Em geral, noções de gênero definem o comportamento “esperado” de homens e mulheres na sociedade. A feminilidade é uma característica normalmente associada às mulheres, enquanto dos homens espera-se um exemplo de vigor. Em situações de guerra, essas noções não sofrem grandes alterações. Há séculos, as guerras têm sido entendidas, de forma geral, como um espaço masculino, no qual os homens ocupam os papéis principais: são eles os soldados, os perpetradores de crimes de guerra e os guardiões dos vulneráveis. Neste sentido, as mulheres nas zonas de conflito costumam ser retratadas como seres fracos, ainda que elas tenham conquistado mais espaço neste ambiente nas últimas décadas.
As mulheres estão mais integradas nas forças armadas de muitos países e mais perto dos frontes de batalha, mas a guerra ainda permanence um espaço masculino. Os números não apenas confirmam que a presença feminina representa uma minoria das tropas em campo, mas também que as mulheres são excluídas dos cargos mais elevados dos exércitos em períodos de guerra. Nas operações militares, oficiais homens são a grande maioria e uma uniformidade de gênero chocante, conforme destaca Joshua S. Goldstein, professor-emérito da Universidade Americana. Logo, questões de gênero continuam a impor barreiras às mulheres nas guerras pós anos 2000.
Nesse sentido, é importante analisar como as guerras recentes lidam com questões de gênero em relação à presença de mulheres no exército, além de debater porque as guerras modernas permanecem um espaço masculino e como as mulheres são descartadas das posições mais altas na hierarquia de áreas de conflito.
Gênero como barreira
Na América do Norte e Europa, por exemplo, a forma como as mulheres interagem com conflitos se transformou drasticamente desde a Segunda Guerra Mundial. Naquele período, o papel feminino no esforço de guerra era focado em dois aspectos: a esfera doméstica, como as responsáveis pela família durante a ausência dos maridos, e como substitutas da força de trabalho masculina na indústria. A presença das mulheres nas forças armadas era limitada a atividades como enfermagem, conforme aponta Penny Summerfield, professora história moderna da Universidade de Manchester.
De certa forma, um cenário diferente se desenvolveu nestes países em guerras ocorridas nos anos 2000. Embora as mulheres ainda sejam vistas como vulneráveis e propensas a serem vítimas de abusos, elas também acessaram posições antes fechadas a sua participação nas forças armadas. Algumas oficiais foram, inclusive, enviadas a áreas de conflito. O quadro geral, no entanto, ainda mostra guerras e esquadrões militares como ambientes dominados por homens. As mulheres são uma minoria absoluta nos exércitos dos países nos quais podem se alistar, sendo ainda mais raras em situações de guerra.
No exército dos Estados Unidos, por exemplo, membros do sexo feminino representam cerca de 15,7% das tropas ativas, contra 9,8% em 1983. Atualmente, as mulheres podem servir em 95% dos postos do exército e até janeiro de 2016, elas poderão ocupar posições de combate e se candidatar a todas as especialidades profissionais militares. Na intervenção do Iraque de 2003, contudo, o exército norte-americano tinha apenas 15% de suas tropas compostas por mulheres. Esse cenário não é muito diferente em outros países. No Canadá e na Austrália, as mulheres representam cerca de 12% das tropas. Em Israel, onde o serviço militar é obrigatório para homens e mulheres, os números são maiores: as mulheres somam 33% do exército. Cotudo, ainda são sub-representadas nas forças armadas e o mesmo tende a acontecer em guerras.
As mulheres também estão pouco representadas nas missões de paz das Nações Unidas, embora a organização tenha políticas para incluí-las em todas as suas funções. Em dezembro de 2013, havia 98,2 mil soldados nas 18 missões de paz da ONU em todo o mundo, mas apenas 3,7 mil eram mulheres (3,8%). Na MONUSCO, a Missão das Nações Unidas na República Democrática do Congo, dos 21,2 mil soldados, apenas 2,7% eram mulheres. Em março de 2013, a MONUSCO criou uma “brigada de intervenção“, com uma artilharia para neutralizar grupos armados. A missão que era situada em uma zona de conflito, tinha apenas 519 mulheres e nem todas estavam em posições de combate – um indicativo de quão dominados por homens são estes postos.
