Interessante análise do conceito de duplo uso da Marinha, estudo feito por Nuno Sardinha Monteiro e António Anjinho Mourinha - Portugal.
1.Introdução
A globalização é o fenômeno mais marcante da História contemporânea, traduzindo-se na existência de um sistema econômico interdependente, expresso na troca crescente de bens e de informações. Este sistema caracteriza-se pelo fato da economia mundial assentar:
· no livre tráfego, particularmente no efetuado por via marítima, que é responsável por cerca de 90% do comércio mundial;
· na facilidade de comunicar, sendo que os cabos de comunicações submarinos transportam para cima de 95% do tráfego ciberespacial inter-continental (tanto de voz como de dados) de todo o mundo.
Estes valores exprimem bem a importância do mar para a economia globalizada dos nossos dias, pelo que se torna fundamental manter, nos espaços marítimos, a lei e a ordem, combatendo as ameaças ao uso do mar. Isso tem levado a um crescente envolvimento das marinhas em operações de âmbito securitário, vocacionadas para a proteção do tráfego marítimo e, também, para o combate a ameaças como o terrorismo, a proliferação de armamento, a pirataria, o narcotráfico, a imigração ilegal, o tráfico de pessoas e outras atividades ilícitas. Estas ações visam, no essencial, combater as ameaças que, vindas do mar, podem afetar o ambiente interno.
Este artigo começa por analisar os desenvolvimentos mais recentes em termos de estratégia marítima, prestando uma atenção particular aos documentos estruturantes da potência atual: EUA. Esses documentos têm reconhecido e defendido o incremento da participação das marinhas no âmbito da segurança marítima, uma função essencialmente não militar. Isso levar-nos-á a apresentar o caso português, em que, por imperativo de racionalidade no emprego dos recursos nacionais e, também, por tradição histórico-cultural, a Marinha assegura, há mais de 2 séculos, funções militares e funções não militares, dando assim corpo ao conceito de Marinha de Duplo Uso.
Esse conceito será apresentado evidenciando o seu alinhamento com as modernas estratégias marítimas. Finalmente, apresentar-se-ão algumas vantagens e benefícios que o País retira da circunstância de possuir uma Marinha de Duplo Uso, que combina a atuação (ou ação) militar, apanágio das armadas, com a atuação (ou ação) não militar, típica das guardas costeiras.
1. Tendências de aplicação do poder marítimo no início do séc. XXI
Na década de 1990, a US Navy publicou dois documentos estruturantes da sua estratégia naval: “… From the sea” (1992) e “Forward … from the sea” (1994), que atualizavam o papel das marinhas numa nova ordem, caracterizada pelo fim da confrontação bipolar e pela crescente conflitualidade regional. Esses documentos enfatizavam a importância da projeção de força sobre terra, particularmente sobre o litoral, o que justificou um estreitar de relações com o US Marine Corps. Por essa razão, os dois documentos estratégicos da série “From the sea” foram produzidos em conjunto pela Marinha e pelos Fuzileiros que, nos EUA, constituem ramos independentes das Forças Armadas.
Entretanto, o ambiente geoestratégico foi-se alterando e a US Navy sentiu necessidade de rever a sua doutrina. Esse processo de revisão foi muito influenciado por um conceito surgido em 2005, pela voz do então Comandante da Marinha Americana Almirante Mike Mullen: o conceito da “1000 ship Navy”, ou “Marinha de 1000 navios” na terminologia portuguesa. Numa intervenção no Naval War College, em Agosto de 2005, o Almirante Mullen afirmou: “Almejo uma «1000 ship Navy» composta por todas as nações amantes da liberdade, guardando os mares e fazendo-o em conjunto”. A expressão “1000 ship Navy” não era para ser entendida em sentido literal, pois não correspondia a uma esquadra real. Ela procurava designar uma rede global de navios das mais diversas proveniências, todos irmanados no objetivo comum de contribuir para a segurança marítima global.
Por esta altura, a Marinha Americana tinha percebido que nunca iria conseguir o número de navios necessários ao policiamento global dos oceanos e essa constatação ajudou a empurrar a respectiva liderança para uma maior cooperação naval multinacional, que acabou por dar origem ao conceito da “1000 ship Navy”. No entanto, o conceito não foi muito bem percebido, essencialmente por 2 motivos.
Por um lado, tinha um número associado, que, ainda por cima, era um número elevado. Como este conceito surgiu depois da “600 ship Navy”, do tempo de Ronald Reagan, que visava, de fato, possuir 600 navios, nem toda a gente percebeu que o conceito da “1000 ship Navy” era radicalmente diferente, pretendendo abarcar navios de várias origens. Muitos não perceberam que se tratava, como Geoffrey Till explicou, de uma “fraternidade do mar”.
Por outro lado, o fato de a expressão incluir a palavra “Navy” era bastante redutor, já que se pretendia integrar também meios das guardas costeiras, de forças policiais-marítimas e de outras agências e departamentos com competências para atuar no mar.
Dessa forma, o conceito da “1000 ship Navy” foi reciclado na nova estratégia marítima americana, aprovada em Outubro de 2007: “A Cooperative Strategy for 21st Century Seapower”, onde é substituído pelo vocábulo “cooperação”, que permite ultrapassar os dois problemas acima referidos. Aliás, o próprio documento é habitualmente conhecido apenas como “Cooperative Strategy”.
