indústria nenhuma no mundo. Os Estados Unidos possuem, de longe, o maior orçamento militar do planeta.
Para se ter uma ideia do tamanho da conta, o mercado global de armamentos movimenta, por ano, algo em torno de US$ 1,5 trilhão. As forças armadas comandadas pelo presidente Barack Obama respondem por metade disso, ou cerca de US$ 750 bilhões. “Se você somar os orçamentos das 10 maiores marinhas do mundo, por exemplo, dará mais ou menos o que gasta a marinha dos Estados Unidos”, afirma Sergio Jardim, diretor da Clarion Events, empresa americana de eventos responsável pela realização da Laad, feira internacional de defesa e segurança, que aconteceu em abril passado, no Rio de Janeiro.
Praticamente 100% desse dinheiro vai para a indústria local de defesa, formada por gigantes como Lockheed Martin, Boeing e Northrop Grummam. Entrar nesse seleto clube de fornecedores é um feito e tanto do Brasil e reforça o crescimento da unidade de defesa da Embraer. Na empresa, de São José dos Campos (SP), essa divisão já representa 20% das receitas. Segundo Schneider, o turboélice está causando furor entre os pilotos americanos. Em tempos de veículos aéreos não tripulados, ele traz de volta aos soldados a emoção do combate real.
O avanço dos armamentos brasileiros no exterior tem como pano de fundo os diversos projetos em curso para reequipar as Forças Armadas do País. Entre eles, estão o Prosub, que vai desenvolver o primeiro submarino nuclear; o Sisgaaz, sistema de monitoramento das águas territoriais; o Sisfron, de supervisão das fronteiras; a compra dos caças Gripen, da sueca Saab; e a renovação da frota de blindados do Exército. A expectativa é de alcançar investimentos públicos superiores a R$ 190 bilhões, até 2028. O ponto de partida para essa nova fase da indústria bélica foi a aprovação da Estratégia Nacional de Defesa, condensada no “livro branco”, em 2008.
“Os investimentos das Forças Armadas ressuscitaram a indústria nacional de defesa”, afirma Sami Hassuani, presidente da Avibras, fabricante de armamentos pesados. “Até porque, para exportar, é preciso, primeiro, vender para o governo. Ninguém compra uma arma que não é utilizada no país de origem do fornecedor.” A Avibras, de São José dos Campos (SP), vendeu recentemente duas baterias do seu sistema de lançamento de mísseis Astros, utilizado pelo Exército, para a Indonésia. O contrato, estimado em mais de R$ 500 milhões, compreende 36 veículos blindados com lançadores de foguetes, suprimentos, munições e softwares.
O negócio reinsere a Avibras no cenário de defesa internacional. Fundada em 1961, a fabricante fornecia armamentos para o Iraque, de Saddam Hussein, na década de 1980. Na época, o líder iraquiano, condenado à morte e enforcado em 2006, ainda vivia em paz com as grandes potências ocidentais. O fundador da companhia brasileira, João Verdi de Carvalho, falecido em 2008 em um acidente de helicóptero, era figura recorrente nos jantares promovidos pelo ditador. Nos anos 1990, Carvalho, assim como todo o Ocidente, mudou de lado e passou a armar o exército da Arábia Saudita e seus aliados, além de frequentar os luxuosos palácios da família real saudita.
A intrincada diplomacia criou um fato inusitado, mas não muito incomum no setor de armamentos. Na Guerra do Kuait, em 1991, o Astros foi utilizado pelos dois lados do conflito. “A indústria de defesa segue a diplomacia do País”, afirma Hassuani. “Sem o governo, não fazemos nada.” Na década de 1990, a infraestrutura das Forças Armadas foi praticamente sucateada. Tanques de guerra velhos, satélites obsoletos, aviões ultrapassados e até falta de munição fizeram parte do dia-a-dia dos militares, muito em função do ressentimento dos primeiros governos civis após 21 anos de ditadura militar (1964 -1985).
