A revolta árabe de 2011 é incessante. Os protestos continuam em lugares tão improváveis como Bahrein. No Valentine’s Day [Dia dos Namorados no hemisfério norte ocidental], uma marcha de protesto em Manama não tinha amor para dar à família real al-Khalifah. Queria enviá-los sua mensagem: “Nossa exigência é uma constituição escrita pelo povo”, cantavam os manifestantes. O líder da oposição, Abdul Wahab Hussain disse à imprensa: “O número de policiais do batalhão de choque é imenso, mas nós mostramos que o uso da violência contra nós só nos torna mais fortes”. A polícia usou balas de borracha até em pequenos grupos. “Isso é só o começo”, disse Hussain, depois de ter sido atingido nas ruas.
Essas manifestações só parecem improváveis porque a onda de protestos que irrompeu no fim dos anos 50 e chegou aos 70 foi interrompida no início dos anos 80. Encorajada pela derrubada do monarca no Egito com o golpe liderado por Gamal Abdel Nasser, as pessoas comuns ao redor do mundo árabe queriam suas próprias revoltas. O Iraque e o Líbano seguiram a mesma linha. Na península, o povo queria o que Fred Halliday chamou de “Arábia sem sultões”. Os militantes da Frente de Libertação do Golfo Árabe Ocupado emergiram da batalha de Dhofar (Oman). Queriam levar adiante sua campanha à toda a península. Em Bahrein, o braço mais tímido da batalha foi a Frente Popular. Não durou muito. Com o declínio do Nasserismo nos anos 70, chegou um novo momento para esse republicanismo árabe a partir da Revolução Iraniana de 1979. A Frente Islâmica de Libertação do Bahrein tentou dar um golpe em 1981. Eles tinham a mesma inspiração, mas não a organização. Esse arquipélago árabe não pôde traçar o caminho do Iêmen, onde uma revolução levada a cabo por uma organização marxista tomou o poder em 1967.
Os esforços dessas forças revitalizadas nos anos 90 encontraram forte resistência do regime al-Khalifah. Mas o seu novo dirigente, Hamad (graduado na Universidade Cambridge), foi esperto. Ele conhecia uma coisa ou outra de hegemonia, mas não o suficiente para chocar as lideranças islâmicas. Rapidamente convocou um parlamento eleito, permitiu que as mulheres votassem e libertou alguns prisioneiros políticos. Não foi o bastante para satisfazer Washington e as companhias de petróleo. Nada de estabilidade que pareça democracia.
O vírus egípcio de 2011, no entanto, supera a democracia de fachada de Hamad. Os protestos estão de volta.
O contágio não é apenas político. É também, talvez decisivamente, econômico. A riqueza de Bahrein depende de seu petróleo. O dinheiro do petróleo induz à especulação imobiliária (o modelo Dubai). Os beneficiários desse processo tem sido a família real e seus comparsas. O povo, de maioria xiita, está furioso porque quase toda sua riqueza não tem destinação social. Com medo da população xiita, o monarca importou 50 mil trabalhadores para reconfigurar a paisagem demográfica. Essa política bahranizista serviu como cortina de fumaça para pôr os trabalhadores locais contra os estrangeiros. Não deu certo. Para piorar, um dos resultados da crise de crédito desde 2007 tem sido a proposta do governo de Bahrein de cortar subsídios de alimentos e combustíveis. Por causa da ira do povo essa proposta já foi retirada. A juventude, na Tunísia, no Egito e no Iêmen é muito parecida com a juventude da Grã Bretanha, da Irlanda, da França, Itália – todos estão nas ruas contra a austeridade. A população jovem está no front das revoltas porque são quem mais tem a perder com os cortes e com as políticas que hipotecam seus futuros. Essas são também, portanto, convulsões contra os excessivamente remunerados agentes (banqueiros) das superpotências (a elite de Davos e suas instituições).
Enquanto isso, a quinta frota dos EUA tem uma base em Bahrein. O vice-almirante Mark Fox deve delegar poder aos vagabundos da EA-6B para ações de emergência.
As informações sobre a Revolta Árabe confundem. Há aqueles que se refugiam no aspecto trans-histórico, vendo nela um exemplo da luta pela dignidade humana. Os árabes estavam com raiva. Não podiam mais aguentar. Isso tudo é muito bom, mas é generalidade demais. Por que os protestos acontecem agora, por que desta maneira, por que essas exigências?
