Em setembro, ao que tudo indica, a Assembleia Geral da ONU preparará o reconhecimento do estado palestino, dentro das chamadas fronteiras da Linha Verde (1967). Os palestinos deram passos políticos internos decisivos, de unificação e de reunião sob a OLP, para obterem esse reconhecimento. A “justiça social”, a “primavera árabe” de longa duração e o movimento internacional dos palestinos comparecem, na atual conjuntura, como miragens desejosas de habitarem um horizonte.
Desde o começo de agosto, milhares, em alguns momentos centenas de milhares de israelenses tomaram as ruas do país lutando por “justiça social”. O protesto foi puxado por uma alta de aproximadamente 50% no valor das moradias (tanto para compra e venda como para locação), em Israel, nos últimos dois anos. Acampados em barracas e pedindo a saída de Netanyahu, trabalhadores, classe média baixa e estudantes fizeram coro com os sem teto, na luta pela construção de moradias públicas, populares e pela diminuição no custo de vida do país.
Dentre os que ocuparam as ruas havia e há – os protestos continuam – os que associam e os que não associam a conjuntura econômica e social de Israel com a ocupação dos territórios palestinos. Em meio a uma das maiores manifestações de rua da história de Israel, na segunda semana de agosto, havia moradores de assentamentos ilegais, para onde escoa boa parte dos recursos orçamentários do estado, além do orçamento da defesa.
Reduzir ou cortar o orçamento para os assentamentos ilegais e nos gastos militares e reinvestir os fundos públicos no estado de bem estar social, atualmente parasitado por uma elite neoliberal estão no centro da agenda dos manifestantes. A associação do mal estar, causados pelo desemprego, pelos baixos salários e pelo alto custo de vida com o preço econômico da ocupação militar e territorial dos palestinos, no entanto, não parece comparecer sequer na agenda da chamada social democracia israelense, hoje representada pelo Partido Trabalhista, que tem entre suas lideranças mais promissoras um quadro parlamentar para quem os assentamentos não são um problema correlato à crise econômica e social que tem levado milhares às ruas do país [Ler: Líder trabalhista não vê assentamentos como crime].
Em setembro, ao que tudo indica, a Assembleia Geral da ONU preparará o reconhecimento do estado palestino, dentro das chamadas fronteiras da Linha Verde (1967). [Ler: Embaixador de Israel na ONU: não há como interditar reconhecimento de Estado palestino] . Os palestinos deram passos políticos internos decisivos, de unificação e de reunião sob a OLP, para obterem esse reconhecimento. Enfrentam uma grave crise econômica e não está nem de perto claro qual será o destino dos milhões de refugiados palestinos na proposta de acordo encabeçada por Abbas [Ler: Professor adverte sobre riscos para refugiados palestinos].
Na prática, é possível que a declaração da ONU não leve a grandes mudanças e, pior, que Israel a utilize para recuperar o status quo [Ler: Os planos da direita israelense para "restaurar o status quo"]. Assim, o país seguirá utilizando o expediente retórico e político de se dizer sem interlocutor, seguirá desrespeitando as decisões e recomendações da comunidade internacional e perseverará na construção de assentamentos, preferencialmente para comunidades ultra ortodoxas, em territórios palestinos, estabelecendo como que um cinturão de fanáticos religiosos e de elementos de uma direita bélica e paranoide, cercando a Israel legal, em nome de um delírio expansionista, eventualmente com um temerário e assombroso fundamento religioso [Ler: Novos assentamentos: Israel não precisa de um "lebensraum"].
As vozes críticas, isto é, que estabelecem as conexões e não lidam com os fatos a despeito de sua história são poucas e de certa idade. Talvez esse seja um dos elementos mais melancólicos para quem é de esquerda e sabe o que Israel significou para gerações de militantes antirracistas, antimilitaristas, socialistas e humanistas liberais, no pós Segunda Guerra. Há também ex-diplomatas israelenses nos EUA que defendem a viabilidade do retorno à Linha Verde, além da pequena esquerda israelense.
A decisão pelo recuo de Israel ao seu status legal, conforme aos ditames das Nações Unidas e na iminência do reconhecimento do estado palestino conta ainda com outros complicadores. Se essa possibilidade é real, no sentido de que é algo mais forte do que apenas um preceito inteligível e mensurável - em termos de compensações financeiras, rearranjos urbanísticos e no âmbito dos serviços públicos -, ela também depende do estado das coisas no mundo árabe.
