Alguns observadores consideram a atual conflagração no Iraque
como a pior crise que já atingiu o país desde sua consolidação como Estado em
1921.
Outros consideram o atual momento como o mais crítico desde a queda de Saddam
Hussein em 2003 ou desde a retirada das tropas americanas em 2011.
Muitos estão convencidos de que o Iraque está à beira de uma guerra civil
sectária que pode desintegrá-lo. Nesse contexto, um acordo de divisão seria a
opção menos pior.
O Iraque encontra-se atado a tensões regionais agudas, com seus distintos
componentes puxados em direções diferentes pelas mesmas forças envolvidas no
conflito da vizinha Síria – que causa impacto direto em Bagdá.
De qualquer ângulo, a situação é ruim.
Mas isso não significa necessariamente que as previsões mais terríveis estão
fadadas a se tornar realidade.
O país tem mostrado uma notável capacidade de tropeçar de crise em crise sem
atingir uma solução estável nem se desintegrar de vez.
Mas um cenário de "pior das hipóteses" é agora visível e plausível.
Ele seria o da divisão do país por correntes étnicas, segundo as maiores
comunidades: uma maioria xiita (60%), sunitas e curdos.
Sinais de alerta
Os sinais de alerta já estão presentes. Um deles é o número crescente de
mortes provocadas pelos últimos episódios de violência que ocorreram em diversas
partes do país.
A maioria das estimativas concordam que o último mês de abril foi o mais
sangrento desde 2008. A ONU diz que mais de 700 pessoas foram assassinadas em
ataques a bomba e outros tipos de violência. Entre as vítimas estão 430
civis.
Grande parte dos episódios de violência ocorreu no final do mês, após um
incidente na cidade de Hawija, na província de Kirkuk, em 23 de abril. Na
ocasião, forças de segurança leais ao premiê xiita Nouri Maliki mataram um
grande número de manifestantes sunitas.
Esses assassinatos desencadearam mais distúrbios e incidentes, especialmente
em áreas sunitas que começaram a viver alguma agitação contra o governo de
Maliki, desde dezembro do ano passado.
Dinamitadores insurgentes, supostamente ligados à rede al-Qaeda e seu "Estado
Islâmico no Iraque", também intensificaram seus atentados contra centros de
grande concentração de população xiita.
Mas essas ações não surgiram do nada. Elas fazem parte de uma progressão
iniciada com a formação do atual governo, um processo que levou meses, de março
de 2010, mês da eleição, a dezembro do mesmo ano.
O governo liderado por Maliki deveria ser fruto de uma parceria nacional.
Iyyad Allawi, um xiita de perfil secular que atraía muitos votos sunitas, e
sua coalizão Iraqiyya despontaram à frente de Maliki nas pesquisas. Mas sob um
acordo de divisão de poderes intermediado pelo líder curdo Masoud Barzani, ele
deveria liderar o Conselho Superior de Estratégia Nacional, com poderes
consideráveis.
Nada disso aconteceu. Ao invés de ser visto como um aliado, Maliki têm
recebido cada vez mais críticas por usar seus poderes de forma autocrática,
controlando todo o aparato de segurança e o Ministério do Interior.
A participação sunita tem sido cada vez mais marginalizada. Maliki não tem se
ocupado de demandas e queixas sunitas relacionadas à libertação de prisioneiros,
a leis antiterroristas e à criação de empregos.
Como pano de fundo, as atividades sunitas extremistas nunca foram
completamente debeladas.
No ano seguinte à formação do governo de Maliki, a violência se manteve no
mesmo patamar registrado em 2010. Porém, ela se agravou em 2012 e parece ter
ressurgido com grande força atualmente – fomentada em grande parte pela
insatisfação dos sunitas.
Se o premiê continuar em rota de colisão com os sunitas, há um elevado risco
de que vertentes tribais, religiosas e políticas da etnia se reúnam em
províncias tradicionalmente sunitas – como al-Ambar e Nineveh – para iniciar uma
revolta organizada contra o governo xiita.
