"Nós sempre pensamos que a guerra está distante. Ainda assim, a poucas horas de voo, no leste da Europa, há homens e mulheres ─ civis ─ que estão morrendo todos os dias."
A declaração sombria do presidente francês, François Hollande, foi ouvida quando ele e a chanceler alemã, Angela Merkel, se preparavam para uma reunião com Vladimir Putin em Moscou na sexta-feira. Na pauta, o que o próprio Hollande definiu como possibilidade de uma "guerra total".
Há quase um ano, a fuga do presidente ucraniano Viktor Yanukovich para a Rússia marcava a vitória do movimento pró-União Europeia na Ucrânia e, consequentemente, uma derrota da Rússia, cuja influência política, histórica, étnica e linguística na Ucrânia foram ignoradas em prol de um sonho ─ o de uma Ucrânia integrada aos seus vizinhos do oeste.
Mas o que se seguiu foi uma sinistra escalada militar sem precedentes na Europa desde o final da Guerra Fria, envolvendo duas visões irreconciliáveis do mundo pós-União Soviética, alimentada pelos fantasmas nacionalistas ucranianos e russos e pela incapacidade da diplomacia europeia e americana.
Com os rebeldes pró-Rússia mostrando vigor assustador, tendo conquistado cerca de 500 quilômetros quadrados de território em quatro meses, europeus e EUA agora voltam a se mexer e cogitam soluções radicalmente diferentes para paralisar o conflito, depois do fracasso imediato das sanções econômicas impostas a Moscou.
Resta saber se essas soluções serão eficientes ou se o mais provável é a "guerra total" ─ com envolvimento direto de outros países, escalada através de outras fronteiras e muito mais sangue.
- 5.358 mortos e 12.235 feridos no leste da Ucrânia
- O saldo de mortos inclui os 298 passageiros do voo MH17 abatido no dia 17 de julho
- 224 civis mortos em um período de três semanas até 1º de fevereiro
- 5,2 milhões de pessoas moram em áreas de conflito
- 921.640 pessoas desabrigadas ou desalojadas internamente, incluindo 136.216 crianças
- 600 mil pessoas fugiram para países vizinhos, dos quais mais de 400 mil deixaram o país rumo à Rússia
Richard Sakwa é considerado uma das maiores autoridades acadêmicas do mundo em política russa e pós-soviética, tendo escrito dezenas de ensaios e livros sobre a lógica por trás do "inimigo" do Ocidente no Kremlin.
Em seu livro recém-lançado na Grã-Bretanha, Frontline Ukraine - Crisis in the Borderlands ("Frente de Batalha Ucrânia ─ Crise na Fronteira", em tradução livre), Sakwa resume as duas principais causas do conflito que hoje vemos ─ a incapacidade do Ocidente de criar uma nova ordem geopolítica inclusiva para a Federação Russa no pós-Guerra Fria e a divisão política ucraniana.
A primeira causa é associada ao fato de o Ocidente nunca ter sido capaz de superar as instituições "vitoriosas" da Guerra Fria, criando um ambiente inclusivo para Moscou. Pelo contrário, a Otan avançou para o leste, para perto da fronteira russa, no que Moscou sempre considerou uma ameaça a seu espaço de influência e existência.
Se concordarmos com Sakwa, qualquer solução para o atual conflito precisa contemplar as duas questões. E são tremendas questões, sem nenhuma solução fácil. A primeira envolve uma mudança radical de paradigmas em vigor desde 1991. A segunda, mudanças políticas profundas na Ucrânia que surgiu dos mortos na Praça Maidan, em Kiev, em 2013.A segunda causa tem íntima ligação com a formação da Ucrânia como nação ─ leste e sul russófonos, com forte influência do poderoso vizinho e favorável a um país multilinguístico, neutro, com boas relações com Moscou; oeste querendo ser "europeu", com uma distinta identidade ucraniana, deixando para trás a "ocupação" russa - a região do oeste onde fica a cidade de Lviv só passou a ser soviética durante a 2ª Guerra Mundial.
Do ponto de vista do Ocidente, o que vem acontecendo desde o ano passado é uma tentativa de um líder inescrupuloso, Vladimir Putin, de restaurar a glória da velha União Soviética. De se impor à força, sem diálogo, retomando práticas que todos esperavam que tivessem ficado no passado da Europa - a anexação da Crimeia, por exemplo.
Para Putin, porém, o Ocidente quer se impor com sua visão de mundo, suas instituições, suas regras, e não deu a Moscou a real chance de participar, de forma conjunta, da construção dessa nova ordem. No pós-Guerra Fria, criou-se o que Sakwa chama de "Paz Fria" ─ com Moscou e o Ocidente mantendo uma lógica de competição sem, entretanto, reconhecer que ela existisse.