“Foi uma década perdida”, afirmou à DINHEIRO um coronel do Exército, que não quis ter seu nome revelado. A definição da estratégia de defesa era uma demanda antiga dos militares. O assunto começou a ser discutido no governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o plano foi aprovado no seu segundo mandato. Em 2010, as premissas foram revistas e atualizadas, estabelecendo as bases para os investimentos. “A definição da estratégia de defesa, não só possibilitou o reaparelhamento das Forças Armadas, mas também deixou claro qual é o papel dos militares, que é defender o território brasileiro contra possíveis ameaças”, afirma o Almirante Carlos Afonso Pierantoni Gambôa, vice-presidente da Associação Brasileira das Indústrias de Materiais de Defesa e Segurança (Abimde).
“Somos um país pacífico, mas que sabe se defender.” A partir de 2010, o setor bélico deu um salto no Brasil. Existem, atualmente, mais de 400 empresas de defesa nacionais. A maioria é formada por pequenos negócios, focados no desenvolvimento de tecnologias complexas, que operam como satélites em torno dos grandes fornecedores. “Essa indústria tem uma característica muito impactante para a economia: a capacidade de desenvolver tecnologias específicas para o seu negócio, mas que transbordam para outros setores”, afirma Schneider, da Embraer.
“Hoje, a maior parte das grandes inovações tecnológicas do mundo vem da área militar.” Um belo exemplo de como funciona essa cadeia pode ser encontrado no desenvolvimento do KC-390, o avião cargueiro que está sendo desenvolvido pela fabricante de jatos, que já teve 28 unidades compradas pelo governo brasileiro e cuja aquisição vem sendo cogitada por outros países, entre eles Portugal. Além da Embraer, outras 50 fornecedores participam diretamente do projeto. “A nossa pregação da paz não nos faz descuidar da profissionalização e da atualização das nossas Forças Armadas”, afirmou, em discurso na Laad, o ministro da Defesa, Jaques Wagner.
“Por isso, dentro de cada uma das Forças, os projetos estratégicos compõem um quadro de investimentos em que a indústria de defesa transborda para a indústria nacional como um todo.” O atual cenário geopolítico global também está ajudando a indústria nacional de defesa. Desde o fim da Segunda Guerra Mundial, em 1945, subsiste a ilusão de que os maiores conflitos armados entre as nações ficaram para trás. A Europa acaba de comemorar sete décadas de paz, no maior período da história sem o enfrentamento direto de potências como Alemanha, França, Inglaterra, Itália e Rússia – os conflitos que aconteceram nesse período foram localizados, como os na Bósnia e na Chechênia.
A questão é que essa aparente tranquilidade na relação entre os países contrasta com uma crescente atividade terrorista, diversos conflitos locais e embates entre governos, facções criminosas e grupos separatistas. Dados reunidos pelo Instituto Internacional de Estudos Estratégicos e pelo Conselho para Relações Internacionais, entidades internacionais que realizam estudos sobre zonas de guerra, mostram que, hoje, existem 65 países envolvidos em combates, em seus próprios territórios ou não.
Quase a totalidade desses conflitos é caracterizada como “assimétricos”, jargão militar para designar zonas de guerra que opõem exércitos estabelecidos e grupos guerrilheiros ou terroristas – na verdade, só há um conflito em curso, atualmente, que pode ser caracterizado como uma guerra tradicional, entre Rússia e Ucrânia (leia mais na página 36). São os casos, por exemplo, das guerras contra o grupo extremista Estado Islâmico, na Síria e no Iraque, e seu aliado Boko Haram, na Somália. “Esse é o pior tipo de conflito, pois você não sabe quem é o inimigo”, afirma o almirante Pierantoni. Há, atualmente, mais de 600 grupos classificados como terroristas, separatistas ou guerrilheiros.
BONANÇA - Graças a esses conflitos, a indústria bélica vive um momento de bonança. “Havia uma expectativa, há alguns anos, de crescimento nos investimentos em defesa e segurança”, afirma Marwan Lahoud, diretor-geral para a área internacional da francesa Airbus, uma das maiores empresas de defesa do mundo. Segundo Lahoud, que também preside o Conselho das Indústrias de Defesa Francesa (CIDEF), o Brasil entrou no mapa estratégico do setor tanto pelas oportunidades de venda, quanto pela possibilidade de se fazer parcerias com a indústria nacional.
