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quinta-feira, 25 de novembro de 2010
Com Dilma, EUA continuarão sem "policial" na América do Sul, diz Tariq Ali
A América do Sul é hoje a região mais independente do poder americano e a vitória do PT na eleição presidencial brasileira indica que os EUA continuarão sem contar com um "policial" que possa agir por eles nesta parte do mundo, diz o escritor paquistanês Tariq Ali.
Um dos editores da revista britânica "New Left Review" e colaborador da "London Review of Books", Ali é conhecido pela militância contra as intervenções externas americanas e veio ao Rio para participar de conferência com sindicalistas e ativistas de favelas sobre imprensa alternativa.
Seu penúltimo livro, "O Duelo", sobre a relação EUA-Paquistão, acaba de ser publicado no Brasil pela editora Record. No exterior, ele recém-lançou "Obama Syndrome", em que destaca as continuidades entre o ocupante da Casa Branca e seu antecessor, George W. Bush. "Só mudou a música ambiente."
Nesta entrevista à Folha, o escritor também analisou a situação no Paquistão, a falta de solidariedade mundial às milhares de vítimas das enchentes deste ano em seu país de origem e a guerra americana no Afeganistão. Disse que os EUA, que prometeram se retirar do país centro-asiático até 2014, gostariam de deixar para trás bases permanentes, como no Iraque, mas que a China tem feito saber sua oposição à presença da Otan (aliança militar ocidental) em sua fronteira.
Apesar de aprovar a política externa do governo Lula, Ali é crítico da política econômica. Se disse "no mínimo decepcionado" por ver o ex-ministro da Fazenda Antonio Palocci, "arquiteto de políticas neoliberais", na equipe da presidente eleita Dilma Rousseff.
Ele diz que, se houve ingenuidade de Brasil e Turquia quanto tentaram mediar o impasse nuclear iraniano, foi em relação às intenções do governo americano. "Os dois países conseguiram fazer com que os iranianos concordassem com um plano que os EUA haviam proposto antes, e aí Obama recuou."
Apesar das constantes "reclamações e irritação" em relação a Washington, Ali não acredita que a hegemonia americana esteja em risco, diz que a China não pretende desafiar esse poderio no futuro previsível e avalia que o fórum Bric (Brasil, Rússia, Índia e China) "não é coisa séria". "Os EUA estão mais fortes agora do que nos anos 60 e 70", afirma. Abaixo, a íntegra da entrevista.
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FOLHA - Os EUA se aproximam da Índia, cuja candidatura ao Conselho de Segurança da ONU apoiaram. A China, do seu lado, se aproxima do Paquistão. Isso afeta a guerra no Afeganistão?
TARIQ ALI - Os EUA sabem que têm que se retirar do Afeganistão. Gostariam de sair, mas manter bases militares lá. Isso não vai ser possível. Os chineses, nos bastidores, disseram aos militares paquistaneses que não querem bases permanentes da Otan na sua fronteira. Para resolver esse problema, os EUA precisam dos militares paquistaneses.
Simultaneamente, os EUA estão jogando a Índia contra a China. A Índia é o país mais importante para os EUA na Ásia. Sempre foi, mesmo quando a Índia tinha uma política externa de neutralidade. Mas hoje há uma elite indiana que se ajoelha diante dos EUA, o que para Washington é uma grande oportunidade. Claro que nunca poderão tratar a Índia como um pequeno país que controlam, mas precisam dela como anteparo ao crescimento econômico chinês, que ninguém sabe aonde vai levar.
Mas o apoio à candidatura ao Conselho de Segurança não é grande coisa. O conselho não é mais um organismo muito interessante, tampouco a ONU. Se os americanos não conseguem usar a ONU para implementar sua hegemonia, eles usam a Otan [aliança militar ocidental] ou vão sozinhos.
O sr. crê que os EUA se retirarão do Afeganistão até 2014, como prometido?
A ideia de que em 2014 eles terão criado condições para a retirada não faz sentido. Houve total fracasso em criar qualquer Estado no Afeganistão. Os americanos não confiam nem nas pessoas que estão treinando [para o Exército afegão]. Houve casos em que essas pessoas mudaram de lado.
