O Conselho de Segurança da ONU precisa assumir a responsabilidade pela resolução do conflito entre Israel e Palestina porque o Quarteto formado por Estados Unidos, União Europeia, Rússia e o secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon, se mostrou "inoperante" em promover negociações, afirma o chanceler Antonio Patriota.
Em entrevista, o ministro das Relações Exteriores disse que o Brasil se absteve na última resolução sobre a Síria para evitar a "dinâmica de polarização" entre os membros permanentes do CS e manter um espaço de negociação. Também criticou os países que lideram a força de intervenção na Líbia por tomarem decisões que não lhe cabem, como o envio de armas aos rebeldes.
"Passaram a se reunir em várias capitais pelo mundo afora, na Europa ou no golfo Pérsico, deliberando sobre assuntos que são da competência estrita do Conselho de Segurança. Por exemplo, levantar ou não o embargo, armar ou não os rebeldes. Isso é um problema sistêmico, e apontá-lo não deve ser interpretado como simpatia pelos métodos de Mummar Gaddafi", afirmou.
Folha: Na votação do projeto de condenação da Síria no Conselho de Segurança, a África do Sul soltou uma nota dizendo que se absteve sobretudo porque os limites da resolução contra a Líbia tinham sido ultrapassados. Foi esse também o fundamento da posição brasileira?
Antonio Patriota: Nós estávamos trabalhando junto com Índia e África do Sul para promover uma dinâmica de consenso. Nossa preocupação tem sido evitar a polarização. Já quando foi aprovada a declaração presidencial sobre a Síria, em agosto, identificamos uma polarização grande no CS e sugerimos que, em vez de ficar no impasse, tentássemos a manifestação possível. Não era a ideal, mas conseguimos.
De lá para cá, de fato, houve desconforto significativo sobre a interpretação dada à resolução 1973 [que autorizou a intervenção para a proteção de civis na Líbia]. A África do Sul, que tinha votado a favor, passou a ser muito crítica. Isso teve algum impacto. Tentamos estimular a dinâmica da convergência para ver se conseguíamos adotar uma resolução que, sem sanções, representasse um passo além da declaração presidencial, porque continua havendo atos de violência na Síria, ações que nós condenamos.
No Conselho de Direitos Humanos da ONU nós votamos a favor de uma resolução condenatória, e a credibilidade do Brasil foi suficiente para que um brasileiro fosse indicado chefe da comissão de investigação, junto com um turco e um norte-americano. Estamos trabalhando ativamente com o governo sírio para que eles sejam recebidos, assim como trabalhamos ativamente também para que os jornalistas brasileiros obtivessem vistos para ir à Síria, e conseguimos. As matérias contribuíram para elucidar a opinião pública brasileira sobre a complexidade da questão.
No Conselho de Segurança, quando constatamos que havia uma dinâmica da polarização decidimos nos abster junto com os dois países com os quais temos nos coordenado, que são também democracias. Nós condenamos os abusos, a violência e a repressão contra manifestantes desarmados. Agora, buscamos soluções que levem a uma transição para melhores formas de governo, para a democracia, pela via da diplomacia, da negociação.
A coerção, o uso da força, deve ser sempre contemplada como último recurso, sobretudo para não piorar uma situação que já é potencialmente muito desestabilizadora. Há um risco grande na Síria de guerra civil, de descontrole. É uma das regiões mais explosivas do mundo. Você não pode receitar um remédio que piore a doença. A abstenção também preserva uma certa capacidade diplomática, até para negociar a ida à Síria da comissão de investigação do Conselho de Direitos Humanos. Você se distancia dessa polarização entre membros permanentes, que obedecem às vezes a outras lógicas.
No caso da Líbia, foi a primeira vez em que uma intervenção por alegadas razões humanitárias foi autorizada pelo Conselho de Segurança.
Os franceses consideram também que a Costa do Marfim também se enquadra nisso.