Esta nova estratégia tem a particularidade de provir dos 3 departamentos marítimos americanos: a Marinha, a Guarda Costeira e o Corpo de Fuzileiros, fato que aconteceu pela primeira vez. Uma das ideias dominantes deste documento é a de que prevenir as guerras é tão importante como ganhá-las. Outro aspecto importante é o elenco de capacidades que “constituem o núcleo do poder marítimo norte-americano e reflectem uma ênfase nas atividades destinadas a prevenir guerras e a estabelecer parcerias”[8]. Essas capacidades são as seguintes:
· Presença naval;
· Dissuasão estratégica;
· Controlo do mar;
· Projeção de força;
· Segurança marítima;
· Assistência humanitária / resposta a catástrofes.
Realce para o fato de a segurança marítima e a assistência humanitária aparecerem pela primeira vez num documento deste tipo.
No que respeita à segurança marítima, isto mostra a crescente importância da manutenção da lei e da ordem no mar, de forma a mitigar as ameaças aquém da guerra. A estratégia americana refere explicitamente a necessidade de os 3 departamentos marítimos americanos se juntarem “às marinhas e às guardas costeiras de todo o mundo para policiar os «global commons» e suprimir as ameaças comuns”.
No que respeita à assistência humanitária, esta evolução conceitual materializa a sua elevação ao estatuto de capacidade essencial no quadro do poder marítimo dos EUA, refletindo a importância dada ao alívio do sofrimento humano, tanto de forma proativa e deliberada, como no âmbito da resposta a crises ou catástrofes.
Em termos conceituais, esta nova estratégia marítima é muito inspirada no pensamento de dois estrategistas contemporâneos: o norte-americano Thomas Barnett e o britânico Geoffrey Till, que genericamente defendem a necessidade de incrementar a cooperação para fazer face ao carácter transnacional e à natureza difusa e híbrida de muitas das ameaças atuais. Estas fizeram esbater, de forma inapelável, as fronteiras entre segurança externa e interna, obrigando os Estados a aproximarem e a articularem as suas forças de defesa e de segurança, num ambiente cooperativo, tanto ao nível interno dos Estados, como ao nível externo ou inter-estados.
Geoffrey Till criou mesmo dois conceitos interessantes, que ilustram a maior ou menor propensão das marinhas para empenhamentos cooperativos. Segundo Till, identificam-se atualmente dois modelos de desenvolvimento naval. Um primeiro, que designa como o das marinhas modernas, vocacionado para a competição entre Estados por poder, território, recursos ou supremacia ideológica. Este modelo, que almeja a “batalha decisiva”, tem como grande apóstolo Mahan. E um segundo, que Till designa como o das marinhas pós-modernas, baseado numa abordagem internacionalista, colaborativa e quase coletiva, que visa assegurar a liberdade dos mares através de atuações cooperativas. Pode dizer-se que as marinhas modernas são as vocacionadas apenas para a ação militar e que as marinhas pós-modernas são as que, além da vertente militar, conseguiram evoluir para o empenho colaborativo no âmbito da ação não militar e, em concreto, da imposição da lei nos espaços marítimos. Neste particular, importa acentuar que o paradigma do Duplo Uso, adotado na doutrina estratégica portuguesa, integra a nossa Marinha na pós-modernidade, tal como definida por Geoffrey Till, mostrando, também, a validade universal deste conceito praticado em Portugal.
2. Conceito da Marinha de Duplo Uso
O conceito da Marinha de Duplo Uso está consagrado em lei desde o início do século XIX e, desde então, a legislação nacional tem vindo a reforçá-lo, com o Estado a cometer à Marinha uma atuação militar em paralelo com uma atuação não militar, ligada, sobretudo, à segurança marítima, ao exercício da autoridade pública no mar, à investigação no âmbito das ciências do mar e à promoção e preservação da cultura marítima. Aliás, não obstante a defesa militar ser a missão constitucional primária dos ramos das Forças Armadas, a atuação não militar da Marinha, detalhada em inúmeras leis da República, assume um peso bastante significativo no quadro dos empenhamentos quotidianos do ramo.
Este modelo de actuação ficou formalmente expresso na recente Lei Orgânica da Marinha, que refere explicitamente o “paradigma da Marinha de «duplo uso»”. Encontra-se, também, explanado na documentação estruturante da estratégia naval e, particularmente, num documento de 2005 intitulado “Funções e missões do poder naval nacional”, bem como num conjunto de quatro folhetos doutrinários que a Marinha publicou por ocasião do Dia da Marinha de 2009. Aí se elencam as seguintes funções da Marinha Portuguesa:
· Defesa militar e apoio à política externa;
· Segurança e autoridade do Estado;
· Desenvolvimento econômico, científico e cultural.
O modelo de Duplo Uso corresponde, pois, a assegurar, em simultâneo, uma atuação militar, inerente à função de defesa e apoio à política externa, e uma atuação não militar, ligada às funções de segurança e autoridade do Estado no mar e de apoio ao desenvolvimento econômico, científico e cultural.
A atuação militar da Marinha está polarizada no Comando Naval, que tem por missão:
· Preparar, aprontar e sustentar as forças e unidades operacionais (designadamente, forças navais, forças de fuzileiros, unidades navais, unidades de fuzileiros e unidades de mergulhadores);
· Exercer o comando operacional de todas as forças e unidades operacionais empenhadas nas missões atribuídas à Marinha.
O Comando Naval dispõe de dois comandos subordinados: a Flotilha, vocacionada para o aprontamento e o apoio logístico e administrativo das forças e unidades navais e de mergulhadores; e o Comando do Corpo de Fuzileiros, direcionado para o aprontamento e o apoio logístico e administrativo das forças e unidades de fuzileiros e para o seu emprego em algumas atividades operacionais. Além disso, o Comando Naval tem na sua dependência cinco Comandos de Zona Marítima com competência em razão do espaço geográfico: Norte, Centro, Sul, Açores e Madeira.