Há outros que vão noutra direção, longe do aspecto trans-histórico, para uma circunstância específica. Eles pensam que explicações amplas são reducionistas, de modo que se refugiam no contingente: este evento (a imolação) leva a que este evento (protesto), que leva a um outro evento (a ocupação da Praça Tahrir), e então ao grande evento (Mubarak fugir para a beira do mar vermelho). A história se torna uma série de eventos que mede as mudanças sem ir além da superfície.
Essas tentativas de entender a Revolta Árabe levam a duas direções: elas confundem essas revoltas com revolução e tendem a vê-las como a revolução de 2011 contra a de 1952, liderada por Nasser. Por mais inspiradoras que essas revoltas atuais sejam, elas são parte de um longo processo no mundo Árabe que remonta ao século XIX. Esse longo processo é a Revolução Árabe, cuja luta é por uma transformação total das estruturas de dominação que constrangem o futuro árabe. Um episódio desta longa Revolução Árabe é a revolta de Nasser em 1952. Ela foi derrotada no fim dos anos 60, e retornou no Egito (e no mundo árabe) contra sua subordinação histórica. Outro episódio é a onda atual. A longa Revolução Árabe põe duas questões que permanecem sem resposta. Elas podem lançar as bases para entender o que está em curso nas terras árabes. A primeira questão é a sua política; a segunda, sua economia.
Política
Quando os árabes comandarão a si mesmos, e não serão comandados por ditaduras de partidos únicos e monarcas sustentados por mercados de ações e capital externo? Não há muito tempo a França de Sarkozy e os EUA de Clinton rendiam homenagens aos seus amigos “democráticos” Ben Ali e Mubarak. Para superar a obscenidade só Obama se reunindo com os sauditas para debater a transição democrática no Egito, o que é como perguntar a um vegetariano como se faz uma costela minga.
Em 1953, o velho rei Farouk içou as velas em seu iate al-Mahrusa protegido pela marinha egípcia, e acenou para quem considerava seus inferiores: Nasser, filho de um carteiro, e Sadat, filho de um pequeno fazendeiro. O golpe que eles tentaram visava a romper de uma vez com a monarquia e com a dominação imperial. A nacionalização da infraestrutura econômica veio junto à reforma agrária. Mas foram mal concebidas e eles não conseguiram domar o poder da burguesia egípcia (cujo vício pelo dinheiro fácil continuou, com três quartos de novos investimentos inflacionando uma bolha imobiliária). A economia sofreu uma sangria para suportar a ampliação do aparato militar, majoritariamente voltado para combater os armamentos estadunidenses dos israelenses. A derrota do Egito na guerra de 1967 levou Nasser a renunciar em 10 de junho. Milhares de pessoas tomaram as ruas do Cairo, desta vez para pedir a Nasser que voltasse ao gabinete, coisa que ele fez, embora muito enfraquecido.
A abertura democrática de 1952, no entanto, não conseguiu emergir. Oficiais militares, embora progressistas, relutaram em tomar as rédeas do poder. O aparato de segurança da Fraternidade Muçulmana certamente não, mas é ferozmente contra os comunistas. Nasser não construiu uma cultura política independente forte. Seu ‘socialismo’, como Stavrianos anotou, “foi um socialismo por decreto presidencial, implementado pelo exército e pela polícia. Não houve iniciativa ou participação enraizada da sociedade civil”. Por essa razão, quando Sadat moveu o país para a direita, nos anos 70, quase não havia oposição a ele. O nasserismo depois de Nasser era um vazio como o peronismo depois de Perón.
A revolta atual é contra o regime levado a cabo por Sadat e desenvolvido por Mubarak. É um estado de segurança nacional sem pretensões democráticas. Em 1977 Sadat identificou o nasserismo com “campos de detenção, custódia e sequestro e um sistema de única opinião e um só partido”. Sadat permitiu que três tipos de forças emergissem, então rapidamente os enfraqueceu (caso do de esquerda Partido do Grupo Progressista Nacional), cooptou (o Partido Socialista Árabe e o Partido Liberal Socialista) ou tolerou a existência (Irmandade Muçulmana). Astutamente, Sadat pôs em ação o que acusava Nasser de fazer. Foi sob Sadat e Mubarak (com Omar Suleiman a reboque) que os campos de detenção e as câmaras de tortura floresceram.