Mas esses casos podem ser considerados exceções, que tendem a não se repetir?
Não podemos esquecer que estamos funcionando sob a sombra do que aconteceu no Iraque. Houve uma intervenção de uma coalizão liderada pelos EUA, sem autorização do Conselho de Segurança, sob pretextos variados, primeiro era a existência de armas de destruição em massa, depois foi invocada a democracia etc. Isso gerou uma instabilidade enorme, milhões de refugiados, centenas de milhares de mortos civis.
É o que leva a presidenta Dilma a dizer na Assembleia Geral da ONU que a "responsabilidade de proteger" é um conceito que pode se justificar, mas não implica em automatismo do uso da força. Você pode exercer sua responsabilidade coletiva por ações humanitárias. No Sudão e em outros lugares existem exemplos de ações humanitárias no espírito da responsabilidade de proteger muito bem sucedidas, sem uma militarização do conceito.
Você não pode receitar um remédio que piore a doença ou faça surgir outros sintomas, contribuindo para um quadro de maior instabilidade. Isso é que é um pouco a responsabilidade 'ao' proteger mencionada pela presidenta.
Tem também um problema de prestação de contas. No caso da Líbia, passaram a se reunir em capitais pelo mundo afora, na Europa ou no golfo Pérsico, deliberando sobre assuntos que são da competência estrita do Conselho de Segurança. Por exemplo, levantar ou não o embargo, armar ou não os rebeldes. Isso só é possível mediante resoluções que modificam outras resoluções do Conselho de Segurança.
São problemas sistêmicos, e apontá-los não deve ser interpretado como simpatia pelos métodos de Muammar Gaddafi, assim como as críticas à intervenção no Iraque não devem ser interpretadas como simpatia pelos métodos de Saddam Hussein. Quando você intervém, tem de ter segurança de que está promovendo maior estabilidade, não piorando a situação.
A maioria dos críticos dessas intervenções aponta para a seletividade, o duplo padrão. Como o sr. vê isso?
Devemos ter o cuidado de nunca ver a coerção, a sanção, a força, como um fim em si. Na medida em que isso seja contemplado, mediante decisões tomadas de forma legítima pelo Conselho de Segurança, tem de ser parte de uma estratégia que leve a um acordo político, a um cessar-fogo, que leve a uma melhoria para a população. Defender a intervenção militar em si mesma é um debate equivocado.
O Brasil tem apontado a resolução da questão palestina como a chave para resolver outros problemas no Oriente Médio.
É porque a questão palestina está subjacente a parte das tensões no mundo árabe. Desde a criação do Estado de Israel existe a proposta de dois Estados lado a lado em segurança. O próprio mandato das Nações Unidas não terá sido cumprido integralmente até que seja criado um Estado palestino.
Essa questão adquiriu relevância porque há uma frustração enorme com a inoperância da metodologia atual, por exemplo o Quarteto (EUA, Rússia, União Europeia e o secretário-geral da ONU), que ficou incumbido de promover negociações. Ora, o Quarteto, em algumas das últimas reuniões, não foi nem sequer capaz de produzir um relatório consensual.
De modo que defendemos que as Nações Unidas assumam sua responsabilidade. O Conselho de Segurança tem sido capaz de tratar, com alguma capacidade operacional, de questões como Haiti, Timor Leste. Vamos e venhamos, o Conselho de Segurança foi criado para cuidar dos maiores desafios à paz e à segurança internacional. Qual será o maior desafio hoje em dia? É possível dizer que é a questão Israel-Palestina. Então por que o Conselho de Segurança se omitiria nesse caso?
Ele pode até terceirizar ao Quarteto durante um certo período a condução dos esforços. Na medida em que aquilo não resulta, voltemos ao Conselho. No final das contas, foi ele que adotou as resoluções 242, 338, que são os parâmetros incontornáveis para uma solução. Nessa reflexão o Brasil não está numa posição singular. Talvez três quartos dos membros da ONU compartilhem posições muito semelhantes.