A Airbus controla, no País, a fabricante de helicópteros Helibras. Em 2008, Lula e o então presidente francês, Nicolas Sarkozy, assinaram um contrato para a compra de 50 helicópteros Super Cougar, ou EC-725, da Airbus, preparados para o transporte tático de tropas. A produção das aeronaves começou na França, mas vai prosseguir no Brasil, nas instalações da Helibras. As primeiras unidades foram entregues no ano passado. O valor do contrato é estimado em € 2 bilhões. Trata-se de um modelo de negócio idêntico ao adotado na compra, por cerca de US$ 5,4 bilhões, dos novos caças da Força Aérea Brasileira, do modelo Gripen, fabricados pela sueca Saab, cujas últimas unidades a serem entregues serão montadas pela Embraer, em São José dos Campos.
Além da renovação dos equipamentos, o Brasil terá acesso a conteúdos tecnológicos que vão ajudar a desenvolver a indústria nacional. A Helibras, no caso, é a única fabricante de helicópteros da América Latina. Ainda que tenha capital estrangeiro, é uma empresa nacional. Não são apenas as empresas de alta tecnologia que se aproveitam do atual cenário. A fabricante de armas leves e munições Imbel, empresa pública vinculada ao Ministério da Defesa, já obtém metade de sua receita por meio de exportações. Nesse campo, concorre com a gaúcha Taurus, cujos revólveres têm grande aceitação nos Estados Unidos.
Há também um mercado crescente para equipamentos não letais, utilizados por forças policiais. Esse setor é puxado pelo grande número de revoltas populares que vêm acontecendo, nos últimos anos, insufladas, principalmente, pela velocidade das comunicações nas redes sociais. Em 2010, por exemplo, uma onda de manifestações deu origem ao movimento denominado Primavera Árabe, que resultou na queda de três chefes de Estado, Zine El Abidine Ben Ali, da Tunísia, Hosni Mubarak, do Egito, e Muammar al-Gaddafi, da Líbia. A agitação popular atingiu também a Argélia, o Bahrein, a Jordânia, o Iêmen, entre outros. Nesses conflitos, a indústria bélica brasileira também esteve presente.
A carioca Condor, fabricante de armas não letais, como bombas de gás lacrimogêneo e armas de choque, é uma das principais fornecedoras desse tipo de armamento no mundo. A empresa, que produz mais de 1 milhão de artefatos por ano, inclusive, esteve no centro de uma polêmica. Em 2012, ativistas pró-democracia no Bahrein denunciaram que uma de suas bombas, usadas pela polícia do país, foi responsável pela morte de um bebê. O Itamaraty chegou a anunciar que iria abrir uma investigação para averiguar possíveis violações das regras de exportação, mas arquivou o caso um ano depois, sem encontrar irregularidades.
Fotos das bombas com a inscrição “made in Brazil” correram as redes sociais. Polêmicas como essa fazem parte do cotidiano das empresas que atuam no setor de defesa. Não é raro crises diplomáticas interferirem nos negócios. A Avibras, por exemplo, sofreu momentos de tensão, recentemente, quando a presidente Dilma Rousseff mandou chamar de volta o embaixador do Brasil na Indonésia, após a execução do carioca Marco Archer Cardoso Moreira, condenado por tráfico de drogas.
O contrato dos indonésios com a fabricante brasileira chegou a ser utilizado como forma de pressionar a presidente a voltar atrás em sua decisão. Segundo Hassuani, no entanto, em nenhum momento a empresa recebeu ameaças de ter a venda cancelada. No final do ano passado, um conflito de agendas quase se transformou em uma crise diplomática. A confusão se deu depois que o vice-premiê russo, Dmitry Rogozin, que fazia uma visita oficial ao Brasil, tentou ser recebido pela Embraer, em São José dos Campos.
Na única data disponível para o russo, os executivos da Embraer com patente suficiente para recebê-lo estavam fora do País. Sem tempo hábil para fazer mudanças na agenda, a empresa cancelou o compromisso. Rogozin, um inimigo declarado dos Estados Unidos, disse ter achado estranha a atitude e chamou a Embraer de “empresa americana”. Os ânimos se acalmaram após uma calorosa recepção feita pelo vice-presidente Michel Temer, em Brasília. Os russos, assim como os americanos, são parceiros comerciais do País e, nos negócios da paz e da guerra, estão de olho no crescimento da indústria bélica brasileira.
Fonte: Isto É Dinheiro
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