Na Praça Tahrir, Ahmed Abdel Moneim, de 22 anos, disse: “Levou muito tempo, depois da Revolução Francesa, para o povo vir a ter seus direitos efetivados”. Esta luta em 2010 consiste em repelir o estado de segurança nacional. Essa é a exigência básica para retomar o slogan da Revolução Francesa. A dinâmica de que Ahmed quer tomar parte é a do nasserismo, mas desta vez sem os militares. Esta é uma lição da história.
A outra lição vem de Nadine Naber, que nos lembra que a mulher forma parte crucial desta onda de revolta, como o fez nas anteriores e, mesmo assim, quando as revoltas são bem sucedidas as mulheres são postas de lado, como agentes políticas secundárias. “Quais são as possibilidades de uma democratização de direitos no Egito”, pergunta Naber, “em que a participação das mulheres, os direitos das mulheres, o direito de família e os direitos de organização, de protesto e de liberdade de expressão sejam centrais?” Naber repete uma questão levantada em 1957 por Karima El-Said, a vice-ministra de educação da República Árabe Unida: “Em países afro-asiáticos onde o povo ainda sofre o jugo do colonialismo, as mulheres participam ativamente na luta por uma independência nacional completa. Elas estão convencidas de que este é o primeiro passo para sua emancipação e as qualificará para ocupar um verdadeiro lugar na sociedade”. Esta é a segunda lição da história, que a democracia que emerja capacite as pessoas.
Economia
A segunda questão sem resposta da longa Revolução Árabe tem a ver com o pão e com a dignidade do trabalho. Quando as economias da região árabe serão capazes de sustentar suas populações, antes de engordarem instituições financeiras no mundo Atlântico, e de ofereceram fundos maciços e seguros para ditadores e monarcas? Amaldiçoado pelo petróleo, o mundo árabe tem visto pouca diversificação econômica e quase não consegue usar a riqueza do petróleo para fomentar e equilibrar o desenvolvimento social para o povo. Em vez disso, o dinheiro do petróleo migra para o Norte, para providenciar crédito a consumidores superaquecidos nos EUA e alimentarem os bancos de vastos fundos que de outra forma não acumulariam, com uma população que parou de poupar (há muito que os estadunidenses economizam 1% de seus contracheques, um quadro compreensível, dada a estagnação de salários desde 1973). O dinheiro do petróleo também foi para o boom imobiliário no Golfo, e para as mesas de cristais baccarat e seguranças, de Mônaco (a Las Vegas da Europa, que tem outro monarca decrépito, Albert II, como representante).
Como parte da des-nasserização do Egito, Sadat abriu a economia (infatah) para o capital externo. A nacionalização e os subsídios acabaram, e as zonas de livre comércio foram criadas em fevereiro de 1974. Sadat queria uma “transfusão de sangue” para a economia egípcia, e então os bancos do Atlântico começaram a tirar litros de sangue da sofrida classe trabalhadora egípcia. Devolveram-nos com lojas de bebidas e boates (o centro dos ataques de janeiro de 1977 no Cairo). A desigualdade floresceu no Egito e as políticas neoliberais produziram uma alta burguesia com mais investimento em Londres do que na Alexandria. Em 2008, algo como 40% da população vivia com menos de 2 dólares por dia. Em outubro de 2010, o judiciário ordenou ao governo que aumentasse o salário mínimo de 70 dólares por mês para 207. Dado que Sadat e Mubarak inviabilizaram a tentativa de criar uma economia diversa, o Egito agora depende de renda externa para sua sobrevivência (remessas de trabalhadores emigrados, pedágios do Canal de Suez, exportação de gás e petróleo, divisas oriundas do turismo e pagamento pela privatização, entre outros). Parte substancial desses recursos foi desviada por Mubarak aos seus comparsas, nos bancos suíços. Não há democracia para sua economia. O tirano aqui não é somente Mubarak, mas o FMI, o Banco Mundial, os bancos, os mercados de ações, as corporações multinacionais.