Além de assegurar a atuação militar da Marinha, o Comando Naval também tem competências e desempenha tarefas de âmbito não militar, vertente de atuação em que avultam ainda, integrados na Marinha:
· O Serviço de Busca e Salvamento Marítimo;
· A Autoridade Marítima Nacional;
· O Instituto Hidrográfico;
· Os Órgãos de Natureza Cultural.
O Serviço de Busca e Salvamento Marítimo tem a responsabilidade pelas ações de busca e salvamento marítimo relativas a acidentes ocorridos com navios, embarcações ou pessoas nos espaços marítimos sob responsabilidade nacional e nas áreas do domínio público hídrico sob jurisdição da autoridade marítima, em que se verifique existir perigo para as pessoas ou necessidade de evacuação médica.
Quanto à Autoridade Marítima Nacional, as especificidades da sua inserção na administração pública portuguesa, bem como a complexidade do correspondente quadro legal, justificam maior detalhe na descrição da sua organização, do seu funcionamento e das suas responsabilidades.
De fato, Autoridade Marítima Nacional designa, de acordo com a lei, duas realidades.
Por um lado, é a entidade que constitui o topo hierárquico responsável pela administração e coordenação das atividades a executar pela Direção-Geral da Autoridade Marítima e pelos restantes órgãos da Marinha no quadro do Sistema da Autoridade Marítima, entidade essa que é, por inerência, o Almirante Chefe do Estado-Maior da Armada. Na qualidade de Autoridade Marítima Nacional, este titular responde diretamente perante o Ministro da Defesa Nacional (principal responsável pela coordenação nacional das entidades e órgãos integrantes do Sistema da Autoridade Marítima). Além disso, o Almirante Autoridade Marítima Nacional tem assento no Conselho Superior de Segurança Interna e está representado no Gabinete Coordenador de Segurança e na Unidade de Coordenação Antiterrorismo, bem como, num âmbito diferente, na Comissão Nacional de Proteção Civil.
Por outro lado, Autoridade Marítima Nacional designa também o conjunto de órgãos e serviços que, integrados na Marinha, exercem o poder de autoridade marítima, que é “o poder público a exercer nos espaços marítimos sob soberania ou jurisdição nacional, traduzido na execução dos atos do Estado, de procedimentos administrativos e de registo marítimo, que contribuam para a segurança da navegação, bem como no exercício de fiscalização e de polícia, tendentes ao cumprimento das leis e regulamentos aplicáveis nos espaços marítimos sob jurisdição nacional”. Os órgãos e serviços da Autoridade Marítima Nacional são, ainda, agentes de proteção civil, conforme previsto na respectiva Lei de Bases.
Como conjunto de órgãos e serviços, a Autoridade Marítima Nacional tem como órgão central a Direcção-Geral da Autoridade Marítima e integra na sua estrutura operacional a Polícia Marítima, a única força policial do nosso País especializada nas questões marítimas, actuando como órgão de polícia e de polícia criminal. A Direção-Geral da Autoridade Marítima, por sua vez, compreende cinco Departamentos Marítimos (Norte, Centro, Sul, Açores e Madeira) e 28 Capitanias dos Portos, que são os seus órgãos regionais e locais, integrando ainda o Instituto de Socorros a Náufragos, a Direção de Faróis e a Direção do Combate à Poluição do Mar.
O Diretor-Geral e o Subdirector-Geral da Autoridade Marítima são, respectivamente e por inerência de funções, o Comandante-Geral e o 2.º Comandante-Geral da Polícia Marítima. Concorrentemente, os Chefes dos Departamentos Marítimos e os Capitães dos Portos são, também por inerência, Comandantes Regionais e Locais da Polícia Marítima. A associação assim conseguida entre a autoridade do Capitão do Porto e a estrutura operacional da Polícia Marítima tem como grande vantagem agregar a imposição jurídica da autoridade marítima e a efetiva aplicação da medida determinada. É por isso que ela persiste há cerca de dois séculos, apesar das muitas reformas administrativas entretanto ocorridas.
Para finalizar a referência às estruturas da Marinha que asseguram o desempenho de tarefas não militares, falta abordar o Instituto Hidrográfico e os Órgãos de Natureza Cultural.
O Instituto Hidrográfico tem por missão assegurar as atividades de investigação e desenvolvimento tecnológico relacionadas com as ciências e as técnicas do mar, designadamente nas áreas da hidrografia, da cartografia hidrográfica, da segurança da navegação, da oceanografia e da proteção e preservação do meio marinho. O Instituto Hidrográfico é responsável pela produção da cartografia hidrográfica oficial nacional e possui o estatuto de Laboratório do Estado, que reconhece o seu papel essencial no panorama científico e tecnológico nacional. Além disso, é o organismo central do consórcio OCEANO, que visa promover a cooperação científica nacional e internacional na área da oceanografia.
Os Órgãos de Natureza Cultural são os órgãos da Marinha vocacionados para atividades no domínio do património cultural, histórico e artístico, a saber: Comissão Cultural de Marinha, Academia de Marinha, Aquário Vasco da Gama, Banda da Armada, Biblioteca Central de Marinha, Museu de Marinha, Planetário Calouste Gulbenkian e Revista da Armada. A Comissão Cultural de Marinha é o órgão de direção neste domínio, tutelando os restantes Órgãos de Natureza Cultural, com excepção da Academia de Marinha, que dispõe de autonomia científica e funciona na direta dependência do Chefe do Estado-Maior da Armada.
