A Argentina continua a não se mostrar conformada com o desfecho da tentativa de tomada de posse das ilhas Falkland [1] por invasão em 1982, que culminou com a rendição do seu contingente perante a força-tarefa enviada por Londres para repor a administração da coroa britânica. Buenos Aires considera que a questão da soberania das ilhas é um assunto em aberto que é preciso trazer periodicamente à atenção internacional.
O último pretexto foi a decisão do Governo britânico de enviar um destroyer (HMS Dauntless) para a área, o que a Presidente da Argentina, Maria Cristina Kirchner, considerou como pondo um risco de segurança internacional. A chegada do príncipe Henry para uma comissão de seis semanas como piloto de um helicóptero de busca e salvamento originou idênticos comentários do MNE argentino.
É natural que perante a proximidade do trigésimo aniversário da invasão, no próximo dia 2 de abril, a Argentina traga o assunto para a agenda da ONU. Por essa mesma razão também é que o Governo britânico não quer deixar qualquer dúvida que não se encontra disponível para discutir a soberania desse território. Daí o envio do navio de guerra. Se idêntica clareza de propósito tivesse sido assegurada em 1982, talvez o conflito não tivesse ocorrido. Este acabou por se desencadear, na análise de James Cable, precisamente por falta de sinais claros do lado de Londres de que qualquer solução imposta militarmente pela Argentina resultaria em confronto com as Forças Armadas britânicas. É uma lição a ter presente.
De facto, na altura, Londres tinha reduzido a presença militar nas ilhas a um contingente de fuzileiros meramente simbólico e um navio de patrulha sem valor combatente (HMS Endurance); tinha entrado em conversações diplomáticas com o governo argentino sobre a situação das ilhas, que dois meses antes da invasão ainda estavam em curso; e, finalmente, tinha decidido retirar de serviço, para venda, os seus dois porta-helicópteros, unidades que seriam essenciais para retomar a soberania das ilhas, caso a perdesse.
Este conjunto de medidas levou o Presidente argentino a concluir que poderia criar com relativa facilidade um “facto consumado”, a que o Governo britânico não reagiria em termos militares, por falta de motivações estratégicas (não estando em causa um interesse vital) e por insuficiência de recursos para intervir a tão grande distância (8000 milhas, 13000 quilómetros). Muito pressionado por uma grave crise interna, o então Presidente da Junta Militar que governava a Argentina, o general Gualtieri, viu uma possibilidade de satisfazer a antiga aspiração nacional de soberania das ilhas e dessa forma inverter a situação interna.
Gualtieri quis sobretudo aproveitar a oportunidade para criar um acontecimento a que as circunstâncias pareciam facilitar um desfecho favorável para a Argentina, não obstante a relação de forças militares não pender para o seu lado, nem ter as suas Forças Armadas seriamente treinadas para a ação empreendida. A Força Aérea argentina não tinha qualquer preparação operacional para operar em ambiente marítimo; não incluía aviões de patrulhamento marítimo nem de reconhecimento e apenas dois aviões de reabastecimento em voo, insuficientes para dar à aviação de ataque autonomia de permanência na área. Parte importante das forças terrestres tinha sido recrutada apressadamente e, regra geral, encontrava-se mal preparada.
Perante a convicção de que não haveria reação do Reino Unido, estas limitações não tiveram a atenção que deveriam ter tido. Mas Gualtieri, afinal, enganou-se redondamente ao subavaliar a firmeza do governo britânico, então chefiado pela Senhora Tachter. A reação de Londres, malgrado as dificuldades do empreendimento para repor a situação, não se fez esperar com a mobilização de todos os meios militares e civis para retomar a soberania sobre as ilhas.
Três dias depois da invasão, os primeiros navios da força naval então constituída, incluindo os dois porta-aviões (HMS Hermes e HMS Invencible) largavam de Portsmouth a caminho do Atlântico Sul. Onze dias depois, a 16 de abril, chegavam à Ilha de Ascensão para preparar a segunda etapa da viagem e concluir os preparativos para a intervenção, que se iniciou no dia 2 de maio. Quando, a 14 de junho, o comandante das forças argentinas, Alfredo Ortiz, perante a vitória clara das forças britânicas, assinou a rendição a bordo do HMS Plymouth, o “preço” pago pelas duas partes incluía: 904 mortos (649 argentinos e 255 ingleses), 1800 feridos, 57 aviões argentinos abatidos e quatro navios de guerra britânicos afundados [2].
Para o Brasil que tentou manter uma posição de “neutralidade não equidistante”, sobretudo para evitar um desfecho que impusesse sacrifícios excessivos à Argentina, este desfecho, na opinião de Hélio Jaguaribe,[3] permitiu tirar duas lições importantes que, julgo eu, ajudam a explicar a sua atual postura internacional.
A primeira, ao deixar a descoberto a quase impotência militar a que o País tinha chegado por falta de meios modernos de defesa e excessiva ocupação das Forças Armadas em funções policiais contra insurreição, em prejuízo da preparação para as missões essencialmente combatentes. Tratava-se de uma situação resultante da decisão de confiar nos EUA as responsabilidades pela segurança externa, situação que Brasília tenta alterar. A segunda, ao revelar a debilidade das organizações internacionais então existentes na América do Sul, nomeadamente o Tratado Interamericano de Assistência Recíproca de 1947, que embora incluindo disposições expressas à segurança dos estados membros foi então ignorado. Esta situação teve alguma evolução positiva, embora não substancial.
Há uma outra lição importante a retirar e que não é específica do Atlântico Sul. É a que se refere, conforme já fiz notar acima, à negligência do Reino Unido em não tomar todas as medidas necessárias para deixar claro que nunca se conformaria com a qualquer tentativa argentina de alterar pela força o estatuto das ilhas, criando um “facto consumado”. Quem cometeu uma agressão foi, de facto, a Argentina mas ao Reino Unido cabia a responsabilidade de fazer mais para a desencorajar; falhou ao não fazer.
A eventual repetição do conflito não é uma hipótese que de momento se imagine mas, enquanto a disputa se mantiver, essa possibilidade continua em aberto e, de certo modo agravada, pela descoberta de jazidas de petróleo nas águas do arquipélago, em especial na bacia norte, o que pode dar ao conflito a natureza de uma disputa pela posse de recursos vitais.
[1]Nas mesmas condições que as ilhas Falkland há mais 15 territórios em todo o mundo que as Nações Unidas colocam numa lista de “non-self-governing territories”. Do total de 16, 10, incluindo Gibraltar, estão sob a administração do Reino Unido. Os restantes seis estão sob administração americana (três), espanhola, francesa e da Nova Zelândia.
[2] As Forças Armadas argentinas, em particular a Força Aérea, ainda não se recompuseram do desaire sofrido e não é provável que nos tempos mais próximos consigam empreender um programa de rearmamento que altere substancialmente a situação.
[3] Académico brasileiro que leccionou nas universidades de Harvard, Stanford e no MIT.
Fonte: Jornal Defesa e Relações Internacionais
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