Greves de trabalhadores em todo o Egito, protestos diante do palácio presidencial, protestos nos mercados de alimentos – esta é a face da revolta em curso. Os egípcios parecem ter clareza de que a derrubada de Mubarak também significa o fim da libertação do neoliberalismo que tomou conta do país nos anos 70. Eles querem expandir a mobilização social para dirigirem melhor a entrada de recursos que leve o país a ampliar sua atividade econômica.
Ao longo dos últimos vinte anos, vimos dois tipos de revoltas. As primeiras, de tipo das do leste europeu, por exemplo, foram revoltas contra a opressão do estado da era soviética. Indiferente à destruição das promessas desse socialismo, o povo refugiou-se no glamour da economia de mercado. Foram revoltas pelo mercado. Duas décadas depois, o europeu do leste imagina que se tornou um pesadelo horrendo. O segundo tipo são essas revoltas no mundo árabe hoje, mas também a revolta do povo das Filipinas contra Marcos e do povo da Indonésia contra Suharto, foram revoltas contra o mercado. Revoltas massivas que quiseram aumento salarial. Começaram como revoltas contra autocracias longevas (Ben Ali, Mubarak, Marcos, Suharto) e desembocaram numa luta por uma ordem social e econômica diferente.
Para a região árabe, esses eventos de 2011 não são a inauguração de uma nova história, mas a continuação de uma luta sem fim, que tem 100 anos. Algumas pessoas já caíram em desânimo, menosprezando as quedas de Ben Ali e Mubarak. Esses acontecimentos fortalecem a confiança do povo e põem as lutas em movimento. A velha ordem pode permanecer, ainda, mas se sabe que seu tempo está acabando. No filme Gladiador (Ridley Scott, 2000), os bárbaros germânicos arrancam a cabeça de um soldado romano e a jogam na frente das linhas de batalha romanas. Um dos generais romanos diz: “As pessoas deveriam saber quando são conquistadas”. Ele quis dizer os bárbaros. Os ditadores do mundo árabe, nossos bárbaros, podem arremessar algumas cabeças, ainda, diante do avanço do povo. Mas já devem saber que estão derrotados. É simplesmente uma questão de tempo: 100 anos ou 10.
Por: Vijay Prashad é o titular da cadeira George e Martha Kellner de História da Ásia do Sul e diretor de estudos internacionais no Trinity Colleg, Hartford, TC. Seu livro mais recente, The Darker Nations: A People's History of the Third World, [As nações mais escuras: uma história do povo do Terceiro Mundo] ganhou o prêmio Muzaffar Ahmad de melhor livro de 2009.
Fonte: Carta Maior
Essas manifestações só parecem improváveis porque a onda de protestos que irrompeu no fim dos anos 50 e chegou aos 70 foi interrompida no início dos anos 80. Encorajada pela derrubada do monarca no Egito com o golpe liderado por Gamal Abdel Nasser, as pessoas comuns ao redor do mundo árabe queriam suas próprias revoltas. O Iraque e o Líbano seguiram a mesma linha. Na península, o povo queria o que Fred Halliday chamou de “Arábia sem sultões”. Os militantes da Frente de Libertação do Golfo Árabe Ocupado emergiram da batalha de Dhofar (Oman). Queriam levar adiante sua campanha à toda a península. Em Bahrein, o braço mais tímido da batalha foi a Frente Popular. Não durou muito. Com o declínio do Nasserismo nos anos 70, chegou um novo momento para esse republicanismo árabe a partir da Revolução Iraniana de 1979. A Frente Islâmica de Libertação do Bahrein tentou dar um golpe em 1981. Eles tinham a mesma inspiração, mas não a organização. Esse arquipélago árabe não pôde traçar o caminho do Iêmen, onde uma revolução levada a cabo por uma organização marxista tomou o poder em 1967.
Os esforços dessas forças revitalizadas nos anos 90 encontraram forte resistência do regime al-Khalifah. Mas o seu novo dirigente, Hamad (graduado na Universidade Cambridge), foi esperto. Ele conhecia uma coisa ou outra de hegemonia, mas não o suficiente para chocar as lideranças islâmicas. Rapidamente convocou um parlamento eleito, permitiu que as mulheres votassem e libertou alguns prisioneiros políticos. Não foi o bastante para satisfazer Washington e as companhias de petróleo. Nada de estabilidade que pareça democracia.