A organização acima descrita, ao assegurar a atuação militar e não militar da Marinha, dá tradução estrutural ao modelo do Duplo Uso, que se revela bastante adequado ao atual ambiente geoestratégico, caracterizado por uma tendência crescente de emprego das marinhas de guerra em funções não militares, com particular ênfase em funções securitárias.
3. Algumas vantagens do paradigma do Duplo Uso
Este modelo de Duplo Uso, decorrente da estrutura orgânica que foi descrita, proporciona ao País importantes vantagens. Neste artigo, tentaremos, de forma despretensiosa, abordar algumas dessas vantagens, relacionadas sobretudo com a nossa experiência e conhecimento profissionais. Por uma questão de sistematização, dividi-las-emos em:
· Vantagens de âmbito genético; e
· Vantagens de âmbito operacional.
3.1. Vantagens de âmbito genético
As vantagens de âmbito genético são aquelas que estão ligadas às sinergias conseguidas na edificação de “novos meios em pessoal e material, segundo capacidades diversificadas, integráveis e conjugáveis, essenciais para constituir umas Forças Armadas flexíveis, que realizem operações no momento adequado, sirvam o conceito de ação estratégica (…) e permitam o cumprimento da missão estratégica (…)”. Abordaremos as seguintes vantagens de âmbito genético: (1) sinergias em pessoal e infra-estruturas; (2) sinergias no sistema de forças; (3) sinergias na logística; e (4) sinergias na formação.
3.1.1. Sinergias em pessoal e infra-estruturas
Uma das características-chave do conceito de Duplo Uso é a integração, de forma articulada, de três estruturas orgânicas diferenciadas. A primeira, vocacionada sobretudo para a ação militar, é o Comando Naval. A segunda, ligada principalmente à aplicação e à verificação do cumprimento das leis e dos regulamentos marítimos, é a Direção-Geral da Autoridade Marítima. A terceira, direcionada para a ação policial nos espaços marítimos sob jurisdição nacional, é o Comando-Geral da Polícia Marítima.
Ora acontece, não por acaso, que as chefias regionais das três estruturas referidas são uma e a mesma pessoa, em regime de acumulação de cargos – embora com salário único, frise-se. Além disso, as infra-estruturas dos Comandos de Zona Marítima e dos Departamentos Marítimos são comuns, como aliás consta explicitamente da Lei Orgânica da Marinha. Também ao nível local se verifica uma acumulação do cargo de Capitão do Porto com o cargo de Comandante Local da Polícia Marítima, sendo as respectivas infra-estruturas partilhadas.
Esta fórmula permite (além de ganhos operacionais) uma economia significativa de custos com pessoal e com infra-estruturas. De fato, quanto mais custaria ao Estado ter estas três estruturas, todas absolutamente necessárias e complementares no apoio ao exercício da autoridade do Estado no mar, completamente separadas?
3.1.2. Sinergias no sistema de forças
Os casos recentes à volta do processo de aquisição dos submarinos, meios navais indiscutivelmente de grande importância estratégica para Portugal, parecem ter despertado a opinião pública e alguns centros de decisão nacionais para uma questão que os estrategistas levantaram, pelo menos desde há um século: as marinhas são caras e difíceis de edificar.
Com efeito, ter uma marinha é caro, mas muito mais caro seria ter duas, e ainda mais caro, incomensuravelmente mais caro, sobretudo para um país marítimo e quase arquipelágico como Portugal, seria não ter nenhuma. Neste contexto, o conceito de Marinha de Duplo Uso permite dar uma resposta cabal às exigências de utilização judiciosa dos recursos existentes (exponenciadas pela actual situação financeira) uma vez que evita a duplicação de meios ao serviço do Estado português.
Importa referir que os navios da Marinha são concebidos, desde início, com o objectivo de potenciar uma utilização dual, possibilitando respostas militares e não militares e alargando, assim, o respectivo leque de opções de emprego. Os Navios de Patrulha Oceânica, que estão a ser construídos em Viana do Castelo, e os novos submarinos são exemplos dessa filosofia. Os primeiros estão primariamente preparados para missões de fiscalização dos espaços marítimos e de busca e salvamento, mas terão a possibilidade de embarcar módulos que lhes alargam significativamente o espectro de atuação, cobrindo não só outros aspectos da atuação não militar, como também a atuação militar (através de módulos de guerra de minas e de operações especiais). Quanto aos novos submarinos, eles proporcionam uma capacidade de dissuasão não igualada no sistema de forças nacional e constituem um contributo essencial para a defesa militar do País e para o apoio à política externa do Estado. Além disso, estão equipados com tecnologia para garantirem a vigilância encoberta dos nossos espaços marítimos, dessa forma contribuindo com capacidades únicas para a segurança e o exercício da autoridade do Estado no mar.
O modelo de Duplo Uso permite, assim, potenciar a polivalência que caracteriza o emprego das unidades navais, evitando dispersões de recursos.
3.1.3. Sinergias na logística
O modelo de Duplo Uso possibilita, também, sinergias significativas ao nível de toda a atividade logística, nomeadamente na aquisição, na manutenção e no abastecimento. Estas sinergias traduzem-se em economias de escala, sem diminuição na qualidade dos serviços obtidos.
De fato, se o País possuísse uma armada e uma guarda costeira separadas, cada uma delas dotada de meios navais para actuar no mar e das respectivas estruturas administrativo-logísticas, não seria possível a economia de escala nos processos de aquisição, que se consegue ao possuir uma única organização: a Marinha, que actua nas duas qualidades. Além disso, seria necessário, pelo menos ao nível mais baixo, do apoio logístico próximo, duplicar estruturas, designadamente para manutenção e abastecimento.
