A publicação de mais de 250 mil documentos do governo americano pelo site Wikileaks, que despiu a diplomacia dos Estados Unidos diante de todo mundo, respingou também na relação do país com o Brasil. Em apenas seis telegramas originados nas representações americanas no país divulgados na íntegra pelo site, fica evidente a preocupação de Washington com a postura do governo brasileiro em relação à ameaça terrorista em seu território. Apesar de considerar o trabalho de órgãos como a Polícia Federal “eficaz”, os relatórios da embaixada em Brasília e do consulado de São Paulo ressaltam a dificuldade do governo em reconhecer a presença de terroristas no país, bem como de classificar grupos como o Hezbollah e as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc) como tal. Isso seria explicado pelo fato de o governo ser, em grande parte, “amontoado de militantes de esquerda que foram objeto da ditadura militar” que dificilmente vão reprimir a “violência politicamente motivada”.
No governo brasileiro, a reação foi a de não causar ainda mais barulho sobre os documentos revelados. Ao contrário do vizinho Paraguai, que logo anunciou ter convocado a embaixadora americana para esclarecer o conteúdo dos telegramas vazados da representação em Assunção, o Itamaraty preferiu não comentar as mensagens do Departamento de Estado. Há, no entanto, a expectativa de que os detalhes publicados azedem ainda mais a relação bilateral que se tornou menos harmônica nos dois últimos anos do governo Lula. E pode contribuir ainda para que a visita da presidente eleita, Dilma Rousseff , a Washington seja, de fato, empurrada para o próximo ano. Ontem, o chanceler Celso Amorim chegou a Miami para receber um prêmio da revista Latin Trade, amanhã, vai à capital americana receber outro prêmio, da revista Foreign Policy, e participar de um debate sobre potências emergentes no Carnegie Endowment for International Peace. Na visita de um dia, contudo, não há a previsão de nenhum encontro com integrantes do governo Obama.
O Ministério das Relações Exteriores foi citado diversas vezes nos documentos divulgados como uma voz dissonante de Washington. Segundo Clifford Sobel, embaixador americano no Brasil até 2009, a “sensibilidade extrema” do Itamaraty em admitir publicamente a presença de terroristas no país resulta em situações de divergência explícita. "Nas conferências (entre Brasil, Paraguai, Argentina e EUA), as delegações brasileiras, muitas vezes criticam as declarações feitas por autoridades dos EUA de que a Tríplice Fronteira é um foco de atividades terroristas, e desafiam os participantes americanos a apresentarem as provas que embasam essas declarações", diz Sobel em um telegrama de janeiro de 2008, classificado como secreto. "Funcionários do Itamaraty repetidamente questionam o valor da cooperação de quatro vias, insistindo que "preocupações bilaterais devem ser abordadas a nível bilateral"", acrescenta.
Sobel, no entanto, argumenta que a preocupação dos mais altos níveis do governo brasileiro é tanto evitar a “estigmatização” da comunidade muçulmana do Brasil, como o prejuízo turístico na região de Foz do Iguaçu. "É também uma postura pública destinada a evitar a estreita ligação com o que é visto como uma excessivamente agressiva guerra americana contra o terrorismo", observa. A Polícia Federal brasileira também teria, com frequência, prendido pessoas ligadas ao terrorismo, mas os acusados de uma "variedade de crimes" para evitar chamar a atenção da imprensa e dos altos escalões do governo, de acordo com o embaixador Sobel.
No mesmo documento, fica claro que a principal preocupação do governo brasileiro e da missão americana aqui é “a presença e as atividades” de indivíduos ligados com terrorismo, inclusive o grupo libanês Hezbollah, em São Paulo e em outras áreas do Sul do Brasil. A atuação de suspeitos na Tríplice Fronteira seria ainda menos preocupante que no populoso estado.
Os documentos divulgados mostram que, em menos de três semanas, entre novembro e dezembro de 2009, o consulado de São Paulo enviou dois relatórios ao Departamento de Estado sobre a comunidade muçulmana no estado, em especial, de libaneses. "Os novos imigrantes são muitas vezes também do Líbano, mas eles são mais pobres e muito mais xiitas. Sua política é mais radical e, frequentemente, veem no Hezbollah uma liderança", destaca um dos documentos. A embaixada dos EUA em Brasília não quis comentar a divulgação dos telegramas, deixando a “resposta” para a secretária de Estado, Hillary Clinton, que condenou a publicação dos mais de 250 mil documentos em Washington.
Fonte: Estado de Minas