Evidentemente, a Europa e os Estados Unidos esperavam que, sob o peso das sanções econômicas do último ano, Putin perdesse apoio político internamente na Rússia. Não foi isso que aconteceu, pelo contrário ─ pesquisas mostram que o apoio a suas políticas continua alto e o ambiente doméstico russo é de crescente antagonismo com o Ocidente.
Assim, a primeira solução que vem sendo cogitada no momento, a americana, é a que tem mais potencial para gerar uma "guerra total". Os Estados Unidos cogitam destinar armamento defensivo ao exército ucraniano contra os rebeldes pró-Rússia.
Ao fazer isso, os EUA estarão jogando gasolina na fogueira anti-Ocidental de Putin. Se antes ele só podia sugerir que o Ocidente estava alimentando o conflito para impor sua vontade, nesse caso, ele terá um argumento palpável para, sim, enviar tropas abertamente a Lugansk e Donetsk.
A ideia americana foi criticada abertamente por Merkel. Ela disse que não poderia imaginar "qualquer situação em que, se o Exército ucraniano receber um melhor equipamento, o presidente Putin fique tão impressionado que venha a pensar que vai perder militarmente".
Mas as declarações do governo americano dão a entender que essa saída está sendo considerada seriamente. Uma linguagem estranhamente evocativa da Guerra Fria vem sendo usada pelo vice-presidente, Joe Biden, da mesma forma que vem sendo usada por Putin.
"Vezes demais o presidente Putin prometeu paz e entregou tanques, soldados e armas", disse no sábado Biden, que preferiu, no dia anterior, ficar em Bruxelas em vez de se juntar a Merkel e Hollande na viagem a Moscou.
"Então, vamos continuar apoiando a segurança da Ucrânia, não para incentivar a guerra, mas para permitir que a Ucrânia se defenda.
A segunda solução, um novo plano de paz europeu, foi o tema de conversas telefônicas entre Merkel, Hollande, Putin e o líder ucraniano Petro Poroshenko neste domingo, e voltará a ser discutida por eles, desta vez face a face, na quarta-feira, em Minsk.
Os detalhes do plano não foram revelados. Sabe-se que a base da proposta não é muito diferente da do acordo fracassado de Minsk, de setembro passado. Inclui a criação de uma zona desmilitarizada perto da linha de batalha e comprometimento de cessar-fogo dos dois lados.
O que não se fala é integrar a Rússia num processo real de diálogo político interno na Ucrânia, nem um compromisso europeu com a criação de novas instituições que levem em conta a visão russa de um mundo multipolar. Putin já mostrou inclusive sinais de desconforto e disse que a reunião de quarta só ocorrerá "se, até então, nós conseguirmos concordar em vários temas".
A simples ideia de a solução americana estar sendo aventada, além da existência e ampliação das sanções, alimenta ainda mais a desconfiança dos russos, que só tendem a ficar cada vez mais inflexíveis, obstinados frente às imensas dificuldades, como em tantos momentos em sua história.
Ao contrário do que muitos pensam, a Rússia se beneficiaria muito mais de uma Ucrânia que mantenha sua união nacional.
Em um artigo publicado no jornal Moscow Times, Josh Cohen, ex-funcionário do Departamento de Estado dos EUA, enumera alguns motivos ─ entre eles, o problema do custo de reconstrução do leste ucraniano, que poderia ser dividido com o Ocidente.
Putin defende a federalização ucraniana, com Donetsk e Lugansk passando a ter poder de veto em qualquer aprofundamento das relações de Kiev com o Ocidente, mas na prática tendo imensa autonomia do governo central - podendo, inclusive, participar da União Euroasiática que a Rússia criou com ex-países soviéticos.
Mas a elite política que derrotou os russos em Kiev no ano passado está disposta a voltar atrás e dividir o poder?
Dadas as possíveis consequências de armar o exército ucraniano e os imensos problemas que Obama enfrenta na esfera internacional (o autodenominado 'Estado Islâmico', por exemplo), o mais provável é que, apesar da retórica, a ideia não se concretize.
A proposta europeia, com a continuidade das negociações diplomáticas, é a saída mais lógica, ainda que já venha sendo tentada desde o ano passado sem sucesso. Se a negociação continuar, a "guerra total" é evitada, mas o lento sangramento da Ucrânia prossegue até não se sabe quando.
O fator crucial, no final das contas, será o efeito cumulativo das sanções. Neste mês, o Ocidente pode banir a Federação Russa do Swift, o sistema que integra os bancos globalmente. Isso seria um imenso baque para os bancos do país.
O cálculo é que, em dado momento, o preço pago por Putin para manter seu envolvimento na Ucrânia seja tão alto que crie rachaduras na elite que o sustenta, potencialmente afastando─o.
Quando isso acontecerá? Primeiro, não se sabe nem se acontecerá. E, se acontecer, não se sabe quem o irá suceder. Nada impede que seja mais do mesmo.
Fonte: BBC Brasil
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