O vírus egípcio de 2011, no entanto, supera a democracia de fachada de Hamad. Os protestos estão de volta.
O contágio não é apenas político. É também, talvez decisivamente, econômico. A riqueza de Bahrein depende de seu petróleo. O dinheiro do petróleo induz à especulação imobiliária (o modelo Dubai). Os beneficiários desse processo tem sido a família real e seus comparsas. O povo, de maioria xiita, está furioso porque quase toda sua riqueza não tem destinação social. Com medo da população xiita, o monarca importou 50 mil trabalhadores para reconfigurar a paisagem demográfica. Essa política bahranizista serviu como cortina de fumaça para pôr os trabalhadores locais contra os estrangeiros. Não deu certo. Para piorar, um dos resultados da crise de crédito desde 2007 tem sido a proposta do governo de Bahrein de cortar subsídios de alimentos e combustíveis. Por causa da ira do povo essa proposta já foi retirada. A juventude, na Tunísia, no Egito e no Iêmen é muito parecida com a juventude da Grã Bretanha, da Irlanda, da França, Itália – todos estão nas ruas contra a austeridade. A população jovem está no front das revoltas porque são quem mais tem a perder com os cortes e com as políticas que hipotecam seus futuros. Essas são também, portanto, convulsões contra os excessivamente remunerados agentes (banqueiros) das superpotências (a elite de Davos e suas instituições).
Enquanto isso, a quinta frota dos EUA tem uma base em Bahrein. O vice-almirante Mark Fox deve delegar poder aos vagabundos da EA-6B para ações de emergência.
As informações sobre a Revolta Árabe confundem. Há aqueles que se refugiam no aspecto trans-histórico, vendo nela um exemplo da luta pela dignidade humana. Os árabes estavam com raiva. Não podiam mais aguentar. Isso tudo é muito bom, mas é generalidade demais. Por que os protestos acontecem agora, por que desta maneira, por que essas exigências?
Há outros que vão noutra direção, longe do aspecto trans-histórico, para uma circunstância específica. Eles pensam que explicações amplas são reducionistas, de modo que se refugiam no contingente: este evento (a imolação) leva a que este evento (protesto), que leva a um outro evento (a ocupação da Praça Tahrir), e então ao grande evento (Mubarak fugir para a beira do mar vermelho). A história se torna uma série de eventos que mede as mudanças sem ir além da superfície.
Essas tentativas de entender a Revolta Árabe levam a duas direções: elas confundem essas revoltas com revolução e tendem a vê-las como a revolução de 2011 contra a de 1952, liderada por Nasser. Por mais inspiradoras que essas revoltas atuais sejam, elas são parte de um longo processo no mundo Árabe que remonta ao século XIX. Esse longo processo é a Revolução Árabe, cuja luta é por uma transformação total das estruturas de dominação que constrangem o futuro árabe. Um episódio desta longa Revolução Árabe é a revolta de Nasser em 1952. Ela foi derrotada no fim dos anos 60, e retornou no Egito (e no mundo árabe) contra sua subordinação histórica. Outro episódio é a onda atual. A longa Revolução Árabe põe duas questões que permanecem sem resposta. Elas podem lançar as bases para entender o que está em curso nas terras árabes. A primeira questão é a sua política; a segunda, sua economia.
Política
Quando os árabes comandarão a si mesmos, e não serão comandados por ditaduras de partidos únicos e monarcas sustentados por mercados de ações e capital externo? Não há muito tempo a França de Sarkozy e os EUA de Clinton rendiam homenagens aos seus amigos “democráticos” Ben Ali e Mubarak. Para superar a obscenidade só Obama se reunindo com os sauditas para debater a transição democrática no Egito, o que é como perguntar a um vegetariano como se faz uma costela minga.
Em 1953, o velho rei Farouk içou as velas em seu iate al-Mahrusa protegido pela marinha egípcia, e acenou para quem considerava seus inferiores: Nasser, filho de um carteiro, e Sadat, filho de um pequeno fazendeiro. O golpe que eles tentaram visava a romper de uma vez com a monarquia e com a dominação imperial. A nacionalização da infraestrutura econômica veio junto à reforma agrária. Mas foram mal concebidas e eles não conseguiram domar o poder da burguesia egípcia (cujo vício pelo dinheiro fácil continuou, com três quartos de novos investimentos inflacionando uma bolha imobiliária). A economia sofreu uma sangria para suportar a ampliação do aparato militar, majoritariamente voltado para combater os armamentos estadunidenses dos israelenses. A derrota do Egito na guerra de 1967 levou Nasser a renunciar em 10 de junho. Milhares de pessoas tomaram as ruas do Cairo, desta vez para pedir a Nasser que voltasse ao gabinete, coisa que ele fez, embora muito enfraquecido.
