domingo, 5 de setembro de 2010

Pesquisador compara relações entre escravidão e política na história do Brasil e de Cuba


O professor de história na USP Rafael Marquese, coorganizador, com Márcia Berbel e Tâmis Parron, do livro "Escravidão e Política" (ed. Hucitec/Fapesp, 398 págs., R$ 47), analisa, na entrevista a seguir, as relações econômicas e políticas por trás do tráfico de escravos no Brasil e em Cuba, de 1790 a 1850.

Folha - Por que um estudo comparado Brasil-Cuba sobre escravidão?

Rafael Marquese - A escrita da história é, desde o século 19, fundada na análise de fenômenos que ocorreram nos marcos territoriais dos Estados nacionais. Os processos históricos, contudo, não se desenrolam apenas nesses espaços. Esta constatação -bastante trivial, diga-se de passagem- está na base de todos os esforços feitos ao longo do século 20 para desenvolver a história comparada. No caso da escravidão, uma instituição hemisférica e central para a construção do mundo moderno, tal constatação é, ademais, quase uma exigência para a comparação. O problema consiste, então, na escolha das unidades que serão submetidas ao cotejamento. Brasil e Cuba compartilharam, ao longo do século 19, uma história comum, que se inter-relacionou e se condicionou mutuamente de modo estreito. O Brasil se tornou uma monarquia constitucional, conservando a integridade territorial do antigo Império Português na América, pela mesma razão que Cuba se manteve como colônia espanhola (ao invés de seguir o caminho da independência republicana, como ocorreu com todas as demais colônias espanholas no continente, do México à Argentina). E qual foi essa razão? O projeto das classes senhoriais desses dois espaços para se valer da escravidão negra como condição de inscrição na modernidade industrial capitalista, em um contexto geopolítico travejado pelo crescente poder antiescravista britânico. Escrever um livro desvendando os padrões comuns e as divergências de trajetórias entre o Brasil e Cuba permite, enfim, conhecer melhor nossa história e o peso da escravidão nela.

Folha - Qual o peso da escravidão na história cubana?

Rafael Marquese - Decisivo, tanto quanto na história brasileira. Por que Cuba não seguiu o caminho das demais colônias espanholas no continente, todas independentes em 1824? Por que só obteve sua independência em 1898? Por que foi incluída na órbita dos EUA até 1959? A resposta a todas essas questões passa, necessariamente, pelo problema da escravidão e do tráfico negreiro transatlântico no século 19. Por isso, compreender o Brasil significa, em resumo, compreender Cuba.

Folha - Havia tráfico de escravos entre os dois países?

Rafael Marquese - Diretamente (por exemplo, escravos do Rio de Janeiro, da Bahia sendo vendidos em Cuba, ou vice-versa), não. Mas, traficantes espanhóis, cubanos, portugueses, brasileiros e norte-americanos operaram unificadamente desde a década de 1820. Um navio negreiro que saísse de Nova York com destino a Benguela (Angola), por exemplo, poderia, em uma viagem, desembarcar os africanos escravizados em Havana e, noutra, nos arredores do Rio de Janeiro. Ou, então, um negreiro baiano (de construção norte-americana) poderia ser carregado com mercadoria humana na Costa da Mina (no golfo da Guiné, na África), para depois desembarcá-la em Matanzas (Cuba). Como vários historiadores vêm demonstrando, o tráfico na era da ilegalidade foi um negócio profundamente internacionalizado, altamente capitalizado, que articulou de modo estreito as três fronteiras da escravidão do século 19, isto é, Brasil, Cuba e EUA.

Folha - Como Brasil e Cuba se tornaram, após 1820, as únicas regiões da América onde o tráfico transatlântico de africanos ainda era intenso?

Rafael Marquese - O cerne do livro está em explicar como isto se resolveu na esfera política -daí o título, "Escravidão e Política". A maior força naval e militar do século 19, a Grã-Bretanha, promoveu, desde 1808, um esforço sistemático para encerrar o tráfico negreiro transatlântico. A escravidão negra -e, por extensão, o tráfico transatlântico- era compreendida pelas classes senhoriais em Cuba e no Brasil como condição para inscrever positivamente os dois espaços na arena econômica mundial. O tráfico negreiro foi o motor do crescimento econômico cubano e brasileiro após 1820; explicá-lo apenas a partir das forças do mercado (isto é, da demanda e da oferta atlânticas), contudo, não resolve a equação. O avanço do café no Brasil e do açúcar em Cuba dependeu de acordos políticos internos à monarquia constitucional brasileira e ao Império Espanhol que dessem segurança institucional aos que investiam em escravos. Desde 1820 (em Cuba) e 1831 (no Brasil), a introdução de escravos era ilegal, sendo que o africano ilegalmente submetido ao cativeiro teria o direito -nas letras das leis espanholas e brasileiras- de demandar sua liberdade e, no limite, processar seus escravizadores. Estamos falando de 540.817 africanos em Cuba e de 745.097 no Brasil. Os africanos tinham ciência das leis de 1820 e 1831; a Grã-Bretanha promoveu gestões concretas para libertá-los, afora o combate que promoveu aos negreiros em alto-mar. Diante de tal quadro, como Brasil e Cuba foram capazes de promover tal tráfico? A resposta do livro é a de que o arranjo político construído pelo regresso conservador no Brasil e pela monarquia espanhola deu salvaguarda às respectivas classes senhoriais e traficantes de escravos.

Folha - A presença africana em Cuba teve papel cultural semelhante ao desempenhado no Brasil?

Rafael Marquese - Sim, se a pergunta incide sobre o campo cultural. Isto, aliás, pode constituir a matéria de outro livro.

Fonte: Folha
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