A tenebrosa execução do piloto Muath al-Kasasbeh, queimado vivo pelo autodenominado Estado Islâmico (também conhecido como ISIS), mobilizou as autoridades da Jordânia. O rei Abdullah II encerrou mais cedo uma viagem pelos Estados Unidos para voltar ao país; as Forças Armadas prometeram vingança; e o governo antecipou a execução de condenados por terrorismo. A reação coordenada é uma tentativa de mostrar força, mas também de criar uma mobilização nacional e impedir protestos contra a monarquia por conta de uma guerra vista por muitos como ilegítima.
A captura de Al-Kasasbeh, realizada em 24 de dezembro, provocou comoção na Jordânia. Um vídeo divulgado pelo ISIS mostrou o piloto atordoado, arrastado por homens do Estado Islâmico após seu caça F-16 cair nas margens do Rio Eufrates, nas proximidades de Raqqa, cidade síria elevada a “capital” da facção jihadista. A queda do avião reativou o debate sobre a participação da Jordânia na coalizão anti-ISIS liderada pelos Estados Unidos e o país se uniu no clamor pela soltura do piloto. Ficou claro que a prioridade da opinião pública era trazer Al-Kasasbeh de volta. Safi, o pai do piloto, deixou a cidade de Karak para Amã, capital jordaniana, onde se encontrou com o rei. Centenas de pessoas prestaram solidariedade ao pai, e sua família foi obrigada a erguer uma enorme tenda para receber os que buscavam ampará-los.
Ciente da urgência da situação, o governo de Abdullah II abriu ao Estado Islâmico uma oportunidade que o grupo jamais tivera até agora, a de negociar uma troca de prisioneiros. A barganha envolveria o piloto, o jornalista japonês Kenji Goto (decapitado pelo ISIS) e ao menos seis condenados por terrorismo, entre eles Sajida al-Rishawi, mulher-bomba cujo colete falhou em um atentado realizado em 2005 em Amã, o maior da história da Jordânia.
A comoção pela captura de Al-Kasasbeh logo se transformou em indignação contra Abdullah II. Entre os críticos estavam opositores tradicionais do governo, como grupos salafistas, alguns bastante próximos ideologicamente do Estado Islâmico, e a Frente de Ação Islâmica (FAI). Braço político da Irmandade Muçulmana tolerado pelo governo, a FAI reafirmou sua rejeição à participação da Jordânia na coalizão, salientando que o preço a ser pago era “o sangue dos filhos da nação”.
Bem mais preocupante para o governo de Abdullah II foram os protestos realizados por líderes tribais e por familiares do piloto. Houve manifestações de centenas de integrantes de tribos em frente ao escritório do primeiro-ministro e também no palácio real, onde o rei foi chamado de covarde e comprado pelos EUA, atos que, em condições normais, gerariam prisões em massa. O pai do piloto afirmou que aquela "não era nossa guerra" e que os responsáveis por mandar seu filho para a front deveriam trazê-lo de volta. O governo optou por contemporizar, pois boa parte da legitimidade da monarquia jordaniana vem da lealdade das tribos, em especial as baseadas no sul do país. Ao longo do tempo, como forma de recompensar e garantir essa fidelidade, muitos integrantes das tribos passaram a ser absorvidos pelas forças de segurança e pelas Forças Armadas da Jordânia, caso do piloto, membro do clã Kasasbeh, parte da tribo Bararsheh.
Em pouco tempo, os protestos se tornaram, também, um canal para dar vazão às queixas contra o governo. No sul do país, onde estão as mais importantes tribos, ficou clara a insatisfação com as condições econômicas da região, a mais pobre da Jordânia. "Não é dever da Jordânia lutar contra o Estado Islâmico na Síria e no Iraque", afirmou ao Wall Street Journal Oudeh al-Hamaydeh, oficial aposentado da Inteligência jordaniana. "O governo não conseguiu resolver as causas profundas que incentivam jordanianos a se tornarem extremistas, como a pobreza, a corrupção e a falta de oportunidades. Por que devemos lutar contra o terrorismo no exterior, enquanto nós não lidamos com as causas em casa?", disse.
Em meio às reclamações, surgiram também críticas à aliança da monarquia local com os Estados Unidos. A Jordânia é um dos principais parceiros da Casa Branca no Oriente Médio, tendo servido como base para a invasão do Iraque em 2003, para o treinamento de rebeldes sírios e, agora, integrando a coalizão contra o ISIS. Ao mesmo tempo que o governo é um firme aliado dos EUA, a população tem aversão às políticas americanas na região – ao lado do Egito, a Jordânia é o país mais antiamericano do Oriente Médio, com 85% de pessoas com impressões negativas a respeito de Washington.
Temendo a instabilidade interna que poderia ser gerada pela repercussão negativa da aliança com os EUA, pela perda de apoio das tribos e pela aliança de algumas delas com o Estado Islâmico, o que já ocorreu na região de Maan, as autoridades jordanianas realizam a atual ofensiva retórica em nome da união nacional. A estratégia não é garantia de sucesso para conter a insatisfação. O pai do piloto pediu "vingança" contra a "organização criminosa" que matou seu filho, e de fato há um clima de indignação contra o ISIS, como mostram inúmeras reportagens. Ainda assim, mesmo na reunião realizada na residência da tribo Bararsheh houve demonstrações de rancor contra os Estados Unidos. À agência Reuters, um diplomata ocidental alertou que, com o passar do tempo, a tática do governo da Jordânia pode naufragar. "O horror do assassinato, o método do assassinato, provavelmente vai gerar mais apoio em curto prazo. Porém, uma vez que o horror deixar de existir, inevitavelmente algumas questões se voltam para o papel da Jordânia na coalizão."
O impasse da Jordânia é exemplo da crise mais fundamental do Oriente Médio. O governo ditatorial, que cria ou não lida com os problemas que fomentam o extremismo, é um firme aliado dos Estados Unidos. A população hostiliza de forma visceral o governo americano, visto como responsável maior pelos problemas da região, justamente pelas infindáveis intervenções militares e pelo apoio às ditaduras. Nem sempre é simples para o cidadão comum saltar da crítica aos EUA para a crítica ao próprio governo, mas a associação fica clara em um momento no qual os dois governos estão aliados em uma campanha militar. Por enquanto, o apelo à união nacional vai ser útil ao governo jordaniano, mas à medida que ficar clara a ineficácia das bombas para acabar com o Estado Islâmico, a população poderá se voltar contra o próprio governo. Neste momento, restarão à Jordânia duas possibilidades: aumentar a repressão interna e reafirmar a aliança militar com os Estados Unidos ou abandonar a coalizão, afetando a imagem de baluarte da segurança regional que o país desenvolveu nas últimas duas décadas.
Nenhuma das duas opções resolve o problema maior da Jordânia: as diferenças entre a sociedade e o governo, que ameaçam a legitimidade da monarquia. Esse hiato só pode ser reduzido com ações efetivas para lidar com a raiz do problema, como democratizar a política, reduzir a pobreza e as desigualdades e fortalecer a precária economia. Isso, no entanto, o governo não parece disposto a fazer, o que indica um futuro de mais instabilidade para a Jordânia.
Fonte: Carta Capital
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