3.1.4. Sinergias na formação
A formação técnico-profissional dos militares da Marinha, nomeadamente a formação inicial e contínua, compete a um conjunto de escolas e centros de formação que, no seu todo, constituem o Sistema de Formação Profissional da Marinha. Naturalmente, essas escolas e centros preparam os formandos para o desempenho de um leque extremamente alargado de tarefas no mar ou relacionadas com o mar. As sinergias conseguidas ao formar pessoal, que tanto pode desempenhar tarefas no âmbito da acção militar (servindo no setor do Comando Naval, particularmente em unidades combatentes), como no âmbito da acção não militar (servindo no Serviço de Busca e Salvamento Marítimo, na Autoridade Marítima Nacional, no Instituto Hidrográfico, nos Órgãos de Natureza Cultural ou, mesmo, no Comando Naval, em unidades navais vocacionadas para tarefas de busca e salvamento ou de exercício da autoridade do Estado no mar) parecem-nos óbvias.
Neste artigo, evidenciaremos apenas algumas das sinergias conseguidas na formação de militares da Marinha e de pessoal da Polícia Marítima, visto ser um caso singular, no nosso País, de convergência na formação de militares e de polícias, possível pelo fato de ambos actuarem no mesmo ambiente: o mar. Isso permite usufruir de vários pontos de sobreposição em matéria de formação, tendo em conta as necessidades comuns, nomeadamente:
· na formação de base como marinheiros e homens do mar;
· no conhecimento das atividades e das realidades marítimas, fundamental para que uns e outros possam executar apropriadamente a sua função;
· na formação de índole policial e legal, essencial não apenas para missões de imposição da lei e de provimento da ordem pública, mas também para missões estritamente militares;
· na formação em procedimentos operacionais, designadamente técnicas de detecção e identificação de embarcações, procedimentos radiotelefónicos e técnicas de abordagem.
Estes aspectos ilustram algumas das sinergias conseguidas com a potenciação das comunalidades na formação de militares e de polícias, um caso cujo sucesso poderia ser analisado e seguido por outros departamentos do Estado, que fazem a sua formação de modo individual.
3.2. Vantagens de âmbito operacional
As vantagens de âmbito operacional são aquelas que estão ligadas aos ganhos conseguidos no “emprego dos meios em pessoal e material, segundo capacidades expedicionárias, jurisdicionais e decisórias, essenciais para constituir umas Forças Armadas eficazes, que realizem operações no momento adequado, sirvam o conceito de acção estratégica (…) e permitam o cumprimento da missão estratégica (…)”.
Abordaremos as seguintes vantagens de âmbito operacional: (1) treino no mar; (2) conhecimento situacional marítimo (em inglês, Maritime Situational Awareness – MSA); (3) cooperação nacional; (4) gradação do uso da força; (5) continua ação do Estado no mar; (6) presença em todos os espaços marítimos nacionais e no alto mar; e (7) cooperação internacional.
3.2.1. Treino no mar
A componente naval do sistema de forças nacional é constituída por um conjunto de capacidades, que se alicerçam nos meios navais, mas vão muito além do material, propriamente dito. Segundo a doutrina da OTAN, cada capacidade tem que ser composta pelo seguinte conjunto de elementos funcionais: doutrina, organização, treino, material, liderança, pessoal, infra-estruturas e interoperabilidade. E neste quadro, assume particular relevância a necessidade de possuir pessoal devidamente treinado e conhecedor da doutrina aprovada, de forma a poder tirar o máximo partido do material posto à sua disposição. Ou seja, o treino assume um papel central na edificação de uma capacidade. E onde é que uma marinha treina? Essencialmente, no mar, pois se os navios não navegarem com frequência, o pessoal perde perícias e por conseguinte capacidade de intervenção. Dessa forma, é importante que os navios naveguem, pois ter navios sem perícias não serve de muito e pode, até, propiciar a ocorrência de acidentes…
Este aspecto é um daqueles em que mais se evidenciam as sinergias conseguidas graças ao Duplo Uso. De facto, quando um navio está numa missão de busca e salvamento marítimo ou está a exercer a autoridade do Estado no mar, está também a elevar os seus padrões de desempenho, o que se refletirá, naturalmente, na atuação militar do navio, orientada quer para a defesa nacional, quer para o apoio à política externa. Da mesma maneira, quando um navio efetua uma missão de índole militar ou de apoio à ação externa do Estado está, também, a incrementar perícias de atuação no mar, que lhe serão extremamente úteis quando tiver que efetuar missões de busca e salvamento ou de exercício da autoridade do Estado no mar.
Isto materializa o conceito de que os navios da Marinha, quando no mar, encontram-se preparados para desempenhar qualquer tipo de tarefa, atuando sempre no respeito pelos princípios da necessidade, da legalidade e da proporcionalidade. Este conceito de emprego corresponde a uma utilização econômica e eficiente dos navios, que permite desenvolver importantes sinergias em termos de adestramento no mar.
3.2.2. Conhecimento situacional marítimo
O conhecimento situacional marítimo tem como objetivo proporcionar um panorama de situação detalhado e fiável, através da integração e fusão de informação proveniente de uma multiplicidade de fontes e de sensores. Esse conhecimento do espaço de envolvimento visa facultar superioridade de informação, que permita, entre outras finalidades, identificar e localizar ameaças potenciais permitindo, em tempo, uma adequada tomada de decisão e uma pronta atuação. Pretende-se, pois, promover a detecção de ações ilícitas, através do entendimento profundo de todas as actividades ocorridas no espaço de envolvimento marítimo. O conceito subjacente pode resumir-se no seguinte: só conseguiremos detectar o que é ilícito, se conhecermos profundamente todas as atividades que se desenvolvem lícita e rotineiramente nos espaços marítimos.
