Os manifestantes que deram origem ao que se chama hoje a Primavera Árabe nunca tiveram em vista qualquer objetivo relacionado com a Agenda de Paz para o Médio Oriente; trataram-se apenas de movimentos sociais de descontentamento interno contra as ditaduras que governavam os países em causa. No entanto, inevitavelmente, haverá interações entre os dois processos. Interessaria tentar verificar se poderão funcionar a favor da causa palestina de criação do seu próprio Estado.
Mahmoud Abbas, Presidente da Autoridade Palestina, chegou a dizer que o pedido apresentado ao Conselho de Segurança das Nações Unidas seria o começo da Primavera Palestina, mas, ao contrário do que seria de esperar, está longe de ser evidente que as situações que hoje se vivem nos Países árabes, principalmente Egito e Síria, e os respectivos impactos regionais possam ajudar a encontrar uma solução para o conflito Israel/Palestina. Aliás, tudo parece sugerir precisamente o contrário.
No Egito, que será sempre um ator importante no processo, para o Supremo Conselho das Forças Armadas o que quer que possa ameaçar o Tratado de Paz com Israel não será bem vindo. Se o pedido de reconhecimento de um Estado palestino tiver um desfecho que defraude ainda mais as poucas esperanças dos palestinos, então a frustração, provavelmente, vai provocar um regresso à instabilidade e agravamento do relacionamento entre israelenses e palestinos. Nessa situação, num País, cujo ambiente, claramente, não é pró-Israel, tornar-se-á muito difícil evitar tomar abertamente partido pela causa palestina. Já chega o risco de que a Irmandade Muçulmana venha a ganhar as eleições, o que a acontecer, muito provavelmente, deixará o Tratado de Paz “preso por um frágil fio”.
Para Israel, a Primavera Árabe, mal grado os seus louváveis propósitos de encaminhamento dos respectivos Países para a democracia, pode alterar significativamente a situação de segurança. É uma situação curiosa, porque, durante muito tempo, a insegurança foi atribuída precisamente ao fato de os regimes árabes não saberem viver em democracia.
Agora que entraram nesse percurso, Tel Aviv vem a descobrir que afinal a situação anterior era-lhe mais favorável. Ficou sem sequer um único país na região de que possa esperar algum apoio. Deixou de poder contar com o controle muito estreito que o Egito de Mubarack exercia sobre a Irmandade Muçulmana e com a ajuda dada à manutenção do bloqueio a Gaza no lado da fronteira egípcia. Viu a sua Embaixada no Cairo ser assaltada e saqueada e tem pendente um sério incidente fronteiriço que tirou a vida a seis soldados egípcios. Teve que evacuar a sua Embaixada na Jordânia.
Passou ainda a ter que conviver com uma mudança radical no relacionamento com Ancara, o primeiro país muçulmano a reconhecer o Estado de Israel, em 1949, e até há pouco um sólido aliado na região e parceiro de importantes negócios no setor de Defesa. Israel precisa da Turquia para evitar o isolamento regional em que caiu, mas as aspirações turcas de liderança do mundo muçulmano, processo em que Ancara procura progredir através de uma deterioração do relacionamento com Israel, estão a impedir esse desfecho.
Os pretextos remotos que a Turquia invoca são a situação desumana a que Israel tem obrigado os habitantes da Faixa de Gaza e a inviabilização prática das aspirações palestinas a um Estado independente; os pretextos próximos são os incidentes ocorridos no episódio da chamada “Flotilha da Paz” e mais recentemente com o início dos trabalhos de pesquisa de petróleo ao sul de Chipre, o que levou Ancara a anunciar o deslocamento de três navios de guerra para a área.
A Síria é obviamente outro problema potencialmente grave para Israel por duas razões principais: pelo risco de a instabilidade interna poder “transbordar” para os vizinhos e, dessa forma, afetar toda a região e pelo fato de se ter transformado num campo de luta de influências regionais entre o Irã e a Turquia, afetando diretamente Tel Aviv. Se o desfecho da crise levar ao crescimento da influência iraniana, então Israel, todo o Médio Oriente e o mundo em geral, enfrentarão uma preocupante ameaça à estabilidade que poderá ser necessário combater mais diretamente.
Este contexto geral tem vindo a fazer partilhar as atenções e iniciativas que anteriormente eram dedicadas à Agenda de Paz para o conflito Israel/Palestina com os outros potenciais conflitos que acabei de enumerar. Não obstante o fato de a iniciativa do Presidente Abbas ter trazido a causa palestina para o topo das agendas internacionais, pelo menos durante algum tempo, Israel está mais preocupado com a Síria, o Egito e as relações com a Turquia do que com a questão da Palestina. Israel não deixará de invocar, certamente, que a maior insegurança, em que se encontra presentemente, limita a margem de concessões que poderá fazer no âmbito da questão palestina, preocupação que ficou bem patente no recente discurso de Netanyahu nas Nações Unidas.
Esta situação não ajudará à resolução do conflito Árabe-Israelense. Pior ainda é o óbvio desinteresse que os EUA mostram hoje em contribuir para a procura de uma solução, não obstante as promessas do Presidente Obama, em Junho de 2009, (no famoso discurso do Cairo) de que apoiaria a criação de um Estado para os palestinos. Obama ainda tentou levar Netanyahu a parar a construção de colonatos, que considerou um projeto ilegítimo, mas não foi atendido. Também não conseguiu convencer o primeiro-ministro de Israel a apresentar alguma forma de “desculpas” à Turquia pela morte de nove cidadãos turcos participantes na Flotilha de Paz.
Para o Presidente pode não se ter tratado apenas de uma desistência por falta de capacidade em fazer progredir o processo. Foi também por interesse em afastar-se de uma questão quente que na campanha eleitoral para a reeleição não lhe trará qualquer dividendo, situação patente na perda de apoio da comunidade judia nos EUA (68% em Maio, 55% em Setembro). É um mau sinal que está a ser passado para o mundo; mostra que a potência hegemónica afinal tem uma muita limitada influência no Médio Oriente, quer entre os palestinos, quer entre os israelenses. Leva a concluir que os EUA podem estar deixando de ser o aliado útil, senão imprescindível, que foi no passado.
Que resta então? Apenas a possibilidade de Catherine Ashton assumir, em nome da União Europeia, mais uma tentativa de mediação, em que poucos, aliás, têm esperança. Entre outras razões porque já não falta muito tempo para Israel ter completado com sucesso e impunemente o processo de inviabilização de um novo Estado da Palestina, pondo o mundo perante um fato consumado, muito difícil de fazer retroceder.
Fonte: Jornal Defesa e Relações Internacionais
0 comentários:
Postar um comentário