segunda-feira, 4 de julho de 2011

Obama decide deixar o Afeganistão e reconstruir os EUA

Estradas no Kentucky, não em Cabul. Com a profunda crise econômica nos Estados Unidos, o presidente Barack Obama começa a mudar as prioridades, do envolvimento dispendioso em guerras externas ao desenvolvimento do país. O ex-secretário de Defesa dos EUA, Robert Gates, não hesitava em admitir que estava cansado da função para a qual foi chamado no fim de 2006.

Ele ajudou a repatriar as tropas americanas do Iraque e, embora tenha a impressão de que possa ser um pouco prematuro, também aprova o programa que trará de volta os soldados americanos do Afeganistão.

Gates trabalhou com dois presidentes que não poderiam seguir linhas mais diferentes: George W. Bush e Barack Obama. No entanto, sua reputação continua não apenas intacta, como excelente. Embora esteja com 67 anos, não sofreu o desgaste do cargo.

Então, por que decidiu deixar o governo? “Para dizer a verdade”, disse ele em recente entrevista concedida à revista Newsweek, “uma das várias razões pelas quais está na hora de me aposentar é que, francamente, não posso me imaginar fazendo parte de uma nação, parte de um governo, que está sendo obrigado a reduzir drasticamente o nosso envolvimento com o resto do mundo”.

Gates se aposenta com uma nota de melancolia, porque acredita no mandato histórico do seu país de tornar o mundo um lugar melhor. Na sua opinião, o que ocorreu no Vietnã, ocorre agora no Afeganistão. “Chegamos muito tarde nesse jogo”, afirmou. Entretanto, Gates não diz se acha que agora é muito tarde para vencer a guerra afegã nem se a missão poderia ter sido bem-sucedida.

Sonhos caros. Em sua maioria, os americanos mostram a mesma ambivalência do ex-secretário da Defesa a respeito do Afeganistão. Eles acreditam que, na esteira de 11 de Setembro, a derrubada do regime do Taleban e a caça à Al-Qaeda foi a coisa certa a fazer. Evidentemente, era perfeito imaginar que o Afeganistão, um país pobre que se desintegrou no tribalismo e se tornou presa de déspotas, poderia se desenvolver de algum modo.

No entanto, a guerra completa dez anos a um custo de US$ 2 bilhões por semana. Agora, a Casa Branca começa a corrigir as suas prioridades para se conformar à convicção geral de que, se Washington deve se envolver em um esforço de reconstrução, que seja nos EUA, onde é urgentemente necessário.

Os EUA continuam atolados na crise econômica. O país, que procurou se reinventar tantas vezes, enfrenta dificuldades. Três anos depois do colapso do banco de investimentos Lehman Brothers, o desemprego continua elevado, 9%, segundo a taxa oficial, mas 16% pela não oficial.

O crescimento se arrasta a menos de 2% e o ônus da dívida interna cresce diariamente nada menos do que US$ 4, 38 bilhões. Muitas cidades estão tão quebradas que estradas e pontes se encontram em condições precárias e algumas áreas do país já se parecem com o Terceiro Mundo.

Um declínio dessas proporções é raro na história americana. Entretanto, a superpotência mordeu mais do que podia mastigar. Agora, sofre as consequências.

Prioridades internas. Essa mudança de atitude no país chega a Washington e aos partidos políticos. De repente, começaram a ocorrer coisas espantosas. Acabaram-se os dias em que democratas e republicanos se enfrentavam com uma agressividade cruel.

Na realidade, agora os dois partidos concordam surpreendentemente na questão do Afeganistão e com a necessidade de estabelecer novas prioridades. No entanto, um projeto de lei que prevê a rápida retirada das tropas americanas, recentemente, não passou na Câmara dos Deputados, ainda que por pequena margem. Logo em seguida, um grupo de 27 senadores de ambos os partidos escreveu uma carta ao presidente pedindo uma retirada mais rápida e um rompimento mais nítido.

A maré mudou

. Alguns republicanos, aparentemente mais prudentes, que esperam concorrer contra o presidente em 2012, competem entre si com pedidos de redução gradativa do envolvimento da superpotência em regiões longínquas do planeta.

Na realidade, o Iraque e o Afeganistão, agora, dividem o Partido Republicano no que se refere à influência dos EUA no mundo, como aconteceu com o Partido Democrata a respeito do Vietnã, há várias décadas.

Agora, a cisão facilita o início da retirada do Afeganistão para o presidente Obama. Na semana passada, ele precisou de apenas 15 minutos para pronunciar um discurso de repercussão histórica.

“Americanos,” conclamou o presidente, “chegou o momento de cuidarmos da reconstrução de nosso país”. A nova prioridade será a construção de estradas em Kentucky,e não em Cabul, de pontes na Califórnia, não em Kandahar.

A guerra no Afeganistão foi a mais longa em termos de envolvimento americano. Começou no outono de 2001, semanas depois dos ataques em Nova York e em Washington, e está quase no fim. Em setembro de 2012, os 33 mil soldados que foram enviados ao Afeganistão há apenas um ano e meio, voltarão para casa. As tropas restantes serão repatriadas gradativamente até 2014, encerrando o compromisso militar dos EUA no país.

A superpotência começou também a reduzir seu zelo missionário. “Não tentaremos tornar o Afeganistão um lugar perfeito”, disse Obama no discurso. “Não policiaremos suas ruas nem patrulharemos indefinidamente suas montanhas. Isto é responsabilidade do governo afegão, que deverá aumentar sua capacidade de proteger o seu povo.”