Podem identificar-se duas características do modelo de Duplo Uso que contribuem para optimizar o conhecimento situacional marítimo. Por um lado, o fato de o Comandante de cada Zona Marítima ser, também, Chefe do respectivo Departamento Marítimo e, ainda, Comandante Regional da Polícia Marítima permite sinergias na obtenção, gestão, processamento, disseminação e partilha da informação, conferindo ao titular daqueles cargos o conhecimento integrado essencial à tomada de decisão. As sinergias assim conseguidas traduzem-se em superioridade de decisão, que é um elemento essencial na consolidação de todo o processo decisório relativo ao cumprimento das missões, tanto no âmbito da atuação militar, como no âmbito da atuação não militar.
Por outro lado, o fato de os militares da Marinha trabalharem em unidades navais que efectuam tarefas não militares, no âmbito do Duplo Uso, permite-lhes ganhar um conhecimento importante relativamente às atividades marítimas no seu todo, ao seu modus operandi e à legislação que lhes é aplicável. Isso faculta-lhes um melhor conhecimento situacional marítimo, essencial para o desempenho de missões no âmbito da defesa nacional, nas quais é essencial que os comandantes, aos vários níveis, disponham de todos os elementos necessários à tomada de decisão, visando o emprego da força militar.
3.2.3. Cooperação nacional
Os espaços marítimos nacionais ocupam uma área superior a 1,7 milhões de km2, em que o Estado tem os deveres de garantir a segurança, exercer a sua autoridade e assegurar uma presença equilibrada. Naturalmente, nenhum departamento público conseguirá, sozinho, dar resposta aos múltiplos desafios que se colocam no imenso mar português, o que implica uma conjugação de esforços de todos os departamentos competentes para a materialização da ação pública no mar.
Nessa linha, o modelo de Duplo Uso é um conceito inclusivo de aplicação do poder marítimo, em que a Marinha não tem, nem pretende ter, o exclusivo da ação do Estado no mar. Todavia, a amplitude de responsabilidades da Marinha (sem limitações geográficas), a disponibilidade de meios navais oceânicos (capazes de atuar nas zonas mais afastadas da costa) e, ainda, o saber e a experiência, fundados em séculos de operação no mar, facilitam a assunção, por parte da Marinha, de um papel de charneira na articulação dos variados departamentos do Estado com competências nos espaços marítimos. Assim, a Marinha tem adotado uma postura proativa de grande abertura na cooperação inter-departamental, que assenta no espírito colaborativo, na coerência de esforço, no respeito mútuo e na vontade de bem-fazer. Essa cooperação tem-se traduzido, sobretudo, em:
· disponibilização de plataformas da Marinha a outros departamentos do Estado com competências que se exercem no mar (normalmente, com agentes seus embarcados, que garantem, em razão da matéria, a especialização necessária ao serviço em causa), o que permite evitar duplicações desnecessárias de meios; e
· empenhamento coerente de meios nos espaços marítimos sob soberania ou jurisdição nacional, tendo em vista a sincronização de atividades de patrulha e outras.
A cooperação inter-departamental nacional reforçou-se, recentemente, com a publicação do Decreto Regulamentar n.º 86/07, de 12 de Dezembro, que veio regular a articulação entre autoridades de polícia e demais entidades com competências nos espaços marítimos, tendo criado, para o efeito, o Centro Nacional Coordenador Marítimo. Trata-se de um órgão coordenador da ação no mar, que utiliza as instalações e as facilidades disponíveis no Centro de Operações Marítimas, no Comando Naval, designadamente no que respeita a sistemas de comando, controlo e comunicações. Essa partilha de instalações e de facilidades é mais um exemplo das vantagens conseguidas com o modelo do Duplo Uso.
3.2.4. Gradação do uso da força
O fato de a Marinha possuir meios combatentes, vocacionados para a atuação militar, alarga o espectro de meios disponíveis no âmbito da ação não militar e, em concreto, do exercício da autoridade do Estado no mar, permitindo, se necessário e juridicamente possível, uma gradação do uso da força, respeitando sempre, também, o princípio da proporcionalidade no seu emprego. Assim, perante ameaças de âmbito securitário que requeiram uma intervenção mais musculada ou perante catástrofes cuja resposta exija capacidades mais robustas, a Marinha tem a possibilidade de empregar unidades operacionais vocacionadas para a ação militar, que ofereçam melhores garantias de eficácia. Podem-se elencar dois exemplos desta realidade.
O primeiro respeita às missões de combate ao narcotráfico, efetuadas em cooperação com a Polícia Judiciária (PJ) e que envolvem, normalmente, fragatas com helicóptero e lanchas de assalto rápido, bem como equipas de inserção do Corpo de Fuzileiros.
O segundo exemplo pôde constatar-se no recente aluvião na ilha da Madeira, em que o Chefe do Estado-Maior da Armada, na sua qualidade de Autoridade Marítima Nacional, empenhou, com sucesso provado, unidades operacionais mais vocacionadas para a ação militar (uma fragata com helicóptero embarcado, bem como equipes de fuzileiros e de mergulhadores) em apoio à proteção civil, complementando, assim, os meios destacados na Região ao dispor do Capitão do Porto, que é – ele próprio – agente de proteção civil.