Para que a resolução que reconhece o Estado palestino como membro da ONU seja posta em votação no CS, os palestinos querem garantir nove votos a favor. O Brasil tem feito gestões com a Colômbia, que está no CS e tem se declarado contra a resolução?
Não diria que fez gestões, mas o Brasil conversou sobre o assunto na última reunião de chanceleres da Unasul [União de Nações Sul-Americanas], em Buenos Aires, em agosto.
Neste momento o voto da Colômbia é fundamental, mesmo que os EUA venham a vetar depois a resolução. O presidente palestino, Mahmoud Abbas, veio à Colômbia, e a secretária de Estado americana, Hillary Clinton, ligou para o presidente colombiano, Juan Manuel Santos, para defender a posição dos EUA. Por isso pergunto se o Brasil fez gestões também.
Eu converso sobre esses temas com meus colegas. É um tema sobre o qual as delegações em Nova York estão conversando muito. Mas a decisão cabe à Colômbia.
Se os palestinos conseguirem nove votos, eles possivelmente pressionarão pela votação da resolução. Se eles calcularem que não têm os nove votos assegurados, aí talvez esperem. Não há prazo para a votação.
Outra possibilidade é que a Liga Árabe apresente, a pedido dos palestinos, uma resolução à Assembleia Geral da ONU. E aí, dependendo dos termos, os palestinos têm condições de obter 140 votos, mais de dois terços. É uma estratégia paralela, e isso permitirá que a Palestina goze de um status semelhante ao do Vaticano, de observador da Assembleia Geral, e poderá ingressar em agências especializadas.
A presidente Dilma participa no dia 18 da cúpula do Ibas (Índia, Brasil e África do Sul). Com o ingresso da África do Sul no Brics (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), há agora uma superposição entre os dois grupos. Que peso o Brasil dá a cada um desses fóruns?
A gênese dos dois é diferente. O Ibas é fruto de uma ação deliberada da diplomacia dos três países, a ideia original surgiu de uma proposta no dia da posse do presidente Lula, em 2003. A ideia era que, aproximando as três grandes democracias de três continentes, você criaria não só sinergias interessantes do ponto de vista trilateral como também aproximaria as regiões. Isso de fato em certa medida ocorre.
Já a gênese dos Brics é a análise de Jim O"Neill, um economista de Wall Street, que previu muito acertadamente que esses economias estariam entre as dez maiores. A coordenação começou muito relacionada a finanças, e aos poucos foi adquirindo uma agenda mais ampla, sendo que neste ano existe essa coincidência de que todos se encontram no Conselho de Segurança.
Quando você junta Índia, Brasil e África do Sul com China e Rússia, são países cuja agenda visa a transformação da governança global, para torná-la mais democrática e representativa. Mas China e Rússia de certa maneira são potências estabelecidas, já membros permanentes do Conselho de Segurança. Então pode haver sintonia, coordenação, mas existem também diferenças.
O que o Ibas pode render mais do que rende hoje?
Acho que tem um potencial extraordinário. Estamos começando um pouco a superar algumas barreiras. A diplomacia também tem esse papel, de abrir caminho para evoluções que não aconteceriam espontaneamente. São três países que compartilham valores, são democracias multiétnicas, em busca de modelos autônomos de desenvolvimento, são economias de mercado e procuram uma inserção participativa em todos os debates internacionais.
Estamos apenas começando a criar rotas diretas de transporte aéreo, marítimo, no sentido Sul-Sul. Sem o envolvimento ativo de Brasil, África do Sul e Índia isso será difícil. Buscamos um entrosamento maior entre setores empresariais, que têm que romper a barreira da distância, do desconhecimento. E existe a possibilidade de coordenação política, existe o Fundo Ibas de apoio a países de menor desenvolvimento, que tem um projeto premiado no Haiti, além de projetos na Guiné-Bissau, nos territórios palestinos.
Fonte: Folha
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