O sr. defende que a solução para o Afeganistão teria que ser regional, com o envolvimento de todos os vizinhos --Rússia, Irã, Paquistão, Índia, China-- que têm influência sobre grupos no país. A disputa Índia-Paquistão pode dificultar isso?
Acho que a Índia será parte da solução. Os indianos vão fazer o que os americanos querem no Afeganistão. Eles têm muitas outras coisas para se preocupar, incluindo o grande problema da Caxemira ocupada, onde a população é tratada como um povo colonizado pelos indianos. Para resolver esse problema, a Índia precisará da ajuda do Paquistão e dos EUA, e está usando sua presença no Afeganistão como barganha.
Desde que o senhor escreveu "O Duelo", em 2008, a situação no Paquistão piorou, não?
Muito. O livro tem quatro argumentos principais: que o Paquistão esteve na rota de voo do poder americano desde os anos 50; que os americanos têm mostrado que preferem lidar com os militares a qualquer outra força no país; que os políticos que estão no poder no Paquistão, incluindo o viúvo de Benazir Bhutto [o presidente Asif Ali Zardari] são corruptos, criminosos, assassinos e todo o país sabe disso; que o governo e a elite paquistaneses são incapazes de fazer qualquer coisa pelo povo, o que ficou demonstrado mais uma vez nas enchentes deste ano [que afetaram 10% da população de 200 milhões].
Foi o pior desastre natural que o país já sofreu, e dois eventos simbolizam os problemas do Paquistão. Uma cidade média, Jacobabad, foi tomada pelas águas, e o governo pediu à Força Aérea, que tem uma base perto, que mandasse helicópteros para salvar as pessoas. Disseram que não podiam porque o base estava sendo usada pelos americanos para os bombardeios com aviões não tripulados em outra parte do país. O segundo incidente foi quando a enchente chegou à província de Sind, onde há uma grande concentração de latifúndios. Havia a alternativa de construir uma barreira que salvaria as aldeias onde vivem os mais pobres ou uma que salvaria as fazendas. Escolheram a segunda opção. O governo foi incapaz de responder à enchente.
O sr. não acha que a resposta internacional à enchente também foi fraca?
Totalmente. Eu acho que a mídia global vem se concentrando em pintar o Paquistão como um país governado por jihadistas [combatentes islâmicos], pessoas barbadas que estão à beira de tomar conta do arsenal nuclear. Essa é a mitologia, e mostrar pessoas comuns sofrendo não é parte do quadro. Não há a intenção de se criar simpatia por esse país e por sua população.
A mídia global normalmente ama desastres naturais, que são transformados em novelas, como no caso dos mineiros chilenos. No Paquistão havia milhares de pessoas sofrendo com as enchentes, em condições desumanas, crianças morrendo por falta de remédios, mas o Ocidente fez muito pouco. A chamada ajuda humanitária não chegou.
O Paquistão tem sido apontado na imprensa americana como responsável pelo fracasso em conter o Taleban no Afeganistão. Como isso se reflete dentro do país?
Setenta por cento dos paquistaneses veem os EUA como seu principal inimigo, segundo pesquisa de instituto americano. Esse número não reflete extremismo religioso, mas revolta política em relação aos EUA e com a elite que colabora com os EUA.
Quando os americanos têm problemas com um país, nunca gostam de admitir que a culpa é sua. Estão perdendo no Afeganistão e dizem que é porque os afegãos atravessam para o Paquistão. Isso é verdade, mas não é razão da derrota. A guerra é um desastre militar, político, social e ideológico.
O sr. diz que o fundamentalismo islâmico não é um problema de fato no Paquistão. Por quê?
É uma força marginal, que cresceu sobretudo por ter sido apoiada pelo Estado. A inclinação natural da maioria dos paquistaneses é mostrada nos resultados eleitorais --menos de 5% dos eleitores votam em partidos religiosos. Os grupos de jihadistas fanáticos são pequenos no Paquistão. Eles parecem mais poderosos porque têm armas e praticam atentados. Mas o apoio da população é pequeno.