3.2.5. Continua ação do Estado no mar
Os benefícios decorrentes da articulação operacional e da possibilidade de gradação do uso da força permitem tratar o mar como um continuum no que respeita à intervenção do Estado, desde o domínio público marítimo, em terra, até aos limites de jurisdição ou de responsabilidade de Portugal, podendo projetar-se inclusivamente sobre o alto mar.
Neste continuum, existem espaços onde o Estado exerce competências diferenciadas e possui obrigações distintas, mas isso não implica uma compartimentação do mar, já que este não tem fronteiras, nem linhas de demarcação. A compartimentação do mar, em zonas onde se privilegiaria a actuação de um ou de outro departamento do Estado, conduziria inevitavelmente a duplicações de estruturas e de meios, normalmente muito dispendiosas.
O reconhecimento da continuidade do mar, para efeitos do exercício da autoridade pública, vai, aliás, ao encontro das normas e disposições da Convenção das Nações Unidas sobre Direito do Mar, nomeadamente de conceitos como o de perseguição contínua.
A perseguição contínua é uma perseguição legítima efetuada por um navio de guerra do Estado costeiro (ou por um meio equiparado) a um navio estrangeiro, na sequência da violação (ou de fundadas suspeitas de violação) de uma lei do Estado perseguidor, numa zona sob sua soberania ou jurisdição: águas interiores, mar territorial, zona contígua, Zona Econômica Exclusiva (ZEE) e plataforma continental. A razão de ser deste conceito é permitir uma administração efetiva da justiça, motivo pelo qual não seria razoável a perseguição terminar abruptamente no momento em que fosse alcançado o limite exterior das águas sob jurisdição nacional. Naturalmente, uma perseguição contínua apenas poderá ser cabalmente efetuada com meios de elevada capacidade de sustentação no mar, que só a Marinha possui.
3.2.6. Presença em todos os espaços marítimos nacionais e no alto mar
De acordo com a legislação nacional, a segurança interna “desenvolve-se em todo o espaço sujeito aos poderes de jurisdição do Estado Português”. Conforme mostrou Paulo Neves Coelho, isso significa que a segurança interna “não se confina à parte emersa do território, mas abrange, de igual modo e conjuntamente, as áreas correspondentes ao mar territorial e à ZEE”, a que podemos acrescentar a plataforma continental, que se estende para além das 200 milhas de distância contadas a partir das linha de base, estando em curso o processo de fixação dos seus limites.
Perante a necessidade de fazer cumprir a lei nos espaços acima referidos, suscitam-se várias perguntas: Quem tem capacidade de presença nestes espaços? Quem pode exercer a segurança interna e, concretamente, a segurança marítima nestes espaços?
Atualmente, apenas a Marinha e a Força Aérea, sendo que esta última tem limitações na capacidade de atuação, decorrentes da dificuldade em manter uma presença sustentada. Logo, poderemos concluir que, sem uma Marinha de Duplo Uso, a capacidade do Estado para exercer a sua autoridade e garantir a segurança em todos os espaços sob jurisdição nacional ficaria seriamente limitada.
Pode referir-se, como exemplo, o caso do navio “Borndiep”, o célebre “barco do aborto”. Em 2004 (altura em que estava acesa, em Portugal, a discussão sobre a despenalização da interrupção voluntária da gravidez), esse navio propunha-se atracar num porto português, admitir a bordo cidadãs portuguesas interessadas em efetuar um aborto, conduzi-las fora do mar territorial e aí, fora da alçada da legislação portuguesa, proceder à pretendida interrupção da gravidez. O Estado português, tendo decidido vedar a entrada do navio no mar territorial por fraude à lei e abuso de direito, empregou a corveta “Baptista de Andrade” para exercer a sua autoridade nos espaços marítimos sob soberania nacional. De fato, apenas unidades navais da Marinha garantiam ao Estado português a capacidade para exercer a sua autoridade, independentemente das condições meteo-oceanográficas que se pudessem fazer sentir.
Além dos seus espaços marítimos jurisdicionais, os Estados costeiros também possuem legitimidade para atuar no alto mar, ao abrigo do direito internacional marítimo e de diversos acordos de cooperação internacional. No alto mar, a Convenção das Nações Unidas sobre Direito do Mar legitima o direito de visita a navios que se dediquem à pirataria ou ao tráfico de escravos, a navios sem nacionalidade e a navios utilizados para efetuar transmissões não autorizadas, mas esse direito de visita só pode ser exercido por navios de guerra. De acordo com a definição contida na referida convenção, considera-se navio de guerra “qualquer navio pertencente às Forças Armadas de um Estado, que ostente sinais exteriores próprios de navios de guerra da sua nacionalidade, sob o comando de um oficial devidamente designado pelo Estado cujo nome figure na correspondente lista de oficiais ou seu equivalente e cuja tripulação esteja submetida às regras da disciplina militar”. Ora não existe, ao serviço do Estado Português, nem se afigura que venha a existir nos próximos tempos, qualquer navio ou embarcação que preencha estes requisitos para além dos navios da Marinha.
A capacidade única de presença sustentada no mar e a legitimidade para atuar à luz do direito internacional levaram o legislador a explicitar, na Lei n.º 34/2006, de 28 de Julho, que “o exercício da autoridade do Estado português nas zonas marítimas sob a sua soberania ou jurisdição e no alto mar (…) compete às entidades, aos serviços e organismos que exercem o poder de autoridade marítima no quadro do Sistema da Autoridade Marítima, à Marinha e à Força Aérea, no âmbito das respectivas competências”.
