domingo, 15 de março de 2015

O poder real dos Estados Unidos

Na história moderna nenhum país teve tanto poder militar mundial como os Estados Unidos e, no entanto, agora alguns analistas argumentam que esse país está seguindo os passos do Reino Unido, a última nação hegemônica no mundo a decair. Essa analogia histórica, embora seja cada vez mais popular, é enganosa.
A Grã-Bretanha nunca teve tanto domínio como os EUA na atualidade. Claro que manteve uma marinha cujo tamanho equivalia às duas frotas seguintes combinadas, e seu império, no qual o sol nunca se punha, governou uma quarta parte da humanidade, mas havia muitas diferenças entre os recursos relativos de poder da Grã-Bretanha imperial e os dos Estados Unidos contemporâneos. Quando a Primeira Guerra Mundial estourou, a Grã-Bretanha ocupava apenas o quarto lugar entre as grandes potências quanto a pessoal militar, o quarto em PIB e o terceiro em gasto militar.
O Governo do império britânico dependia em grande parte de tropas locais. Dos 8,6 milhões de soldados britânicos na Primeira Guerra Mundial, quase uma terça parte procedia do império de ultramar, por isso, quando começaram a intensificar-se os sentimentos nacionalistas, foi cada vez mais difícil para o Governo de Londres declarar a guerra em nome de um império.
Quando teve início a Segunda Guerra Mundial, a proteção do império mostrou ser mais um peso do que um ativo. O fato de que o Reino Unido estivesse situado tão perto de potências como Alemanha e Rússia tornou a situação ainda mais desafiadora.
Apesar do muito que se fala — e com pouco rigor — de um “império americano”, a realidade é que os Estados Unidos não possuem colônias que precisem administrar e, portanto, dispõem de uma maior liberdade de manobra do que o Reino Unido de então, e como estão rodeados por dois oceanos e não têm vizinhos ameaçadores, é muito mais fácil se protegerem.
Isso tem relação com outro problema na analogia com um país hegemônico mundial: a confusão sobre o que de fato significa o termo “hegemonia”. Alguns observadores equiparam esse conceito com o do imperialismo, mas os EUA são uma prova clara de que um país hegemônico não precisa necessariamente ter um império propriamente dito. Outros definem a hegemonia como a capacidade de estabelecer normas do sistema internacional, mas ainda assim não fica claro quanta influência nesse processo o país hegemônico deve exercer em relação a outras potências.
Outros ainda consideram que “hegemonia” é sinônimo de controle do maior número de recursos de poder, mas, conforme essa definição, não se poderia considerar hegemônica a Grã-Bretanha do século XIX, pois no ápice de seu poder em 1870 o país ocupava o terceiro posto por PIB (atrás dos Estados Unidos e Rússia) e terceiro em gasto militar (atrás da Rússia e França), apesar de seu domínio naval.
Do mesmo modo, quem fala da hegemonia americana a partir de 1945 não leva em conta que a União Soviética teve um poder militar equiparável ao dos EUA durante mais de quatro decênios. Embora os EUA tivessem um poder econômico desproporcional, sua margem de manobra política e militar estava limitada pelo poder soviético.
Alguns analistas qualificam o período posterior a 1945 como uma ordem hierárquica liderada pelos Estados Unidos com características liberais, na qual os EUA proviam bens públicos dentro de um sistema pouco rígido de normas e instituições multilaterais que deixava voz e voto a outros Estados mais fracos. Eles observam que para muitos países pode ser racional preservar o marco institucional, mesmo que os recursos de poder dos Estados Unidos decaiam. Nesse sentido, a ordem internacional encabeçada pelos Estados Unidos poderia sobreviver à primazia americana em matéria de recursos de poder, apesar de muitos outros argumentarem que o surgimento de novas potências prenuncia o fim de tal ordem.
Mas, no que se refere à era de uma suposta hegemonia dos EUA, sempre houve muita ficção mesclada com a realidade. Mais do que uma ordem mundial, era um grupo de países com uma mentalidade semelhante, a maioria deles situado no continente americano e na Europa Ocidental, que abrangia menos da metade do mundo, e seus efeitos para com os que não eram membros dele –incluídas potências importantes como China, Índia, Indonésia e o bloco soviético – nem sempre foram benignos. Em vista disso, seria mais preciso definir a posição dos Estados Unidos no mundo como de “semi-hegemonia”.
Naturalmente, os EUA mantiveram sem dúvida o domínio econômico a partir de 1945: com a devastação da Segunda Guerra Mundial em muitos países, os EUA produziam a metade do PIB mundial. Essa situação durou até 1970, quando sua participação no PIB mundial caiu até o nível anterior à guerra, ou seja, a quarta parte, mas, do ponto de vista político ou militar, o mundo era bipolar, pois o poder da União Soviética era equiparável ao dos Estados Unidos. De fato, durante esse período houve ocasiões nas quais os EUA não puderam defender seus interesses: a União Soviética conseguiu armas nucleares, os comunistas conquistaram o poder na China, Cuba e na metade do Vietnã, a Guerra da Coreia acabou em ponto morto e as rebeliões na Hungria e Tchecoslováquia foram sufocadas.
Sobre esse pano de fundo, primazia parece ser uma descrição mais precisa da desproporcional (e mensurável) parcela correspondente ao país nas três categorias de fontes de poder: o militar, o econômico e o brando. Agora a questão é se a era da supremacia dos Estados Unidos se aproxima de seu fim.
Dada a imprevisibilidade da evolução dos acontecimentos mundiais, torna-se impossível, naturalmente, responder a essa questão de forma contundente. A ascensão de forças transnacionais e atores não estatais, sem falar de potências emergentes como a China, indica que no horizonte se alinham grandes mudanças, mas continua a haver razões para acreditar que, pelo menos na primeira metade deste século, os Estados Unidos conservarão sua primazia em matéria de recursos de poder e continuarão desempenhando um papel fundamental no equilíbrio mundial.
Em suma, embora a era da primazia dos EUA não tenha terminado, vai experimentar mudanças importantes. O que será preciso ver é se essas mudanças aumentarão a segurança e a prosperidade mundial, ou não.
Joseph S. Nye: Professor da Universidade Harvard, presidente do Conselho do Programa Mundial sobre o Futuro da Governança, do Foro Econômico Mundial, e autor de Is the American Century Over? (Acabou o Século Americano?).
Fonte: El País via Plano Brasil
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