A possibilidade de uma solução negociada para a questão nuclear no Irã parece muito pequena. Como analisa a situação?
A situação no Irã é determinada essencialmente pelo interesse de Israel, não tanto dos EUA. Para as israelenses, o mais importante na região, devido à própria má consciência pelo que fizeram com os palestinos, é não haver qualquer poder militar alternativo. No caso do Irã, temem perder o monopólio nuclear regional.
É daí que a pressão está vindo, porque os americanos poderiam fazer um acordo com este regime [do Irã] se quisessem. [O presidente iraniano Mahmoud] Ahmadinejad não é muito inteligente. Mas a noção de que ele seja mais autoritário do que o rei da Arábia Saudita [Abdullah] e o presidente do Egito [Hosni Mubarak] é uma brincadeira. Há mais democracia no Irã do que nestes dois países.
Os EUA estão preocupados com dois coisas. Uma é a pressão israelense, e a outra é que, ao ocupar o Iraque e destruir o Exército iraquiano, eles criaram um novo poder no Iraque, xiita, que é muito próximo ao Irã. Os xiitas iraquianos colaboram com os EUA que os colocou no poder, mas, quando há uma crise, toda a liderança xiita, da direita à esquerda, voa para Teerã, se reúne com a liderança local e os aiotolás decidem.
Isso preocupa os EUA, que temem a consolidação do Irã como um centro de poder na região. Se o Irã tiver armas nucleares, se torna intocável. São essas contradições que entram nos cálculos agora. O fato é que tratar o Irã como um pária é uma política sem sentido, porque a cultura política iraniana é muito forte, e muitos iranianos que não apoiam o clero são a favor de o país ter armas nucleares, já que tantos vizinhos as têm e submarinos nucleares americanos patrulham a costa iraniana.
Parte dos analistas avaliou que a tentativa de Brasil e Turquia de negociar a questão nuclear iraniana foi ingênua, por não levar em consideração os fatores internos nos EUA e no Irã. O sr. concorda?
Acho que foram ingênuos porque acreditaram em Obama, já tanto Lula quanto os líderes turcos foram encorajados pelos EUA a mediar. Por isso considero um pouco injusto atacar Lula. Ele não queria um conflito entre Irã e EUA, e Obama lhe disse ao telefone para tentar.
Turquia e Brasil conseguiram fazer com que os iranianos concordassem com um plano que os EUA haviam proposto antes, e aí Obama recuou. Em vez de atacar Obama, a mídia de direita ataca Lula e os turcos. Acho que eles fizeram o melhor que podiam, a ingenuidade foi pensar que poderiam fazer algo que os EUA não queriam, imaginando que queriam. Muitas pessoas tinham ilusões sobre Obama. Eu não.
Qual é o cerne de seu livro sobre Obama?
O subtítulo do livro é "Rendição em Casa, Guerra no Exterior". Ele se rendeu a interesses corporativos --Wall Street, os lobbies de seguros e farmacêutico. Ele se rendeu ao pensamento do complexo industrial-militar. Disse que ia fechar Guantánamo e a prisão ainda está aberta. Disse que os direitos civis seriam protegidos e nada mudou. Que não haveria sequestros [de estrangeiros] e tortura e nada mudou. Em essência, há mais mais continuidades com o regime de [George W.] Bush do que outra coisa. Só mudou a música de fundo. E agora os próprios apoiadores de Obama estão desapontados.
Com a crise nos EUA e na Europa, fala-se muito do poder dos emergentes, do Bric (Brasil, Rússia, Índia e China). A hegemonia dos EUA está em risco?
Não. Acho que os EUA continuam sendo o poder hegemônico global, e no momento não há quem possa mudar isso. Talvez no fim deste século as coisas possam ficar mais claras. Há reclamações, irritação. Mas sempre foi assim. Os EUA, ironicamente, estão mais fortes agora do que nos anos 1960 e 70.