3.2.7. Cooperação internacional
De acordo com Fernando de Sousa, no seu Dicionário de Relações Internacionais, “cooperar é agir conjuntamente com um parceiro, ou interagir em vista à realização de um fim comum. O sucesso na obtenção deste objetivo depende de determinadas condições que a cooperação implica, tais como um consenso em relação aos fins a atingir, a existência de interesses comuns, a confiança recíproca dos parceiros, a elaboração em comum de um conjunto de regras, um acordo sobre o modo de coordenação das ações e a participação ativa de todos os elementos, entre outras premissas”. Isto significa que cooperar é uma relação biunívoca que implica atender aos interesses próprios e aos do parceiro, procurando prossegui-los numa base de confiança e respeito mútuos.
A Cooperação Portuguesa é regulada pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 196/2005, de 22 de Dezembro, que aprovou «Uma Visão Estratégica para a Cooperação Portuguesa». Esse documento aponta, como um dos princípios orientadores, o “reforço da segurança humana, em particular em «Estados frágeis» ou em situações de pós-conflito” e identifica os países africanos de língua oficial portuguesa e Timor-Leste como espaços de intervenção prioritária da cooperação portuguesa.
Neste âmbito, assume papel de relevo a Cooperação Técnico-Militar (que, na prática, tem um carácter essencialmente técnico), como instrumento de ação externa do Estado junto desses países. A coordenação das respectivas atividades está cometida à Direção-Geral de Política de Defesa Nacional do Ministério da Defesa Nacional e a sua concretização compete aos ramos das Forças Armadas (em articulação com a Divisão de Planeamento Estratégico Militar, do Estado-Maior-General das Forças Armadas).
Retomemos então a necessidade de atender aos interesses mútuos, para referir que, nas atividades de Cooperação Técnico-Militar em que a Marinha tem estado envolvida, os países parceiros têm procurado, não tanto a cooperação militar, mas sobretudo apoio e aconselhamento no âmbito alargado dos assuntos do mar, com ênfase em matérias ligadas à segurança e à proteção marítima. De fato, as capacidades navais pretendidas não são capacidades puramente combatentes, mas sim, sobretudo, capacidades mais próximas das de uma guarda costeira, que lhes permitam o exercício da autoridade do Estado nas suas águas, muitas vezes alvo de atividades ilícitas, como a pesca ilegal, entre outras. Desta forma, o conceito de Duplo Uso vocaciona sobremaneira a Marinha para ajudar estes países a edificarem as capacidades marítimas que pretendem e que, de fato, lhes fazem falta.
4. Conclusão
A Marinha combina as capacidades operacionais das suas unidades navais e de mergulhadores, complementadas pela componente anfíbia dos seus fuzileiros (com meios de transporte e de desembarque), às capacidades proporcionadas pelo Serviço de Busca e Salvamento Marítimo, pelos órgãos e serviços da Autoridade Marítima Nacional, pelo Instituto Hidrográfico e, ainda, pelos Órgãos de Natureza Cultural, num conceito designado por Marinha de Duplo Uso.
Esta convergência revela potencialidades bastante significativas, quer ao nível das sinergias que é possível encontrar, com as consequentes vantagens econômicas, quer no que respeita às vantagens operacionais que permite. O modelo de Duplo Uso revela-se, assim, particularmente adequado ao ambiente estratégico mundial actual, onde as fronteiras entre Defesa Nacional e Segurança Interna se encontram cada vez mais esbatidas e tênues, exigindo cada vez mais cooperação, articulação ou, mesmo, integração entre capacidades militares e policiais, sobretudo quando aplicadas ao continuo que é o mar.
Não são apenas países da dimensão de Portugal que abordam a utilização do poder marítimo conforme descrevemos. Também nos EUA se sentiu esta necessidade de aprofundamento da cooperação entre departamentos do Estado com responsabilidades afins, como única forma de potenciar os recursos existentes face às crescentes solicitações. A US Navy assumiu este desígnio estratégico, tomando a iniciativa, junto do US Marine Corps e da US Coast Guard, de promover o estabelecimento de políticas concordantes e articuladas, com benefícios mútuos. Esta aproximação pôde ser constatada nas estratégias marítimas da década de 1990, conhecidas como a série “From the sea” e que foram subscritas em conjunto pela Marinha e pelos Fuzileiros, e sobretudo na estratégia marítima mais recente, “A Cooperative Strategy for 21st Century Seapower” (2007). Esta aumentou o leque de missões do poder marítimo americano (passando a incluir a segurança marítima e a assistência humanitária) e alargou, também, o número de subscritores, ao passar a incluir a Guarda Costeira – ambos fatos inéditos.
No caso nacional, importa relevar o fato de a Marinha Portuguesa integrar harmoniosamente – por imperativo de racionalidade no uso dos recursos nacionais e por tradição secular – todas essas valências que, nos EUA, estão dispersas em três departamentos marítimos, agora em aproximação esforçada, mas ainda assim distintos entre si. Representando um caso paradigmático de aliança entre a tradição e a modernidade, a Marinha Portuguesa poderá pois considerar-se como uma das primeiras marinhas pós-modernas, tal como descritas por Geoffrey Till. Este alinhamento com a modernidade, no que concerne à utilização do poder marítimo, significa, no nosso entendimento, que as melhorias e desenvolvimentos que venham a ser possíveis realizar no âmbito da Segurança e Defesa nos espaços marítimos nacionais deverão sempre fundar-se no modelo de Marinha de Duplo Uso, apostando sobretudo no seu refinamento e aprofundamento.
Fonte: Jornal Defesa & Relações Internacionais
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