E o fato é que os palestinos que lideram a proposta, quer dizer, os grandes grupos políticos da palestina (Fatah, Hamas e AlMubadara, respectivamente) não contam com aliados certos e firmes dentre as lideranças dos países Árabes. O Irã já disse que Israel deve ser varrido do mapa, o governo sírio, que vem aplicando mão de ferro para esmagar os protestos por democracia no seu país chegou a bombardear um campo de refugiados palestino ; o Egito, com a escalada de violência no sul de Israel e frente ao que se tornou o Sinai, depois da queda de Mubarak, não está em posição de garantir grande apoio, mesmo que o faça. O Iraque não existe, pelo menos por um bom tempo, como um país soberano. Quer dizer, a Liga Árabe apoia, como um todo, a causa palestina, mas quando se observa de perto, vê-se que esse apoio é menos decisivo e homogêneo do que poderia ser, coisa que, a despeito da primavera árabe, não configura novidade alguma. O Líbano apoia, mas o Hezbollah já disse que os palestinos não devem abrir mão nem de um grão de areia.
Ao norte, na fronteira com o Líbano, e ao sul, na fronteira com o Egito, há focos de tensão a partir dos quais pode haver escalada de violência. O governo de Netanyahu, que tem um ser como Avigdor Lieberman como ministro de Relações Exteriores, enfrenta insatisfação interna e se prepara para setembro com expedientes demagógicos e manobras legais que secundarizam explicitamente o conceito de Israel como democracia [Ler: Israel está oficialmente abrindo mão da democracia?]. E o embaixador estadunidense em Israel já avisou que os EUA vetarão a proposta palestina, do jeito que ela está.
O ato fundacional de um estado pode não ser um ato em si mesmo legítimo, enraizado em costumes ou derivado de uma longa história. Disso não se segue que estados só se originem à força, obviamente. Mas se segue que sem o estabelecimento de uma lei originária, de um fundamento normativo, presente e positivo, não há garantia, no limite, da existência mesma do próprio estado. É por isso que, neste momento, a fundação de Israel aparece revisitada em boa parte das análises críticas sobre o estado das coisas no país [Ler: Para que haja paz, Israel precisa reconhecer dor palestina).
Porque o seu ato fundador parece sempre em aberto, não concluso, enquanto o debate sobre as fronteiras permanecer como fator de desentendimento, violação de direitos e opressão.
O território é um dos requisitos, segundo a doutrina do direito internacional público, para todo e qualquer reconhecimento de um estado. O povo, a história e, contemporaneamente, a democracia, são outros requisitos, além da língua. O que ata a fundação do Estado de Israel à fundação do Estado Palestino nunca esteve tão próximo e nunca foi tão equivalente, em termos de fragilidade política. Os palestinos, pode-se objetar, são obviamente muito mais frágeis e militarmente desqualificados frente às Forças de Defesa de Israel. É verdade; mas também é verdade que Israel enfrenta crises mais profundas e enfraquecedoras do que os palestinos. Para Israel a crise é social, é governamental, está na oposição, na relativa distância do seu aliado de primeira hora (os EUA), atualmente imerso na própria e difícil agenda e na sua falta de autoridade moral.
Tudo se passa como se, finalmente, os acontecimentos tenham tornado a íntima e necessariamente íntima vinculação entre palestinos e israelenses auto evidente. A hipótese remota de que o estado palestino e o estado israelense coadunem um modo de existir pacífico, em acordo com a comunidade internacional e com relativo financiamento de bem estar para os seus povos (inclusive os hoje refugiados), a cada requisito elementar preenchido – mesmo como hipótese remota -, parece mais utópica e ingênua. A “justiça social”, a “primavera árabe” de longa duração e o movimento internacional dos palestinos comparecem, na atual conjuntura, como miragens desejosas de habitarem um horizonte. Caso esse horizonte se apresente, afinal, como um só, então pode ser que algo concreto seja reconhecido, e então se tenha uma alternativa, como defendeu o professor e historiador Tony Judt, que defendeu a retomada da tese da esquerda socialista europeia e israelense, nos anos 60 (em sua maior parte, judia) de um estado republicano, laico, único, binacional.
Para uma miragem ou outra, muitas fronteiras, além de território, terão de ser estabelecidas.
Fonte: Carta Maior