Retirada curda
Em março, os curdos – que têm suas próprias diferenças com Maliki – retiraram
seus ministros e parlamentares de Bagdá. Suas forças militares também expandiram
seu controle pela área em disputa de Kirkuk, onde há produção de petróleo. As
ações ocorreram logo após o episódio de Hawija.
Por tudo isso, não é difícil imaginar o Iraque se dividindo em uma guerra
sectária entre xiitas e sunitas, enquanto os curdos seguem um caminho
independente no norte.
Ignorando a dinâmica interna do país e seu próprio papel no problema, Maliki
alertou que a "luta sectária" está voltando ao Iraque, a partir da Síria.
"Há um vento por trás disso, e dinheiro e planos", disse, aparentemente se
referindo ao apoio sunita regional para insurgentes e dissidentes.
Certamente houve interação desde o início entre áreas sunitas no oeste
iraquiano e a revolta com bases sunitas além da fronteira síria – dando de forma
não surpreendente características tribais e familiares ao conflito, que envolve
também militante sunitas da Al-Qaeda.
Enquanto os iraquianos sunitas dão apoio aos rebeldes sírios, o governo de
Maliki, possivelmente influenciado pelo Irã, dá suporte ao presidente Bashar
Assad, apesar de diferenças políticas anteriores.
Então, para o Iraque, o resultado do conflito na Síria será muito importante.
Se o regime alauíta cair, desintegrando o país ou abrindo caminho para um
governo sunita, será mais difícil manter os iraquianos sunitas na órbita do
governo central.
Se sunitas do Iraque e da Síria se juntarem, os xiitas iraquianos deverão se
voltar ainda mais para seus aliados no Irã.
Mas, dentro do contexto iraquiano, se Maliki demonstrar que o episódio de
Hawija foi uma aberração e fizer concessões para aplacar os sunitas, poderá
retomar a situação – até porque os sunitas enfrentam grandes dificuldades de
união.
Influência iraniana
O futuro do Iraque também dependerá dos desejos do Irã, devido à sua
inquestionável influência sobre grupos políticos xiitas – e em menor escala
sobre os curdos.
O pensamento de Teerã está dominado pela necessidade de salvar seus aliados
estratégicos em Damasco.
É difícil de se imaginar como esse objetivo poderia ser atingido com a
fragmentação e o caos no Iraque. Teerã se envolveu na divisão do poder no Iraque
em 2010 e não há nenhuma razão em particular para se supor que o país estaria
agora interessado na desestabilização e desintegração iraquiana.
Apesar de haver elementos separatistas em praticamente todas as comunidades
do Iraque, em termos gerais uma divisão do país não seria do interesse de
ninguém.
Os curdos no norte estão experimentando o melhor de dois mundos: têm um grau
de liberdade apenas alguns degraus abaixo da independência e gozam de uma parte
significativa das verbas do orçamento federal, de uma boa fatia de poder e de um
papel vital de intermediação em Bagdá.
Enquanto a independência permanece sendo seu maior sonho, os curdos sabem que
não têm saída para o mar e são dependentes dos vizinhos – Iraque, Irã, Síria e
Turquia –, cujo apoio é necessário para atingir tal objetivo. Por enquanto,
resolver seus assuntos dentro da federação iraquiana é a melhor opção.
Essa pode ser uma das razões que explicam os resultados iniciais positivos
obtidos em uma reunião entre Maliki e os curdos, na semana passada. Ela pode ser
a tábua de salvação do premiê, uma vez que provocou o retorno dos ministros e
políticos curdos a Bagdá.
Os xiitas "seriam os maiores perdedores com uma separação do país – e o que
eles ganhariam com uma aliança com o Irã?" - disse um observador veterano no
Iraque.
"O mesmo vale para os sunitas, muitos não gostariam de uma divisão do Iraque
– eles querem dominar o país inteiro, como fizeram por séculos".
Tudo isso não é para dizer que os cenários catastróficos podem não
acontecer.
Mas ainda há fatores poderosos mantendo o Iraque unido.
Pelo menos por enquanto, os iraquianos ainda estão falando sobre uma luta
feroz nas urnas, nas eleições gerais do ano que vem, e não em sacos de areia e
trincheiras.
Fonte: BBC Brasil
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