A abertura democrática de 1952, no entanto, não conseguiu emergir. Oficiais militares, embora progressistas, relutaram em tomar as rédeas do poder. O aparato de segurança da Fraternidade Muçulmana certamente não, mas é ferozmente contra os comunistas. Nasser não construiu uma cultura política independente forte. Seu ‘socialismo’, como Stavrianos anotou, “foi um socialismo por decreto presidencial, implementado pelo exército e pela polícia. Não houve iniciativa ou participação enraizada da sociedade civil”. Por essa razão, quando Sadat moveu o país para a direita, nos anos 70, quase não havia oposição a ele. O nasserismo depois de Nasser era um vazio como o peronismo depois de Perón.
A revolta atual é contra o regime levado a cabo por Sadat e desenvolvido por Mubarak. É um estado de segurança nacional sem pretensões democráticas. Em 1977 Sadat identificou o nasserismo com “campos de detenção, custódia e sequestro e um sistema de única opinião e um só partido”. Sadat permitiu que três tipos de forças emergissem, então rapidamente os enfraqueceu (caso do de esquerda Partido do Grupo Progressista Nacional), cooptou (o Partido Socialista Árabe e o Partido Liberal Socialista) ou tolerou a existência (Irmandade Muçulmana). Astutamente, Sadat pôs em ação o que acusava Nasser de fazer. Foi sob Sadat e Mubarak (com Omar Suleiman a reboque) que os campos de detenção e as câmaras de tortura floresceram.
Na Praça Tahrir, Ahmed Abdel Moneim, de 22 anos, disse: “Levou muito tempo, depois da Revolução Francesa, para o povo vir a ter seus direitos efetivados”. Esta luta em 2010 consiste em repelir o estado de segurança nacional. Essa é a exigência básica para retomar o slogan da Revolução Francesa. A dinâmica de que Ahmed quer tomar parte é a do nasserismo, mas desta vez sem os militares. Esta é uma lição da história.
A outra lição vem de Nadine Naber, que nos lembra que a mulher forma parte crucial desta onda de revolta, como o fez nas anteriores e, mesmo assim, quando as revoltas são bem sucedidas as mulheres são postas de lado, como agentes políticas secundárias. “Quais são as possibilidades de uma democratização de direitos no Egito”, pergunta Naber, “em que a participação das mulheres, os direitos das mulheres, o direito de família e os direitos de organização, de protesto e de liberdade de expressão sejam centrais?” Naber repete uma questão levantada em 1957 por Karima El-Said, a vice-ministra de educação da República Árabe Unida: “Em países afro-asiáticos onde o povo ainda sofre o jugo do colonialismo, as mulheres participam ativamente na luta por uma independência nacional completa. Elas estão convencidas de que este é o primeiro passo para sua emancipação e as qualificará para ocupar um verdadeiro lugar na sociedade”. Esta é a segunda lição da história, que a democracia que emerja capacite as pessoas.
Economia
A segunda questão sem resposta da longa Revolução Árabe tem a ver com o pão e com a dignidade do trabalho. Quando as economias da região árabe serão capazes de sustentar suas populações, antes de engordarem instituições financeiras no mundo Atlântico, e de ofereceram fundos maciços e seguros para ditadores e monarcas? Amaldiçoado pelo petróleo, o mundo árabe tem visto pouca diversificação econômica e quase não consegue usar a riqueza do petróleo para fomentar e equilibrar o desenvolvimento social para o povo. Em vez disso, o dinheiro do petróleo migra para o Norte, para providenciar crédito a consumidores superaquecidos nos EUA e alimentarem os bancos de vastos fundos que de outra forma não acumulariam, com uma população que parou de poupar (há muito que os estadunidenses economizam 1% de seus contracheques, um quadro compreensível, dada a estagnação de salários desde 1973). O dinheiro do petróleo também foi para o boom imobiliário no Golfo, e para as mesas de cristais baccarat e seguranças, de Mônaco (a Las Vegas da Europa, que tem outro monarca decrépito, Albert II, como representante).
