No fim do governo Lula, é impossível pensar nas relações entre Brasil e França sem lembrar o acordo sobre a venda de 36 caças que, anunciado na euforia da visita do presidente Nicolas Sarkozy em setembro de 2009, provavelmente não será fechado antes da posse de Dilma Rousseff. Os franceses, que nos últimos dias têm enviado ao país altos representantes do governo, como o chefe do Estado Maior das Forças Armadas, almirante Edouard Guillaud, para fazer uma pressão na reta final, evitam publicamente reclamar da decisão de postergar o anúncio da concorrência para o governo Dilma. “É uma coisa difícil de prever, mas parece que o presidente Lula disse muito claramente que é a presidente Dilma quem deve decidir. Mas estamos pacientes e otimistas”, disse o embaixador francês, Yves Saint-Geours, em entrevista ao Correio.
Mas se a decisão na questão dos caças deixará a desejar, o embaixador francês comemora o que foi conseguido com o Brasil nos últimos oito anos nos campos não só militar, mas político e comercial. Nesse período, em que se realizou o Ano do Brasil na França, em 2005, e o Ano da França no Brasil, em 2009, os dois países fecharam um acordo de cerca de R$ 20 bilhões (8,8 bilhões de euros) na compra de 51 helicópteros e cinco submarinos (sendo um de propulsão nuclear), o comércio cresceu — estimativa de cerca de 30% só no último ano –, e os dois governos tiveram uma boa coordenação em temas multilaterais.
Para Saint-Geours, as expectativas para o governo Dilma são ainda melhores. “Estou muito otimista por razões simples. Primeiro, temos os métodos, os projetos, este nível muito alto de relações bilaterais. E, claro, os problemas do mundo continuam e temos que avançar”, afirma. Segundo o embaixador, devido a essas características, a parceria estratégica entre os dois países é agora mais “legítima que nunca”. “Todos os eixos prioritários domésticos, como desenvolvimento das infraestruturas pelo PAC, e das necessidades para a educação, formação profissional, tecnologia e ciência, são também os eixos da nossa cooperação com o Brasil. Então, tendo os métodos, os desafios e esses eixos prioritários, considero que a perspectiva de cooperação é excelente.”
Durante o governo Lula, as relações entre Brasil e França foram visivelmente intensas, com muitas visitas e encontros entre os presidentes, acordos echados em diversas áreas e a realização dos anos do Brasil na França e da França no Brasil. O que motivou essa aproximação?
Foi uma visão dos dois lados da necessidade de aprofundar essa relação. Não tenho a intenção de falar pelo lado brasileiro, mas percebemos que o país se projetou muito mais, teve uma política externa mais ativa, e que, ao fazer isso, considerou a França, com quem tinha já relações excelentes em vários níveis, um parceiro importante, principalmente para procurar mudar algumas coisas na governança mundial. E nós, franceses, consideramos que o mundo estava mudando, e que era preciso mudar as instituições de organização coletiva do mundo. E, inclusive, ter uma relação não só multilateral, mas bilateral mais forte com países emergentes tão importantes como o Brasil. E esses dois anos — do Brasil na França e da França no Brasil — foram a parte mais ativa e mais concreta da relação. Nesse período, também tivemos a assinatura da parceria estratégica, que foi muito interessante para os dois países que já tinham um diálogo político, e as ferramentas da relação a nível comercial, científico-universitário, cultural e militar. Por esses motivos, esses oito anos foram realmente uma mudança de época — para o mundo, para os dois países e para a nossa relação.
Em que áreas essa parceria avançou mais?
Há vários campos de cooperação que realmente avançaram de uma maneira excepcional com a parceria estratégica: comercial, científico e cultural, militar, e até na questão de fronteiras, já que Brasil e França dividem mais de 720 quilômetros de fronteira entre a Guiana Francesa e o Amapá. No campo da cooperação econômica e comercial, organizamos um grupo de empresários de alto nível que fizeram um trabalho para propor coisas concretas, como, por exemplo, agilizar as questões de alfândega, circulação de pessoas e contratos de trabalho. E isso já deu resultados bons entre as empresas. Muitas empresas francesas já estão no Brasil há décadas, mas, entre 2009 e 2010, foi um momento privilegiado para o desenvolvimento de nossas parcerias, de novos investimentos. A expectativa é que o intercâmbio comercial aumente mais de 30% só este ano. Os investimentos franceses no Brasil são excepcionais: as empresas franco-brasileiras empregam 400 mil brasileiros aqui, somos o quarto maior volume de investimentos estrangeiros diretos no Brasil. E esse volume representa o dobro da quantidade de investimentos franceses na China e cinco vezes mais do que na Índia. Isso mostra que o Brasil é um parceiro econômico muito importante.
A parceria no campo militar também tem sido levada a sério pelos dois países, que fecharam um acordo para a produção de helicópteros e submarinos, e têm em vista um acordo para a compra de 36 caças para a FAB. Por que uma parceria com o Brasil nessa área é importante para a França?
Temos uma parceria entre países que querem ter não só soberania, mas também autonomia de decisão e compartilhar responsabilidades internacionais. E uma maneira de compartilhar responsabilidades internacionais, é garantir a segurança no mundo. Nós sabemos que, neste momento, a comunidade internacional, através do Brasil, está assegurando parte da segurança do mundo, no Haiti. Então a razão de fazer uma parceria militar se inscreve no marco da parceria global.