A ilusão que as pessoas têm sobre a China está mal colocada. Acho que a liderança chinesa, no futuro previsível, dificilmente vai desafiar a hegemonia americana. De certo modo precisa dela, a China como a maior potência econômica e os EUA como a maior potência militar. O Bric não é uma coisa séria.
Os EUA e a Otan vão manter a tendência de intervir fora do territórios de seus países-membros?
Acho que essa é a única função da Otan, hoje o braço militar do império americano. Quando ocasionalmente há divergências dentro da Otan, os EUA atuam sozinhos, como no Iraque.
O que analistas nos EUA dizem é que hoje o país não pode mais agir sozinho, precisa dos aliados.
Isso é música de fundo. Claro que o ideal para os EUA é ter uma coalizão por trás deles, como no Afeganistão. Mas quando não conseguem, agem sozinhos. Não levo essa análise a sério.
O sr. tem um livro, "Piratas do Caribe" (Record), sobre o "eixo da esperança" na América do Sul. Como avalia a região agora?
Acho que a situação continua positiva. O golpe contra Rafael Correa no Equador fracassou. Não interpreto as eleições legislativas na Venezuela [em que o oposição teve metade dos votos] como derrota de [Hugo] Chávez. Para a mídia ocidental, o governo venezuelano nunca faz nada certo. Evo Morales, na Bolívia, teve outra grande vitória com ampla porcentagem dos votos [foi reeleito em dezembro de 2009 com 64%]. O Paraguai está numa situação mais triste porque [Fernando] Lugo está doente, com câncer. E, apesar de o Brasil não fazer parte desse eixo, porque a política econômica não difere muito das de direita, o fato de o PT ter ganhado as eleições de novo faz uma diferença na política externa, porque significa que os EUA não poderão contar com o Brasil para agir por Washington nesta região. A maneira de os EUA exercerem sua hegemonia é ter em cada região um policial com o qual podem contar. Aqui costumava ser o Brasil ou a Argentina, mas agora eles só têm a Colômbia.
A Colômbia parece um tanto desiludida, porque o Congresso americano não ratificou o acordo bilateral de livre comércio.
Os EUA não podem contar totalmente nem com a Colômbia. A América do Sul é a pior história para o império americano no momento. O único sucesso que tiveram foi o golpe em Honduras, uma vitória do Departamento de Estado americano --claro que não podem dizer isso em público. Mas de modo geral a América do Sul se mantém independente do império.
Mas isso incomoda os EUA? Porque, excluindo Chávez, cujo poder é bastante exagerado, a região nunca é mencionada entre as prioridades americanas.
Não, e a razão disso é que o capitalismo como sistema não foi desafiado na América do Sul. O que argumento em "Piratas do Caribe" [editora Record] é que tudo o que esses líderes estão fazendo é usar o poder do Estado para fazer reformas sociais necessárias. É uma social-democracia, e o Brasil poderia aprender com isso.
Apesar de se falar muito da economia brasileira, as condições dos pobres e trabalhadores no Brasil, em termos de saúde, educação e transporte público continua muito ruim. A Bolsa Família é um cala-boca. Os ricos neste país não pagam impostos. É melhor começar a pensar nisso agora do que quando a crise atingir o país. O Brasil pensa que é imune porque evitou o colapso de 2008, mas o sistema [econômico] é muito hierárquico.
Segundo a maioria das análises, o que levou à vitória do PT foi o aumento do poder de compra da população.
Não podemos nos esquecer que foi Fernando Henrique que adotou medidas anti-inflação e aumentou o poder de compra do real, mas ao custo de desindustrializar o país. O Brasil foi financeirizado e isso continua sendo um problema, mesmo dentro do quadro capitalismo. Eu fiquei um pouco decepcionado, para dizer o mínimo, quando vi Dilma [Rousseff] ao lado de Palocci, que foi o arquiteto de políticas neoliberais. Eles têm que entender o que está acontecendo no mundo e adotar medidas preventivas antes que o Brasil seja atingido.
Fonte: Folha
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