quinta-feira, 3 de junho de 2010

Israel e a Frota da Liberdade


A acusação mais frequente que tem sido feita à acção militar israelita contra os seis navios da chamada “Frota da Liberdade”, o largo de Gaza, na noite de 30 para 31 de Maio, é a de violação do princípio da proporcionalidade no uso da força, entendido aqui como o seu uso excessivo e não justificado, à luz do conceito de “necessidade militar” para atingir um objetivo.

Também me referi, inicialmente, à intervenção sob essa perspectiva mas os detalhes que entretanto vieram a público, e que já são muitos, não confirmam o acerto do uso do termo “desproporcionalidade de ação” como o adequado para a caracterizar. Os erros cometidos situaram-se sobretudo no planeamento técnico e tático da ação, isto é, na concepção em que se baseou a sua execução.

A realização de uma operação de abordagem a um navio mercante nunca é uma ação isenta de riscos porque a inserção das equipes, principalmente a primeira, é sempre um momento de extrema vulnerabilidade. Se é feita por helicóptero o risco é muito alto também para este (tem que se colocar muito próximo do alvo e com movimentos restritos). A alternativa de emprego de uma embarcação para transportar a equipe de abordagem dá uma margem de manobra mais segura para o meio mas representa para o pessoal uma situação de dificuldade máxima: demora mais tempo, exige mais esforço físico para subir a escada de abordagem, não lhes permite ter à mão uma arma para uso imediato. Só não levanta problemas se é uma abordagem com a cooperação do navio alvo.

Prevendo-se falta de cooperação ou oposição do navio a abordar, este tipo de operação é apenas uma opção de último recurso, para ser usada quando todas as outras tiverem sido esgotadas; a probabilidade de haver problemas sérios é sempre elevada. As forças armadas israelitas não podem ignorar estes ensinamentos; estranha-se que não os tenham tido em conta. Já vi referida a alegação de que foram surpreendidas por uma oposição que não esperavam. Isto ainda faz menos sentido. O navio em causa tinha a bordo mais de 600 activistas pró palestinianos ligados a uma organização que Israel sabe estar ligada ao financiamento do terrorismo e tem ligações com o Hamas.

Mas se a previsão era a de uma abordagem sem oposição então também não se compreende como se optou por empregar 13 “comandos da Shayetet”, especialistas em ações que exigem postura de grande agressividade, estando treinados para atuar sem contemplações, para resolver o problema rapidamente e de forma definitiva. Talvez tivesse sido mais apropriado usar pessoal preparado para lidar com situações de insurreição, no que aliás os israelitas são peritos com larga experiência. Poderá a seleção de comandos especializados em operações especiais ter contribuído para alguma desproporção no uso de força? Só se poderá fazer uma avaliação final quando forem conhecidos todos os detalhes, o que não é ainda o caso presente. Em qualquer caso, fosse qual fosse o tipo de tropa empregue, a situação criada pelos activistas no momento de maior vulnerabilidade, quando os primeiros homens foram inseridos no navio, incluindo agressões violentas (lançamento pela borda para um pavimento metros abaixo, etc.) e tentativas de lhes retirar as armas, não deixaram aos militares outra opção senão usar a força. Poderá faltar saber ao certo se tudo ficou pela legítima defesa ou se houve algum erro grosseiro na resposta armada.

Mal grado o pretexto invocado de que os navios apenas tinham em vista a entrega de ajuda humanitária, estranha-se que os israelitas não tivessem tido em conta os diversos indícios de elementos de provocação, em que caíram de forma algo ingénua. Pior do que isso; o comando da operação não esgotou todas as possibilidades de tentar parar os navios, prolongando a pressão por mais tempo e recorrendo às tácticas habituais para estas circunstâncias, ou seja, deixando uma eventual abordagem, se indispensável, para quando os navios já estivessem perto das águas territoriais e continuassem a não obedecer. Poderiam ter usado os procedimentos de tiros de aviso para a proa, reduzindo progressivamente a distância; poderiam ter usado manobras intimidatórias colocando os navios sob risco de colisão, para os levar a alterar a rota; poderiam, ainda, ter tentado a sua imobilização com o lançamento de redes para a zonas dos hélices, etc. Em vez disso, limitaram-se a dar ordem por fonia para os navios pararem e não sendo obedecidos partiram daí para a medida radical de tomar o controle do navio, prescindindo dos vários passos intermédios que atrás referi.

Em termos de Direito Internacional Marítimo, o caso exige uma leitura separada. Farei alguns comentários, sob a reserva de não ser especialista no assunto. Se algum perito ler este texto e quiser comentá-lo, por certo que os leitores ficarão a ganhar com isso, principalmente se houver discordância sobre o que digo aqui. Deixo o convite e desafio.

Na minha interpretação, se, por absurdo, fosse possível olhar para o incidente isoladamente, portanto fora de qualquer enquadramento, não teria qualquer dúvida de classificar a ação israelita como uma grosseira violação do Direito Internacional. Não é, no entanto, possível encarar o ocorrido de forma desligada do conflito entre Israel e a Palestina e, em especial, da existência de um bloqueio decretado por Israel contra a entrada de armamento e terroristas na Faixa de Gaza, que existe desde 2007.

Poderíamos discutir a legitimidade do bloqueio, em especial, a forma arbitrária como tem sido executado e, ainda, o gravíssimo impacto negativo que tem tido sobre as condições extremamente penosas em que vive a população da Faixa de Gaza. Não é esse, no entanto, o propósito deste artigo. Se fosse então teríamos que discutir a essência do próprio conflito entre israelitas e palestinos. Parto da realidade de que o bloqueio existe e que, como é normal, inclui, para além da vertente terrestre, uma vertente marítima, situação reconhecida pelo Governo turco. O ministro dos Negócios Estrangeiros, ao que referiu a imprensa, pediu o seu levantamento para a entrada dos seis navios da Frota de Liberdade; não foi atendido mas também não fez abortar a operação.

Parece óbvio que a Turquia estava interessada em algo politicamente mais substantivo do que o simples gesto humanitário de entregar ajuda. Presume-se que tenha tido o propósito de reforçar a sua imagem junto dos países árabes, demarcando-se do relacionamento estreito que tradicionalmente mantinha com Israel, percurso que iniciou em 2008, na sequência da invasão israelita da Faixa da Gaza, que Tayyip Erdogan, o primeiro ministro turco, designou por genocídio.

Dentro deste enquadramento, uma intervenção militar para impedir que o bloqueio fosse quebrado, parece-me justificada à luz do Direito Internacional, havendo, ao que me tem sido referido, precedentes de situações semelhantes que fizeram jurisprudência. Isto, porém, não isenta Israel de ser responsabilizado pelos vários erros e omissões cometidos na intervenção militar, como acima referido, nem pela falta de notificação prévia que deveria ter feito junto dos países de Bandeira dos navios em causa sobre as suas intenções de os abordar.


Fonte: Jornal Defesa e Relações Internacionais
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