A prevalência masculina no campo de batalha vai além da demografia. A história da general Janis Karpinski, a única comandante militar mulher dos EUA no Iraque em 2003, apenas reforça que essas oficiais integram uma instituição profundamente tendenciosa contra as mulheres. ComoLaura Sjöberg e Caron E. Gentry notam: as mulheres foram introduzidas em um ambiente masculino, em que filmes pornográficos eram exibidos antes das missões. Segundo Karpinski, as soldados do sexo feminino eram muitas vezes “dessexualizadas” e masculinizadas pelos companheiros.
Após as violações de direitos humanos no centro de detenção de Abu Ghraib, Karpinski acusou comandantes homens que “não queriam que ela fosse bem sucedida” de esconderem dela a real situação. As acusações podem ser questionáveis, mas mostram uma intensa luta de gênero dentro do exército norte-americano.
Barreiras para a promoção
As mulheres superaram uma série de desafios para alcançar posições de destaque dentro da estrutura das forças armadas. Oficiais do sexo feminino parecem ter aumentado em número, contribuindo para uma maior participação em operações militares. Por outro lado, elas continuam excluídas de algumas posições, como as unidades de combate. Além disso, enfrentam dificuldades para atingir postos na alta hierarquia das forças armadas, incluindo no campo de batalha.
No exército dos EUA, por exemplo, havia apenas 14,2% oficiais do sexo feminino com patentes de distinção ou acima em 2012. Apenas 10,9% das mulheres eram sargento de primeira classe e primeiro sargento. Em Israel, o cenário é ainda pior: apenas 4% delas são classificados como coronel e 12,5% como o tenente-coronel. Se as mulheres não forem representadas mais igualmente nos postos proeminentes do exército, é menos provável que ocuparão posições de liderança em operações de guerra.
No Iraque, a general Karpinski era a única mulher em um posto de comando no exército dos EUA. Neste sentido, pode-se facilmente argumentar que a cultura militar tendenciosa de gênero impede as mulheres de serem promovidas a cargos de alta patente no setor, já que podem parecer não qualificadas devido à falta de experiência.
As mulheres são proibidas de se candidatar a unidades de combate em muitos países, mas tem havido algumas melhorias nas últimas décadas. Em 1976, apenas 30% de todas as funções militares eram abertas para as mulheres nos EUA. Na década de 1990, elas podiam servir em funções de combate de elite como pilotos de caça e oficiais da Marinha, entre outras áreas. Em 2016, quase não haverá barreiras para as mulheres. Atualmente, cerca de uma dúzia de países, incluindo o Canadá, Bélgica, Holanda e Dinamarca, permitem agentes do sexo feminino em cargos oficiais de combate.
Essa vasta gama de postos abertos às mulheres não pode, porém, ser considerada o caminho para a igualdade de gênero nas forças armadas. Ainda há muitas barreiras. Para se tornar um soldado, por exemplo, uma pessoa tem que atender a padrões físicos que podem não ser igualmente justos para ambos os sexos, uma vez que o exército dos EUA ainda está realizando estudos sobre como integrar mulheres em funções de combate. De acordo com um coronel envolvido no processo, o objetivo “é desenvolver padrões físicos neutros e independentes de gênero para colocar o melhor soldado – seja mulher ou homem – no lugar certo”. A declaração indica que a seleção atual é injusta para as mulheres, que são geralmente mais baixas e têm 30% a mais de gordura em sua massa corporal do que os homens – o que as coloca em desvantagem física.
Apesar dos avanços recentes, o caminho para a igualdade de gênero no setor militar é muito mais complexo. Controlar o ambiente excessivamente masculinizado nas forças armadas e definir padrões justos de avaliação física para os cargos dentro da instituição podem contribuir para atrair mais mulheres para a carreira militar. No entanto, é fundamental começar a construir uma cultura militar livre de preconceitos em relação às mulheres, com abertura progressiva de postos antes vetados para oficiais do sexo feminino, sinalizando que gênero não é uma barreira para chegar aos níveis mais altos de hierarquia. Este, entretanto, é um grande desafio, já que trata-se de um cenário no qual homens sempre foram os únicos protagonistas.
Este artigo é o primeiro de uma série especial sobre questões de gênero na guerra. O próximo texto discutirá como os limites impostos à participação das mulheres no campo de batalha afetam suas carreiras.
Fonte: Carta Capital
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