O presidente do Afeganistão, Hamid Karzai, que o governo Obama não considera confiável, respondeu com magnanimidade ao discurso, definindo o anúncio um “momento de felicidade para o Afeganistão” e dizendo que Obama tomou a decisão certa para ambos os países. “A confiança do povo afegão no Exército e na polícia afegãos cresce dia a dia”, disse Karzai. “E a preservação deste país cabe aos afegãos.” Se isto fosse verdade, o Afeganistão estaria agora numa ótima situação.

Retorno ao começo. O presidente Obama fechou o círculo e agora retorna ao ponto de partida. Embora inicialmente seu objetivo fosse acabar com a guerra no Afeganistão, teve de ceder às pressões da alta cúpula militar. Há um ano e meio, ele elaborou uma estratégia que previa dois compromissos: o envio de mais de 30 mil soldados e sua retirada até julho de 2011. Um dia, os historiadores dirão se Obama acreditava realmente que seria possível virar os destinos da guerra ou se procurava apenas uma maneira de sair de uma situação complicada.

Tendo conseguido melhorar a situação no Iraque, o general David Petraeus foi enviado ao Afeganistão para fazer o mesmo, na qualidade de comandante da Força Internacional de Segurança (Isaf). No entanto, em vez de resolver o problema do Afeganistão, Petraeus se desgastou totalmente.

Não surpreende que ele se opusesse à redução das tropas e tenha feito o possível para que um público cada vez maior fosse posto a par das suas objeções. Petraeus será um dos primeiros a sair do Afeganistão e retornará a Washington para assumir um novo cargo, o de diretor da CIA. De acordo com o ponto de vista de Obama, a transferência é necessária. Petraeus é um general para a guerra, não para retiradas.

O presidente poderá encerrar definitivamente o envolvimento no Afeganistão por uma razão simples: a morte do líder e fundador da Al-Qaeda, Osama bin Laden, proporcionou aos americanos uma sensação de satisfação e afugentou as suspeitas de que Obama fosse excessivamente permissivo para o seu cargo.

Os democratas, que por tradição adotam uma atitude mais cética em relação à guerra, estão evidentemente satisfeitos com a decisão de Obama e ficariam ainda mais felizes com uma retirada mais acelerada.

Os republicanos, de sua parte, agora estão enrascados numa disputa interna para decidir qual deveria ser a sua posição em relação ao Afeganistão e ao curso que os EUA deveriam seguir.

Os falcões são liderados pelos senador John McCain, de 74 anos, herói de guerra e veterano do Vietnã que perdeu as eleições presidenciais para Obama. McCain voltou à arena política para pregar a sua mensagem pelo rádio e pela televisão. “Acho que abandonar o Afeganistão à mercê do Taleban e dos extremistas radicais islâmicos seria repetir os erros que o país já cometeu antes. Recentemente, em entrevista à jornalista Christiane Amanpour no programa This Week, o senador disse que “é crucial manter o curso inicial”.

Essas palavras não eram dirigidas apenas a Obama, mas, talvez até mais, ao próprio partido de McCain. Quando discutiu o fato de alguns candidatos presidenciais serem favoráveis a acelerar a retirada das tropas, ele criticou o que chamou de “isolacionismo”. “Sempre houve uma veia isolacionista no Partido Republicano, mas agora parece que está se deslocando para o centro.”

Candidatos republicanos. No entanto, embora McCain fale de um centro, o principal problema dos republicanos é que o partido não tem nem um centro nem políticos de destaque. O que tem são candidatos presidenciais, como Mitt Romney, para quem a política externa está sempre submetida a considerações populistas internas.

“Está na hora de trazermos nossos soldados para casa o mais cedo possível”, disse Romney. “Somente os afegãos podem tornar o Afeganistão independente do Taleban.”

Comentando a questão da guerra afegã, Newt Gingrich, o mais exibicionista dos candidatos republicanos, disse sucintamente: “O custo é sempre o problema principal”. Ron Paul, um dos preferidos do movimento conservador do Tea Party, defende o fim imediato das atividades militares americanas no Iraque, Afeganistão e Líbia.

Nessas declarações é difícil distinguir entre convicção e oportunismo. As pesquisas indicam que 55% dos eleitores republicanos acreditam que os EUA “deveriam se preocupar menos com os problemas internacionais e tratar mais dos problemas internos”.

As agências atribuem essa mudança do lado conservador, que votou por duas vezes em George W. Bush, ao “efeito da recessão”. Em outras palavras, na opinião desse eleitorado, o isolacionismo é uma consequência da crise econômica.

O próprio Tea Party, o movimento das bases profundamente conservadoras que exerce grande influência entre os republicanos, também pode ser caracterizado como um efeito da recessão. Embora não seja absolutamente monolítico, o grupo defende uma crença fundamental: os EUA em primeiro lugar e por uma margem muito grande.

Retirada americana. Na realidade, a política externa americana sempre se dividiu em dois campos: o dos isolacionistas, que queriam evitar os conflitos com o resto do mundo, e o dos internacionalistas, que queriam firmar a posição dos EUA no exterior.

Obama não é, de modo algum, um isolacionista. Ele é, principalmente, uma pessoa que trabalha sem atropelos. No entanto, com o país mergulhado na crise, manter duas guerras de uma vez é um luxo que a nação não pode se permitir.

A mensagem do presidente é que seu país terá de tirar lições dolorosas de sua guerra mais longa. E o processo já começou.

Fonte: Estadão
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