Como parte da des-nasserização do Egito, Sadat abriu a economia (infatah) para o capital externo. A nacionalização e os subsídios acabaram, e as zonas de livre comércio foram criadas em fevereiro de 1974. Sadat queria uma “transfusão de sangue” para a economia egípcia, e então os bancos do Atlântico começaram a tirar litros de sangue da sofrida classe trabalhadora egípcia. Devolveram-nos com lojas de bebidas e boates (o centro dos ataques de janeiro de 1977 no Cairo). A desigualdade floresceu no Egito e as políticas neoliberais produziram uma alta burguesia com mais investimento em Londres do que na Alexandria. Em 2008, algo como 40% da população vivia com menos de 2 dólares por dia. Em outubro de 2010, o judiciário ordenou ao governo que aumentasse o salário mínimo de 70 dólares por mês para 207. Dado que Sadat e Mubarak inviabilizaram a tentativa de criar uma economia diversa, o Egito agora depende de renda externa para sua sobrevivência (remessas de trabalhadores emigrados, pedágios do Canal de Suez, exportação de gás e petróleo, divisas oriundas do turismo e pagamento pela privatização, entre outros). Parte substancial desses recursos foi desviada por Mubarak aos seus comparsas, nos bancos suíços. Não há democracia para sua economia. O tirano aqui não é somente Mubarak, mas o FMI, o Banco Mundial, os bancos, os mercados de ações, as corporações multinacionais.
Greves de trabalhadores em todo o Egito, protestos diante do palácio presidencial, protestos nos mercados de alimentos – esta é a face da revolta em curso. Os egípcios parecem ter clareza de que a derrubada de Mubarak também significa o fim da libertação do neoliberalismo que tomou conta do país nos anos 70. Eles querem expandir a mobilização social para dirigirem melhor a entrada de recursos que leve o país a ampliar sua atividade econômica.
Ao longo dos últimos vinte anos, vimos dois tipos de revoltas. As primeiras, de tipo das do leste europeu, por exemplo, foram revoltas contra a opressão do estado da era soviética. Indiferente à destruição das promessas desse socialismo, o povo refugiou-se no glamour da economia de mercado. Foram revoltas pelo mercado. Duas décadas depois, o europeu do leste imagina que se tornou um pesadelo horrendo. O segundo tipo são essas revoltas no mundo árabe hoje, mas também a revolta do povo das Filipinas contra Marcos e do povo da Indonésia contra Suharto, foram revoltas contra o mercado. Revoltas massivas que quiseram aumento salarial. Começaram como revoltas contra autocracias longevas (Ben Ali, Mubarak, Marcos, Suharto) e desembocaram numa luta por uma ordem social e econômica diferente.
Para a região árabe, esses eventos de 2011 não são a inauguração de uma nova história, mas a continuação de uma luta sem fim, que tem 100 anos. Algumas pessoas já caíram em desânimo, menosprezando as quedas de Ben Ali e Mubarak. Esses acontecimentos fortalecem a confiança do povo e põem as lutas em movimento. A velha ordem pode permanecer, ainda, mas se sabe que seu tempo está acabando. No filme Gladiador (Ridley Scott, 2000), os bárbaros germânicos arrancam a cabeça de um soldado romano e a jogam na frente das linhas de batalha romanas. Um dos generais romanos diz: “As pessoas deveriam saber quando são conquistadas”. Ele quis dizer os bárbaros. Os ditadores do mundo árabe, nossos bárbaros, podem arremessar algumas cabeças, ainda, diante do avanço do povo. Mas já devem saber que estão derrotados. É simplesmente uma questão de tempo: 100 anos ou 10.
Por: Vijay Prashad é o titular da cadeira George e Martha Kellner de História da Ásia do Sul e diretor de estudos internacionais no Trinity Colleg, Hartford, TC. Seu livro mais recente, The Darker Nations: A People's History of the Third World, [As nações mais escuras: uma história do povo do Terceiro Mundo] ganhou o prêmio Muzaffar Ahmad de melhor livro de 2009.
Fonte: Carta Maior
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