Na última quinta-feira, o ministro da Defesa, Nelson Jobim, se reuniu com o chefe do Estado Maior das Forças Armadas francesas, almirante Edouard Guillaud. O governo francês recebeu alguma previsão sobre o fechamento dessa compra?
Essa é uma questão de decisão do governo brasileiro, então, não é o governo francês que vai responder a essa pergunta.
Mas o senhor acredita que o presidente Lula vai sair do governo sem anunciar a decisão?
É uma coisa difícil de prever, mas parece que o presidente Lula disse muito claramente que é a presidente Dilma quem deve decidir.
Há um risco de que, a decisão ficando para o próximo mandato, o governo mude a sua já conhecida preferência pela proposta francesa?
Ou que o processo se prolongue demais, mais uma vez?
Considero que, realmente, essa é uma coisa que o governo do Brasil tem que decidir, em função de muitos parâmetros. Mas estamos pacientes e otimistas. Os dois países mantiveram uma coordenação estreita em temas da agenda internacional.
Quais foram as principais questões multilaterais em que os dois conseguiram coordenar posições conjuntas?
Estamos em um processo de mudança das instituições multilaterais. E, em questões como a mudança de cotas no FMI e no Banco Mundial, ou na reforma no Conselho de Segurança, não estamos na mesma posição, mas temos os mesmos objetivos do Brasil. Por exemplo, em novembro de 2009, os presidentes Lula e (Nicolas) Sarkozy adotaram uma orientação comum para a Conferência de Copenhague, com compromissos de redução de desflorestamento, e objetivos concretos para a redução de gases de efeito estufa. É claro que não concordamos em tudo. Vamos ter que seguir dialogando para atingir consensos sobre matérias-primas, sobre reforma do sistema monetário internacional e, inclusive, sobre governança mundial.
Outro assunto que os dois países não têm postura semelhante é em relação ao programa nuclear do Irã. Como a França viu os esforços do Brasil para chegar à Declaração de Teerã e a sua postura sobre as sanções?
Não devemos esquecer o principal: Brasil e França concordam completamente sobre os objetivos pacíficos de permitir o desenvolvimento nuclear civil para os países. Consideramos que todos os países devem ter, respeitando as regras, essa possibilidade. É verdade que não concordamos sobre a maneira de atingir esse objetivo, e todos sabem que teve a resolução sobre as sanções. Mas o Brasil, apesar de não votar a favor da resolução, está aplicando as sanções. Mas é uma coisa complexa.
Mas o Brasil desgastou a sua imagem no cenário internacional?
Eu só posso responder pela França. Para nós, por todas as razões que expliquei antes, o diálogo com o Brasil é o mesmo. Não consideramos que temos que concordar sempre. Para nós, isso não mudou a percepção que temos do Brasil e de seu papel futuro na governança mundial.
O senhor acredita que, no governo Dilma essa aproximação vai continuar?
Estou muito otimista por razões simples. Primeiro, temos os métodos, os projetos, este nível muito alto de relações bilaterais. E, claro, os problemas do mundo continuam e temos que avançar. Considero que o Brasil tem agora uma continuidade política que nos dá realmente possibilidade de responder aos desafios que se apresentam a cada dia, e então a parceria estratégica me parece mais legítima que nunca. O Brasil é uma grande potência no mundo e tem responsabilidades internacionais cada vez mais importantes. E todos os eixos prioritários domésticos, como desenvolvimento das infraestruturas pelo PAC, e das necessidades para a educação, formação profissional, tecnologia e ciência, são também os eixos da nossa cooperação com o Brasil. Então, tendo os método, os desafios e esses eixos prioritários, considero que a perspectiva de cooperação é excelente.
O senhor falou da parceria na área cultural e científica. O que espera da relação nesse campo?
Temos trabalhado muito no campo científico, universitário e cultural, transformando um pouco o que estávamos fazendo, que já era muito. Temos uma tradição de instituições bilaterais para trabalhar juntos a nível universitário e agora estamos abrindo mais e mais cooperações universitárias. Mais estudantes brasileiros estão indo à França, 3 mil vistos de estudantes foram dados no ano passado. E agora queremos, com a parceria estratégica, fazer mais estudantes franceses viajarem ao Brasil. Queremos sempre esse equilíbrio, tanto para a economia, como para a ciência e cultura.
Mas também não há um equilíbrio na questão comercial, porque o Brasil exporta menos para a França do que importa, mantendo a nossa balança negativa.
Não, estamos mais ou menos equilibrados.
Mas, só neste ano, já temos um deficit de mais de US$ 1 bilhão...
Essa é uma discussão que sempre temos com os brasileiros, porque não calculamos os números da mesma maneira. No ano passado, para nós, a França teve um déficit, mas para os números brasileiros, tivemos um excedente. Então, é mais ou menos um comércio equilibrado, e temos que crescer juntos.
Em que áreas o Brasil pode investir mais na França?
Já temos alguns pequenos investimentos do Brasil na França, mas é claro que os grandes campeões industriais brasileiros — Petrobras, Vale, Embraer — e também médias empresas podem pensar em investimentos em todos os campos: agroindústria, indústria, serviços.
O presidente Sarkozy tem apresença confirmada na posse da presidente Dilma?
Não. E essa decisão não está dependendo de ninguém, mas é uma data complicada para todos os governos do mundo. De qualquer maneira, teremos uma boa representação.
Fonte: Correio Braziliense
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